segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA E A LUTA DE ZUMBI

 



O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, foi instituído oficialmente pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. Zumbi foi morto em 1695, na referida data, por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho. Maiores informações podem ser consultadas no texto História do Quilombo de Palmares (1958).

A data de sua morte, descoberta por historiadores no início da década de 1970, motivou membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso realizado em 1978, no contexto da Ditadura Militar Brasileira, a elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que seus descendentes reivindicam.

Com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição de 1988, vários segmentos da sociedade, inclusive os movimentos sociais, como o Movimento Negro, obtiveram maior espaço no âmbito das discussões e decisões políticas. A lei de preconceito de raça ou cor (nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989) e leis como a de cotas raciais, no âmbito da educação superior, e, especificamente na área da educação básica, a lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira, são exemplos de legislações que preveem certa reparação aos danos sofridos pela população negra na história do Brasil.

A figura de Zumbi dos Palmares é especialmente reivindicada pelo movimento negro como símbolo de todas essas conquistas, tanto que a lei que instituiu o dia da Consciência Negra foi também fruto dessa reivindicação. O nome de Zumbi, inclusive, é sugerido nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana como personalidade a ser abordada nas aulas de ensino básico como exemplo da luta dos negros no Brasil. Essa sugestão orienta-se por uma das determinações da lei Nº 10.639, que diz no Art. 26-A, parágrafo 1º: “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.”

A despeito da comemoração do Dia da Consciência Negra ser no dia da morte de Zumbi e do que essa figura histórica representa enquanto símbolo para movimentos sociais, como o Movimento Negro, há muita polêmica no âmbito acadêmico em torno da imagem de Zumbi e da própria história do Quilombo dos Palmares. As primeiras obras que abordaram esse acontecimento histórico, como as de Edison Carneiro (O Quilombo dos Palmares, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 3a ed., 1966), de Eduardo Fonseca Jr. (Zumbi dos Palmares, A História do Brasil que não foi Contada. Rio de Janeiro: Soc. Yorubana Teológica de Cultura Afro-Brasileira, 1988) e de Décio Freitas (Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973), abriram caminho para a compreensão da história da fundação, apogeu e queda do Quilombo dos Palmares, mas, em certa medida, deram espaço para o uso político da figura de Zumbi, o que, segundo outros historiadores que revisaram esse acontecimento, pode ter sido prejudicial para a veracidade dos fatos.

Um dos principais historiadores que estudam e revisam a história do Quilombo dos Palmares atualmente é Flávio dos Santos Gomes, cuja principal obra é De olho em Zumbi dos Palmares: História, símbolos e memória social (São Paulo: Claro Enigma, 2011). Flávio Gomes procurou, nessa obra, realizar não apenas uma revisão dos fatos a partir do contato direto com as fontes do século XVI e XVII, mas também analisar o uso político da imagem de Zumbi. Segundo esse autor, o tio de Zumbi, Ganga Zumba, que chefiou o quilombo e, inclusive, firmou tratados de paz com as autoridades locais, acabou tendo sua imagem diminuída e pouco conhecida em razão da escolha ideológica de Zumbi como símbolo de luta dos negros.

Além dessa polêmica, há também o problema referente à própria estrutura e proposta de resistência dos quilombos no período colonial. Historiadores como José Murilo de Carvalho acentuam que grandes quilombos, como o de Palmares, não tinham o objetivo estrito de apartar-se completamente da sociedade escravocrata, tendo o próprio Quilombo dos Palmares participado do tráfico e do uso de escravos. Diz ele, na obra Cidadania no Brasil: “Os quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relações com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos Palmares havia escravos”. (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 48).

As polêmicas partem de indagações como: “Se Zumbi, que foi líder do Quilombo de Palmares, possuía escravos negros, a noção de luta por liberdade nesse contexto era bem específica e não pode colocá-lo como símbolo de resistência contra a escravidão”. A própria história da África e do tráfico negreiro transatlântico revela que grande parte dos escravos que a coroa portuguesa trazia para o Brasil Colônia era comprada dos próprios reinos africanos que capturavam membros de reinos ou tribos rivais e vendiam-nos aos europeus. Essa prática também ressoou, como atestam alguns historiadores, em dada medida, nos quilombos brasileiros.

