domingo, 29 de março de 2015

A MENTIRA NA HISTÓRIA


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Dois fatos são registrados no período que vai do final de março ao primeiro dia de abril. Há o chamado “Dia da Mentira” no começo do mês, advindo de uma série de manifestações culturais ao redor do mundo, como a teimosia dos franceses do século XVI que não aceitaram o calendário proposto pelo papa Gregório (e o rei Carlos IX), mantendo a comemoração da entrada de ano em 1° de abril ao invés de 1° de janeiro. Foram chamados de mentirosos e o dia escolhido o que faziam por merecer. Mas no Brasil o 1° de abril passou a ser comemorado em Minas Gerais no seculo XIX através do jornal “A Mentira”, lançado em 1º de abril de 1828, com a notícia do falecimento de D. Pedro, desmentida no dia seguinte.
Muitas brincadeiras surgiram com o passar dos anos com base no dia da mentira. Mas quando se pensava que uma delas estava no ar, surgia a verdade de que o presidente João Goulart tinha deixado o governo e o país estava nas mãos dos militares.
O chamado Golpe de 64 entrou em cena no Brasil como uma cruel verdade. Lembro que nessa data, morando numa casa na hoje av. Governador José Malcher (antes S. Jeronimo) assisti, da sacada do prédio, o movimento que se fazia na sede da UAP (União Acadêmica Paraense) com a invasão de soldados prendendo jovens que lá estavam reunidos para tomar posição frente ao movimento que depunha o presidente eleito com a justificativa de que ele estava liderando grupos chamados de “inimigos internos” para transformar o país subvertendo a ordem existente, em uma ditadura socialista, a exemplo de Cuba.
Nesse tempo, as familias de classe média seguiam a versão dos golpistas, incentivados por agentes norte-americanos (Lyndon Johnson , presidente dos EUA, afirmara que tudo ia fazer para livrar o Brasil de ser uma nova republica comunista na America Latina). Houve um desfile nas ruas chamado de “Marcha da Familia com Deus Pela Liberdade”. Quem não estava andando em festejo ao movimento acenava das janelas das casas num sentido de aprovação ao que via.
Estudos atuais mostram que o golpe não deve ser considerado exclusivamente militar, visto que houve apoio significativo de segmentos sociais importantes como os grandes proprietários rurais, a burguesia industrial paulista, grande parte das classes médias urbanas, além do setor conservador e anticomunista da Igreja Católica (a principal reponsavel por promover a “Marcha da Familia ....” realizada em 19 de março desse ano).
O passar do tempo mudou o cenário. Com os atos instituicionais, especialmente o 5° que ratificou a ditadura, sequenciaram-se atos de censura, a prisão e morte de quem não estivesse de acordo com o regime instalado, a invasão das escolas e universidades, as torturas, a espionagem invadindo espaços diversos .
Entre os nossos amigos muitos foram vítimas da violencia que se instalou no país a partir de abril de 1964. E como na época eu já participava do movimento cineclubistico, tive conhecimento dos cortes e outros tipos de mutilação que eram aplicados aos filmes (alguns dignos de um anedotário como as bolinhas pretas sobre os orgãos sexuais dos atores, como em “Laranja Mecanica”, de Stanley Kubrick). Considere-se também o volume de filmes que foram proibidos e se deixou de ver devido ao crivo censorial que exigia ainda uma postura cultural brasileira extremamente tradicional.
As informações eram cerceadas e pouco se sabia dos protestos existentes em várias frentes. Tive notícias sobre a guerrilha no Araguaia através de um exibidor cinematografico que referiu em conversa ter viajado com uma jovem considerada subversiva, de Marabá para Belém. Também porejavam acontecimentos trágicos atraves de amigos estudantes e professores alguns presos, outros sofrendo o cerceamento ao seu direito de ser admitido na universidade por concurso público devido a tal “folha corrida”.
Os intelectuais viviam acuados pela força bruta que os censurava com ameaças de prisão. Lembro que já redigindo a coluna de cinema no O LIBERAL fui intimada pela Polícia Federal para prestar depoimento sobre uma entrevista que fiz onde o estrevistado (o presidente do Sindicato dos Jornalistas a época) criticava a censura e tratava de filmes políticos que não chegavam aos cinemas de Belém. Na ocasião, o interrogador dizia sempre que “não era sádico”, queria saber apenas a verdade. Rômulo Maiorana designou um jornalista que era advogado para me acompanhar nessa “sessão”.
O medo era o grande patrocinador do regime imposto. Todo mundo tinha medo de falar, de agir, pensando que as menores coisas pudessem ferir a susceptibilidade dos mandatários e resultasse em prisão.
Este quadro de terror persistiu por muitos anos. E se hoje eu recordo é porque fiquei indignada com as faixas exibidas numa recente passeata de protesto contra o governo federal onde se pedia “a volta dos militares”. Como se vê, hoje é possivel escrever contra qualquer coisa exibindo propostas absurdas desde que pareçam incisivas aos olhos de quem as elabora. Que não conhece a história do Brasil e ou pretende continuar se locupletando. Pedem a volta de um regime de opressão, mas naquela época não se podia nem pensar em protestos, em desacordos com os mandos do governo (e eram mandos pois não havia oposição legal). Há de se considerar que estamos numa democracia e que em tempo algum se deteve tantos agravantes contra a ordem estabelecida, revelando-se atos de corrupçao e detendo-se quem as praticou. Tambem não se podia fazer como hoje se faz através da midia agravos contra governantes. E hoje há varios tipos de midia, como a eletrônica invadindo os lares muitas vezes tentando modular a opinião publica a favor de interesses particulares.
Só quem não viveu o que se seguiu em 1964 ao dia da mentira faz fé numa proposta que dá o tom perverso mesmo sendo tratada como mentirosa.

