terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O PARLAMENTARISMO INGOVERNÁVEL


Breno Rodrigo de Messias Leite (*)
(sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011)



A democracia não é um regime político de fácil compreensão. Talvez o entendimento de que a democracia é “o governo do povo para o povo” tenha caído em desuso pela própria dinâmica dos fatos. Por outro lado, dizer que a democracia é o governo dos políticos tampouco seria um exagero.

É possível ter em mente, no tempo presente, que a democracia é um método político para a formação de um governo representativo, sustentável, resposivo e transparente nas suas ações públicas. Em todo caso, seguir a tradição schumpeteriana ipsis litteris é condição necessária, mas não suficiente, para que haja um ambiente de governabilidade presidencial ou parlamentar nos arranjos democráticos que se estruturam no mundo.

O saber convencional em ciência política e na teoria do estado é quase unânime quanto a um fato: o parlamentarismo é superior ao presidencialismo, ceteris paribus. Certamente, o libelo mais bem articulado na defesa desta premissa é o ensaio de Juan Linz, “Presidential and parliamentary democracy: does it make a difference?”. Neste trabalho, Linz mostra que exceto o desenho presidencialista norte-americano, cujo consenso está ajustado à competição bipartidária, o regime presidencial é, por definição, politicamente instável e produtor de crises sistêmicas. Nas suas palavras, o presidencialismo multipartidário estaria fadado ao fracasso, especialmente no continente latino-americano.

Ocorre que nas últimas décadas, algumas combinações institucionais oriundas do parlamentarismo têm colocado em xeque os dogmas de muitos cientistas políticos e formadores de opinião.

O Iraque parlamentarista ficou sem governo por 248 dias. Neste período de oito meses, os parlamentares, os partidos e as clivagens religiosas não conseguiram sequer chegar a um consenso mínimo capaz de formar um governo minoritário, ou mesmo uma coalizão minimamente vitoriosa. Resultado: o país ainda ocupado pelos EUA parou literalmente.

Mas os dogmas são persistentes e remover ideias equívocas é um desafio tremendo. Para os defensores da superioridade do parlamentarismo, a razão da baixa institucionalização do regime parlamentar iraquiano é o leitmotiv da crise.

O problema maior vem depois. O recorde iraquiano acaba de ser ultrapassado pelo parlamentarismo belga. O impasse institucional entre conservadores e socialistas, potencializado pela retórica separatista da região flamenga de Flandres, deixa o país sem governo. Quase um ano de paralisia decisória sem a menor perspectiva de se formar um governo capaz de formar uma maioria sustentável. A sorte é que a Bélgica, como todos Estados europeus, tem uma burocracia eficiente que não permite que o país mergulhe no caos. Por enquanto, a Revolução da Batata Frita está dando as ordens de irreverência.

O parlamentarismo europeu passou maus bocados em outros três países do velho continente. O caso inglês provocou um fato inédito depois de quatro décadas de rotatividade entre conservadores e trabalhistas. A entrada dos liberal-democratas no jogo parlamentar forçou o rígido sistema parlamentar inglês a abrir as suas portas para o ingresso de novos atores partidários.

O caso alemão também produziu um grande rebuliço à época. O impasse após as duríssimas eleições de 2005 foi protagonizado pelos social-democratas e conservadores. Estes levaram a melhor contando com o apoio de pequenos partidos de centro-direita. Só assim se pôde formar um governo de maioria liderado por Angela Merkel.

Atualmente, o que se vê na Itália é uma espécie hibrida de parlamentarismo mambembe, sistema partidário fragmentado e um tipo de pornochanchada que nem Pasolini poderia imaginar. O primeiro-ministro Silvio Berlusconi, o homem mais rico do país, compra via sinecuras todos os parlamentares que ousam colocar em sufrágio o voto de desconfiança, o que obrigaria o primeiro-ministro a convocar eleições imediatamente. Na Itália parlamentarista berlusconesa-pasoliniana, a antiga sabedoria romana ainda é certa: divide et impera.

A lição da história é que não existe regime político ou compósito institucional impecável. O fator crise está presente em todos os arranjos institucionais quer no presidencialismo quer no parlamentarismo; quer nos países ricos quer nos pobres. A crise é indiferente: todos são potencialmente contaminados por seus efeitos. No plano da análise, precisamos substituir concepções dogmáticas por boas doses de veneno pirrônico. O mundo está em processo de mutação e novas abordagens precisam dar lugar aos monstrengos produzidos por nossas consciências. Em política, a análise concreta de uma situação concreta ainda tem a sua razão de ser.


(*) Breno Leite é cientista político e colaborador do NCPAM/UFAM. (Imagem de kalipedia.com)

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