Nesse sentido, a complexidade dos fatos históricos nem sempre pode adequar-se a anseios políticos. Os estudos históricos precisam dar conta dessa complexidade e fornecer elementos para compreender o passado e sua relação com o presente. Entretanto, esse processo precisa ser cuidadoso. O uso de datas comemorativas como marcos de memória suscita esse tipo de polêmica, que deve ser pensada e discutida criteriosamente, sem prejuízo nem das reivindicações sociais e, tampouco, da veracidade dos fatos.

(Texto publicado em Novembro de 2014, neste blog)

 

 


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

ALBERTO RANGEL E AS CARTAS DE AMOR IMPERIAIS

Em junho do 2007, com o discurso intitulado: “Alberto Rangel E As Cartas De Amor Imperiais” assumi a Cadeira nº 1 do Instituto Histórico e Geográfico do Pará -IHGP, cujo patrono é Rangel. Na avaliação preliminar sobre as obras escritas pelo autor, havia o mais conhecido e considerado muito importante no seu percurso de escritor – “Inferno Verde” Cenas e cenários do Amazonas”, de 1908, com o Prefácio escrito pelo seu grande amigo Euclides da Cunha. Contudo, devido meus estudos sobre a questão da mulher e as relações de gênero, optei pela leitura e análise de duas obras históricas desse autor, em edições diferentes- “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares), de 1916, Livraria Francisco Alves; e a terceira Edição, de 1969, da Editora Brasiliense, com base na 1ª Edição). Outra edição lida e analisada foi “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”, edição de 1984, da Ed. Nova Fronteira (organizada por autor anônimo e publicada pela Tipografia Morais em 1896).

Dessas leituras escrevi minha saudação de entrada no Silogeu paraense, assumindo a Cadeira nº 1, cujo patrono é Alberto Rangel.

Neste blog, publico o texto integral apresentado aos Consócios do IHGP.



ALBERTO RANGEL E AS CARTAS DE AMOR IMPERIAIS

 


“Não se absolvam os amantes de São Cristóvão, quando se pode recorrer até à humanizações do Evangelho para indultar os que muito amaram.”

Alberto Rangel

(1871- 1945)


Sumário

Introdução

 1. Um “olhar” sobre os outros: o fundador da cadeira e o seu último ocupante.

2. Os “ossos do ofício”: escavacando a trajetória de Alberto Rangel

3. Os acessos negados e as permissões do autor

4. O amor, a História e três paixões

a) a estrutura das obras; b) como se esboça o amor de Rangel pela História (o ofício do historiador, a procura das fontes, o confronto entre documentos, o que dizem esses documentos); c) como ele esboça as “histórias ordinárias” dos dois amantes imperiais

5. Uma conclusão possível : As cláusulas de “Rosebud”

 

Introdução

             Não foi fácil chegar ao patrono. As primeiras informações sobre Alberto Rangel, patrono da cadeira no 1 desta casa (IHGP), tinham uma direção clássica: ele fora o autor da expressão “inferno verde” para designar a Amazônia, transformando essa representação em um trabalho consubstancial além desse novo conceito. Deste detalhe, chegar ao “caminho das pedras” não seria tão difícil, pois o acervo bibliográfico sobre a região Amazônica possivelmente incluiria um exemplar do livro de Rangel. Antes, preferi inventariar sua obra. Em meio ao acervo composto de romances, ficção, história, discursos e conferências, produzidos e publicados por ele, encontrei um exemplar que me chamou a atenção pela linha de meus estudos sobre a questão da mulher e as relações de gênero: “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares). O olhar em detalhes sobre o volume à disposição na condição de “obra rara”, no único lugar onde este foi encontrado (dos inúmeros que foram visitados) – a Biblioteca “Arthur Vianna” (CENTUR) – só me permitia a consulta. Na primeira “folheada”, para a confirmação da proximidade entre Rangel e minha temática preferida, as páginas ainda fechadas do livro deixaram nas minhas mãos resíduos do tempo, fragmentos de papel amarelado. Sem traças, exalando o cheiro do mofo, o velho volume traduzia uma condição com a qual o pesquisador se defronta diariamente com suas fontes. O que fazer para garantir o manuseio e a permanência deste documento para novas consultas?