(Texto originalmente publicado em O Liberal, de 27/03/2015)

segunda-feira, 23 de março de 2015

O ATO DE PROTESTAR


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Nas manifestações de rua acontecidas no domingo (15/03) houve quem portasse uma faixa pedindo intervenção militar no governo e/ou que este grupo voltasse ao poder (?). Lembrei-me de dois fatos que se assemelham: um que se chamou “marcha da família com Deus e pela liberdade” com a mídia instigada por Assis Chateaubriand dos Diários Associados & empresas (cf. http://www.jornalmovimento.com.br) que pedia a exclusão do governo de João Goulart como um meio de livrar o Brasil do “comunismo ateu”. Outra, já instalado o regime de força (13/06/1964), pedia “ouro para o bem do Brasil” levando bandeiras estendidas para colocar dinheiro ou joias que seriam contabilizados para pagar as dívidas nacionais. A primeira trocou ameaça de uma nova Cuba por um período em que a liberdade civil foi virtualmente cerceada. A segunda não mereceu ao menos uma contabilidade levada a público. Circulava de boca em boca (pois a censura não admitia anedotas) que o ouro era um bem muito particular. Não se falou em “lava jato”.
Em 2013, as manifestações de junho com amplitude plenamente democrática partiram de uma campanha contestatória aos aumentos nas tarifas de transporte público com uma visão de protesto pacífico, levando, entretanto, a uma segunda fase com focos de vandalismo e represálias.
Manifestações populares são impensadas num regime ditatorial. Mesmo em governos que mascaram ditadura com uma fachada democrática, o ato de protestar gera prisão com todos os elementos que possam acompanhar esse ato. Afinal, democracia vem do grego dēmokratía  que significa "governo do povo". Na teoria clássica diz-se que é o cidadão que governa através de pessoas que elege para governar. Se essas pessoas não demonstram nos postos a que são eleitas, dignas da confiança de quem as colocou ali, elas são cobradas dos que as elegeram. Mas os protestos nem sempre se dirigem a governantes. Cabem, muitas vezes, a atos de governo, ou a fatos que de alguma forma se ligam a parâmetros governamentais. Há dois anos o motivo dos protestos começou no aumento das passagens de ônibus urbanos. Hoje cabem na Petrobras e, por continuidade, nas revelações de falcatruas que existiam na empresa nacional. Evidentemente, os motivos, em ambos os casos, extrapolam para outros que flagrantemente revelam propostas de oposição politica. E são tratados parcialmente nas informações. Como houve uma eleição recente em que foi reeleita a presidente da nação, além da base parlamentar, os opositores seguem a velha cantiga de que “o povo elegeu, mas já se arrependeu”. Uma análise extremamente rápida de uma situação que tende a refletir a vontade do que já se chamou de “terceiro turno”.
O que é importante observar nas manifestações populares de rua é que elas tendem a ser manipuladas e escancaram opiniões até mesmo sem conhecer a história dos protestos no país. Muitos “passeiam” pelas avenidas ao som do que possa ritmar uma dança. Afinal é uma novidade, um novo programa dominical. Naturalmente há quem esteja desfilando ciente de elementos críticos, julgando os atos dos mandatários pelo que observa através da mídia. E ainda hoje esta ganha espaço no que é impresso, no que é televisionado, no que passa pelas redes sociais. Essas notícias veiculadas de diversas maneiras em várias versões tendem a regular o raciocínio de muitos que não conhecem meandros de um sistema de governo, que sentem o aumento do custo de vida como um desacerto de mandatários irresponsáveis ou que não sabem administrar. Com a idéia de que está custando mais caro o que ontem era mais barato, por culpa exclusiva de governantes, começam os protestos. E estes aumentam quando a própria mídia revela a corrupção nas diversas áreas que geram o custo de vida (a energia elétrica, por exemplo).
O ato de protestar é como já disse um cientista, “ atitude fisiológica”. Protestam os contrariados, mas também protestam quem acha que as coisas podiam estar melhores. No caso, o ato de protestar ganha volume quando engrandece, em termos. Uma pessoa escrevendo no facebook ou no twitter que é contra um determinado assunto não ganha espaço como unida a outras pessoas e ganhando as ruas para dizer o mesmo. Até porque essa forma adquire mais espaço em outras mídias.
O que ressalta o valor democrático é a demonstração de desacordo sem beligerância. Na onda de protestar contra o aumento dos ônibus queimaram-se carros, bancos, lojas, atacaram transeuntes, demonstraram uma guerra contra seu próprio bem posto que o quebra-quebra atuava em espaços públicos. Mas cabe a fonte dos protestos analisar bem as manifestações e respondê-las com a consciência de que se existem erros o melhor é corrigi-los. Nunca se quebra um pote porque a agua está suja. O trabalho é limpar e, no país onde a corrupção existe desde os seus primórdios, é importante ver que hoje há tentativa de eliminar esta corrupção, detendo os corruptos, pugnando pelo cumprimento das leis, fazendo com que o povo sinta que é governo, que os seus eleitos merecem confiança (em caso contrário que sintam isso e mudem de alguma forma).
O ato de protestar, repito, é saudável num sistema democrático sem desvios. Quem poderia protestar contra a Constituição escrita pelo primeiro imperador (D. Pedro I)? Quem protestaria contra as torturas que se faziam no governo militar, incluindo a terrível “Operação Condor” que jogava no oceano os corpos ainda vivos dos que protestavam (e há os que pleiteiam a volta desse sistema)? E é só olhar em torno e ver, por exemplo, o prefeito de Caracas sendo preso por protestar contra o presidente do país.
Que viva a nossa capacidade de dizer o que pensa. Que seja reconhecido, contudo, como dizem os percentuais nas pesquisas de opinião, que mais de 80% dos que estavam em protestos neste domingo haviam votado no candidato perdedor nas eleições de 2014, portanto, um protesto partidário.
A pugna de uma parte da população que não foi às ruas no domingo é para que cheguem ao público informações isentas de parcialidade, o que realmente não tem acontecido.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" em 20/03/2015) 