            Considerada a conjunção entre a minha tarefa – produzir um texto sobre o patrono – e meu prazer – gostar do tema da pesquisa, incluindo-o entre os de minha preferência – foi possível fazer a escolha dessa obra para ser tratada, e da questão a ser problematizada. Configurou-se uma outra situação: das mais de 600 páginas do livro – entre narrativa, fotografias e apensos – só me era possível ler, com mais profundidade, umas 40 páginas, diariamente. Falta de tempo, outras atividades, as condições gerais do lugar e tudo o que se expressa como impugnações à elaboração de um trabalho com limites para o seu término – o dia da posse – fizeram-me dividir com outras pessoas a pesquisa. Eunice Santos responsabilizou-se pela avaliação do estilo e a elaboração de uma síntese da “obra rara”, enquanto Matilde Cabeça seria a escrevente dos apensos (cerca de 200 páginas). A estas duas amigas eu devo o meu apreço carinhoso.

            Novas descobertas estavam a caminho. Quando a situação ainda se encontrava crítica, encontrei, no acervo de diversos de Pedro Veriano, um exemplar das “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”(1984), assinado por Emanuel Araújo. O manuseio das 633 páginas identificou a análise em notas de Alberto Rangel. Já nos estertores da busca por fatos históricos sobre o império no Brasil, a professora Maria de Nazaré Sarges descobriu, em sua biblioteca, um exemplar da “obra rara” dando-me por empréstimo. Com isso foi possível desenhar os amores entre duas pessoas num tempo político e conturbado da história do Brasil, através da ótica do patrono.

Dividi este texto em cinco partes. Na primeira - Um “olhar” sobre os outros - quem foi o fundador da cadeira e o seu último ocupante – trato de Aylton Quintiliano e Antonio Vizeu; na segunda – “Os “ossos do ofício”: escavacando a trajetória de Alberto Rangel” - registro parte da biografia do patrono; no terceiro item – “Os acessos negados e as permissões do autor” - identifico alguns problemas em manusear as obras raras, que negam acesso ao público e considero a função do pesquisador ao escavacar os documentos e chegar à permissão do autor, isto é, ler suas obras e socializar suas informações; no quarto item – “O amor, a História e três paixões”- analiso a obra de Rangel, seu amor à História, às histórias e o seu debruçar sobre as paixões de D. Pedro I e D. Domitila de Castro contido por sentimento apaixonado pelo ofício de historiador, pela história privada e amorosa dos dois amantes. Para a conclusão, fiz uma referência ao cinema (uma das minhas áreas), considerando “as cláusulas de “Rosebud”. Esse item ficará, em princípio, sem explicações.

 1. Um “olhar” sobre os outros: o fundador da cadeira e o seu último ocupante

             Aylton Quintiliano foi o fundador e primeiro ocupante da cadeira no 1 deste soligeu, cujo patrono foi Alberto Rangel. Nascido em Maceió, em 26 de fevereiro de 1921, formou-se em Direito, tendo militado desde jovem na “Tribuna Popular”. Ao transferir-se para o Rio de Janeiro, dedicou-se à literatura e ao jornalismo, compondo o corpo editorial dos Diários Associados. De sua obra, destacam-se “A Grande Murallha”; os livros de poesias “Direito de Viver”, “Poesias”, “Caminhos da Esperança” e “Estrada do Sol”. Mais tarde, dedicou-se à prosa histórica, publicando “Renegados”, “Grão-Pará (Resenha Histórica)” e “Guerra dos Tamoyos”. Era membro da Academia Carioca de Letras, Academia Alagoana de Letras e deste Instituto, entre outras associações. Em Belém, foi secretário e editorialista do jornal “Folha do Norte”.

            Na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará , vol. XV, 1968, pág. 60, há transcrição da ata de posse de Quintiliano (de 26/01/1968) e a síntese de seu discurso de improviso segundo ele porque não queria tomar muito tempo dos presentes e dele próprio, pois o “dever o esperava na “Folha do Norte”. Explorou a dimensão cosmopolita do patrono que sem ser da região teria traduzido seu amor pela Amazônia, através de seu livro “Inferno Verde” que “é o retrato do mundo amazônico, é a crueza, o mistério e o terrível na selva cheia de contrastes” [1].

            O último item desta ata, nas “observações”, há o seguinte registro: “O consócio Aylton Quintiliano, empossado nesta sessão, faleceu dia 13 de abril de 1968 em conseqüência de um desastre automobilístico[2].”

            Foi nessa mesma revista que encontrei – nas páginas que contêm os elementos pré-textuais do periódico – a referência a Antonio Vizeu da Costa Lima, como o posterior ocupante. Embora tenha levantado os dados relativos a todas as revistas do IHGP existentes na Biblioteca Arthur Vianna, não encontrei registros da posse de Antonio Vizeu. Também não localizei qualquer outro material relativo à presença dele nesse instituto. Vali-me do acervo de seus familiares para compor esse registro.

            Em meio às descobertas do “cantinho do Vizeu”, sua viúva Célia procurou introduzir-me num “tempo foi” do velho professor. Da fixidez de um currículo escrito com os dados de uma vida dedicada à Universidade Federal do Pará, fizemos uma bela manhã de lembranças, onde as lágrimas de saudade pelo velho companheiro não pouparam os olhos da apaixonada Célia. Aos poucos fui descobrindo um farto material de consulta que possibilitou delinear um perfil mais do educador e de sua presença para além do meio amazônico. Antonio Vizeu da Costa Lima, nascido em 1o de novembro de 1925 e falecido em 1992, tinha ascendência portuguesa. Casado com d. Célia Vizeu teve cinco filhos. Sua formação elementar e complementar foi feita entre o Colégio do Carmo e o CEPC (Colégio Estadual Paes de Carvalho). O curso superior de bacharel em Direito e de Geografia foi realizado na UFPA. Das inúmeras especializações, destacam-se as que cursou em todas as áreas da Geografia e da Educação, tornando-se professor titular da cadeira de Geografia Econômica tanto na UFPA quanto no CESEP. Destacou-se nas funções da Administração Superior da UFPA, sendo Diretor do CFCH, Pró-Reitor de Ensino, de Administração e de Extensão em vários períodos.

            Os cargos são muitos, no currículo de Antonio Vizeu. Difícil enumerá-los nesta oportunidade. Chamo a atenção para a sua produção científica – obra que está necessitando de ser coligida para publicação, pois traçará um perfil da época em que a preeminência dos assuntos ainda era para a Educação. E também servirá para as gerações futuras reconhecerem, na obra deste consócio, uma parte da História que teima em não ser escrita.

            Com trabalhos elaborados para os inúmeros congressos de Geografia e de Educação que ele organizava e criava o intercâmbio inter-regional, nacional e internacional, chamo a atenção para quatro, visando a exemplificar sua produção: “Estudos da emigração portuguesa”, 1o Volume do “Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro”, mestre da geografia portuguesa, publicado pelo Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, em 1984 (onde escrevem geógrafos do mundo todo), em que o autor discorre sobre a expansão portuguesa no mundo, delineando quadros da emigração continental legal e/ou clandestina em alguns períodos recentes, entre um movimento legal e também clandestino. O trabalho “Complexos Interescolares e Intercomplementaridade no Ensino da Amazônia” foi publicado nos anais do II Encontro de Educadores da Amazônia, defendido em forma de tese; “Um Plano Educacional para a Amazônia Brasileira” elaborado para o Encontro Interamericano de Educação Católica no México; e “A História da Educação Brasileira e o Momento Atual”, palestra proferida na Assembléia Legislativa do Estado do Pará.

No currículo de Antonio Vizeu, não consta a particularidade que nos aproximou: a assinatura do convênio entre o Centro de Estudos Cinematográficos e o Cine Clube da APPC, para a efetivação regular das exibições cinematográficas no auditório do teatro “Martins Penna”. O respeito com que Antonio Vizeu tratava este convênio e, , consequentemente, o cinema, entre as atividades de extensão da UFPA, perdeu-se no tempo. Nesta lembrança, registro seu esforço em não tratar como “sobremesa” as exibições cinematográficas – como bem disse Benedito Nunes – mas como um lauto banquete.

            Se houve/ não houve a posse solene ou o elogio ao patrono, vale o que foi produzido por Antonio Vizeu e que seus pares consideraram, ao propô-lo consócio do IHGP (carta de 19/08/1968) e membro da Comissão de Geografia e Etnografia deste Instituto (Of. 20/04/1978).