domingo, 15 de março de 2015

PROTESTOS POLÍTICOS E PRECONCEITO




Os textos que escrevo neste espaço sempre têm fundamentos em pesquisas, estudos e ensaios que faço há mais de 37 anos (UFPA) e se deslocam para os acúmulos que fiz e tenho feito, durante minha vida de mulher madura e consciente de que alguma coisa havia/há de errado na hierarquia que distingue homens e mulheres e que eu aprendi ainda criança. Desde a indumentária própria a meninos e meninas ao modo de falar de cada um mesmo nos jogos infantis, havia sempre regras a determinar uma cultura específica para os dois gêneros. Depois, com a preocupação dos pais em contribuir para o avanço dos conhecimentos de seus filhos, a escola feminina e a masculina se mostraram dentro dos parâmetros aspirados para a continuação dos estudos.
Deslocando para outros recortes temporais as teorias estudadas no ensino superior na área sócio-política construíam a versão “para todos” onde se inclinavam as evidências do tratamento ao conceito de Homem, num plano universal, para tratar dos dois sexos. Tudo traduzido em regras sociais e acadêmicas que se fugisses à norma certamente estariam sendo vistas com incorreção e, numa prova escolar determinariam notas mais baixas e/ou mais altas caso expressassem ou não esses ensinamentos padrão.
O uso do dicionário para garantir a escrita da linguagem culta continha ou estabelecia verdadeiros diferenciais de vocábulos que para a criançada em tempo dos primeiros ciclos da escola básica eram motivo de chacotas dos meninos para as meninas. No recreio, chamar de “vaca” à colega esboçava comicidade e o autor do qualificativo depreciativo não era levado à sala da diretoria porque este era visto como “um garoto engraçado”, mesmo que com ele a classe masculina do seu grupo estivesse no coro injurioso. E o dicionário nem era consultado para avaliar uma das representações do termo – mulher de vida devassa – sendo essa a origem da “brincadeira”.
Mas a continuidade desses episódios deu sustentação à revisão da cultura cuja representação usava esse palavreado para humilhar as pessoas, no caso, as mulheres. E nesse aspecto outros termos da cultura sexista vieram se somar à lavra do dicionário querendo obter seriedade quanto às regras políticas democráticas ao serem instituídas as eleições num pleito de apresentação de candidatos e evidências aos que deveriam votar nesses sistemas. Para as mulheres que nos primórdios da república não eram incluídas como votantes, mesmo com as regras do censo que definia as quantias recebidas pelos cidadãos que deveriam votar (algumas chapeleiras e de outras profissões recebiam até muito mais do que muitos homens eleitores) os escritos  de Oliveira Viana (1977:163) discriminavam os eleitores e os que viviam nas cidades: “Os que habitam a povoação durante toda a semana são artífices (...) e homens sem ocupação, alguns mercadores e mulheres públicas”.
Partindo de toda uma reelaboração dos termos que no mais elementar compêndio (o dicionário) aos escritos que analisaram a base da cultura que tratava através de normas contratuais as relações de gênero na escola, no trabalho, na saúde, na política, houve revisão do tratamento dado às mulheres pelos direitos humanos numa república democrática (e além dela, nos vários sistemas políticos). E a revisão das teorias filosóficas, sociológicas, psicológicas e políticas através de uma base feminista refizeram o mal estar da modernidade no tratamento dado às mulheres marcado pela cultura tradicional que tratava “com naturalidade” as evidencias desrespeitosas dos modelos hierarquizados entre os gêneros. Refiro neste momento apenas a teórica política Carole Pateman em “O Contrato Sexual” (1995) ao observar como as discussões do tradicional Contrato Social (nas leis jus naturalistas) referem apenas metade da história social e em meio á revisão de clássicos reconhecidos ela avalia que “a questão do contrato sexual, que estabelece o patriarcado moderno e a dominação dos homens sobre as mulheres, foi sistematicamente recalcada” nesse contrato. Não vou me alongar nesse estudo de Pateman porque o interesse é usar sua análise para mostrar que nesses contratos que a autora trata exemplificam-se os que fazem parte da vida cotidiana, como os de casamento, trabalho, prostituição (...) etc.

Encabeçando os protestos atuais contra a Presidente Dilma Rousseff desde os que se fizeram em 2013, passando pelo período da copa do mundo e mais enfaticamente neste momento de sua reeleição e sequência de governo republicano há dois sinais de que a cultura tradicional contra as mulheres repercute como se fossem pretextos político-partidários para negar a ela o respeito como primeira mandatária do país. Já tratei neste espaço do formato como as três candidatas à presidência em 2014 foram tratadas ao longo da campanha, mas, neste momento que está sendo sumariamente escrachado é o epiteto de “vadia” e a relação do protesto como o “panelaço”. Os dois termos são parte da representação pejorativa em que são incluídas as mulheres há centenas de anos e ainda hoje os adversários da presidente revelam que esse protesto é político-partidário devido o formato da administração pública que não está a contento. No caso do “panelaço” a evidência é também anti-feminina porque secularmente quem “mexeu com panelas” foram as mulheres. E nessa onda quantas mulheres se incorporam sequer pensando que estão fazendo parte da cultura sexista recorrente que ainda hoje é forte no Brasil e que tem deixado marcas em vítimas do feminicidio. Por que “não é de “bom-tom” homens mexerem com panelas que lhes tira a virilidade.

Protestar é um direito, mas antes é preciso pensar em quanto preconceito é escarrado de bocas supostamente elegantes. E criando uma máscara de que é um protesto partidário quando na verdade é extremamente político contra as mulheres. Acusadas de não saberem administrar, que refazem regras, que revisam notas, que erram e etc.etc e que, principalmente, não devem estar num alto cargo como o de presidente da república. Foi preciso 83 anos de direito do voto às mulheres brasileiras para que elas chegassem a esse alcance. Mas as tralhas preconceituosas as acompanham.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 13/03/2015) 

domingo, 8 de março de 2015

OLHAR, OLHARES NAS LUTAS DAS MULHERES

http://www.usp.br/cje/jorwiki 

Houve tempo em que apenas um olhar traduzia as imposições a um modelo de representação feminino/masculino que nem sempre casava com a realidade concreta tornando-se uma exigência ao comportamento esperado de meninas, jovens, mulheres maduras e idosas e também de meninos, jovens, homens maduros e idosos traduzindo-se na assertiva estabelecida pelo padrão de comportamento humano evidenciado pelo imaginário social. Este olhar, ao longo do tempo, deixou de ser visto no singular para assumir-se no plural – olhares – porque ampliado de indagações femininas na tentativa de descobrir o porquê de algumas diferenças culturais serem preconceituosas contra as mulheres tornando-se problemas sociais.
A avaliação atual sobre as relações sociais entre os gêneros se tornou manifesta das diferenças de expectativas e de comportamentos que antes eram tomados por esse olhar como “naturais”. Houve então olhares mais questionadores e responsivos da cadeia que interpelava socialmente mulheres e homens. O acesso às informações transformou essas buscas num permanente processo de investigação em favor da desmontagem da naturalização dos papéis sociais. Desmontagem constatada de que atributos de feminino e de masculino eram construções sociais com determinações específicas e hierarquizadas e que se transformavam ao longo do tempo.
Esses modelos inseriam fatores biopsíquicos para garantir a estratégia de poder subjacente a cada ordem determinando papéis, condutas em funções que asseguravam uma divisão de papéis diferenciados entre homens e mulheres, conformando-se em pactos hierarquizados de sobrevivência, com as instituições sociais, políticas e econômicas definindo, entre suas regras, posições estratégicas para uns, enquanto para outros sobravam as determinantes de sujeição.
Reproduziu-se o confinamento das mulheres reforçando condições especificas para a esfera do privado. Nesse espaço, elas se reduziram a instrumento de reprodução da sociedade (por via biológica e ideológica), sendo o trabalho caseiro que desenvolviam por permanecerem agregadas à sua cria, na ordem da hierarquia social e econômica, considerado a menos importante das atividades.
Os modelos que se constroem, então, tanto do homem quanto da mulher corresponderiam às funções esperadas desses sujeitos aos quais foram atribuídos papéis específicos. Há ambivalência no pacto de dominação, na medida em que um e outro incorporam, em suas práticas, o discurso enunciado expresso nos valores contrários: força-fragilidade.
Passível de esta natureza padrão ser perdida a todo o momento, a cultura se mantém vigilante para que tal não ocorra, com a essência devendo ser constantemente aprendida, vigiada, controlada. “Perder a “feminilidade” ou a “masculinidade” é uma ameaça constante e as regras para que tal não ocorra devem ser acatadas desde a infância, nos tipos de brincadeiras, nos ‘modos’, no ‘próprio’ de meninos e meninas”. (Pitanguy, 1982: 63)
Com o uso analítico da categoria gênero e a situação tida como uma construção social — e, consequentemente, histórica – a idéia de pluralidade implicou admitir não apenas que sociedades diferentes teriam diferentes concepções de homem e de mulher, como também que no interior de uma sociedade essas concepções seriam diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade, etc. Admitiu-se então que os conceitos de masculino e feminino tendem a se transformar ao longo do tempo.
Veja-se o trabalho – a inscrição do trabalho doméstico como “próprio da mulher”, ainda hoje contribui para a vivência feminina na “dupla jornada.” Mas há mudanças substanciais. Se o imaginário social dizia que elas “não faziam nada” e elas próprias reproduziam esses discursos, na realidade, as funções assumidas por elas na casa, na família, na reprodução da economia doméstica familiar descredenciavam o padrão estabelecido.
No Brasil, o mundo do trabalho supunha as mulheres concentradas em atividades dentro do lar e, por isso, essas funções caseiras deixavam de ser vistas como “trabalho” e sim como “obrigação”. Desde o período colonial, nos setores da produção agrícola, vê-se a presença delas acompanhando os homens de sua família, nos trabalhos dos roçados, na coleta de produtos e em outras atividades conforme sua condição social.
A industrialização lança outro espaço de trabalho à mulher na fábrica. A operária será vista nas lutas sindicais propondo leis protetoras ao trabalho feminino, buscando programas que consolidem as leis trabalhistas, incorporando bandeiras de proteção que amparem a ela e à sua família, com a finalidade de diminuir as tensões sociais.
Embora seja evidente o crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, contudo, o mesmo não é acompanhado da igualdade de salários que recebem os homens, na maioria das profissões. A máxima “trabalho igual salário igual” ecoa nos primórdios de um mercado que incluiu as mulheres num sistema que sobrevivia do barateamento da mão de obra. Hoje, com a reestruturação produtiva, a maior qualificação e os desafios do mercado numa época globalizada, pelo que se vê, ainda prescrevem a situação atual das trabalhadoras em todas as áreas de atividades.
Detendo o olhar sobre essa complexidade de tarefas, observa-se que isso tem se responsabilizado por problemas à saúde da mulher. O campo da saúde envolve muitas outras dimensões vivenciadas pelas mulheres e amplia os programas de políticas públicas que estas têm demandado para a melhoria de sua qualidade de vida. É o caso da violência doméstica se constituir em um problema de saúde pública. Esta violência consiste no uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não é da sua vontade, tolhendo a liberdade, incomodando e impedindo a vítima de manifestar seu desejo, sob pena de ser gravemente ameaçada ou até mesmo espancada, lesionada ou morta (CFSS).
Os estudos sobre a violência doméstica contra a mulher têm centrado explicações sobre a cultura da hierarquia de poder que domina a sociedade sendo legitimada pela ideologia que criou papéis sociais com base nas diferenciações de sexo. Assim, volta-se para os modelos apresentados no inicio do texto e configuram aprendizagem diferenciada da emoção entre meninos e meninas, levando a atos violentos. Esses modelos interferem nas sessões de violência e esta leva à perda da saúde e até à morte de mulheres.
Neste texto reverencio através deste jornal, o Dia Internacional da Mulher, neste 8 de março.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 06/03/2015)