 2. Os “ossos do ofício”: escavacando a trajetória historiográfica de Alberto Rangel

             Não se trata de uma biografia no sentido que tem este termo – história da vida de uma pessoa – mas de um desenho traçado a partir de outras versões sobre o patrono[3], com base em suas obras publicadas.

Alberto Rangel nasceu em Recife (29 de maio de 1871), fazendo seus estudos primários nessa cidade e depois se transferindo para Itu, São Paulo, e em seguida para o Rio de Janeiro, cursando aí a escola Militar da Praia Vermelha, graduando-se como engenheiro militar na arma de Artilharia. Auxiliar do Presidente Marechal Floriano Peixoto lutou contra os rebeldes ao lado do governo. Desligou-se do Exército por ter sido ferido duas vezes, publicando, em 1900, um panfleto com o título “Fora de Forma”, narrando os motivos deste gesto. Em 1889, viajou para o Estado do Amazonas ocupando o cargo de Diretor do Departamento de Terras e Colonização, sendo, posteriormente, Secretário Geral do Estado. Nesse cargo, foi o “primeiro a denunciar a invasão de aventureiros ingleses à Amazônia, no roubo de seringueiras, mais tarde levadas para a Índia. Tal atitude lhe valeu um encontro com o Presidente Affonso Pena”.[4] Em Manaus, escreveu “Inferno Verde”, em 1904, período em que se achava residindo na Vila Glicínia, tendo como companheiros Firmo Dutra e Euclides da Cunha – este foi o prefaciador, do livro, com observações em carta, feitas sobre o livro.

Em missão do governo brasileiro, ao ingressar na diplomacia, fez pesquisas nos arquivos da França colhendo dados que aproveitou em seus livros históricos. Observador dos fatos da 1a Guerra Mundial registrou suas impressões no livro “Quinzenas de Campo e Guerra”. De suas pesquisas nos arquivos de países estrangeiros, de sua conduta de amante da pesquisa histórica, de sua argúcia em inquirir as fontes e criar uma freqüente interlocução com os fatos já narrados pela história regional, procurando recompor imagens destruídas por equívocos interpretativos, tornou-se “um dos mais profundos conhecedores do Brasil colonial, imperial e republicano (...)” deixando “quadros típicos de nossas melhores e mais puras tradições”[5].

No inventário de suas obras destacam-se:

1.      “Inferno Verde” – 1908;

2.      “Sombras N’Água” – 1913;

3.      Quinzena de campo e Guerra – 1915;

4.      “Dom Pedro I e a Marquesa de Santos”- 1916;

5.       “Quando o Brasil Amanhecia”- 1919;

6.      “Livro de Figuras” – 1921 - “pinta”, através de uma narrativa aguda, alguns vultos nacionais;

7.      “Lume e Cinza” – 1924;

8.      “Textos e Pretextos” – 1927;

9.      “Papéis Pintados” – 1928;

10.  “Fura Mundo!” – 1930;

11.   “Gastão D’Orleans (Conde D’Eu)” – 1934;

12.  “Rumos e Perspectivas” – 1934;

13.  “No Rolar do Tempo (Opiniões e testemunhos respingados)” – 1937 – (UFPA);

14.  “Educação do Príncipe” (Pedro II) – 1938;

15.  “Heliogravuras” – 1939;

 Nas referências de  Sebastião Campos Braga, responsável pela 3a edição de “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”, um dos exemplares em que centrei minha pesquisa, há registro de quatro obras inéditas de Rangel :

1.      “Cenas de Ensaio” (teatro) – 1940;

2.      “Os Dois Ingleses” – 1941[6];

3.      “Cunhambebe” – 1943 – (incluindo o panfleto “Fora de Forma”, de 1900);

4.      Águas Revessas” (memórias) – 1944.

             Desse rol de obras escritas pelo patrono e dos resumos sobre o seu conteúdo, pude avaliar, de forma circunstancial, sua paixão pela História, pela narrativa impressionista, sua depurada forma de esmiuçar a leitura das fontes e confrontar com o “já dito” na literatura regional, extraindo daí novas versões sobre a história das gentes, a geografia das coisas, a textura da vida diante do passado e a informação a ser presença no futuro. Sua instigante compreensão do período colonial brasileiro pode ser encontrada em “Quando o Brasil Amanhecia” ou em ‘Fura Mundo” (neste, ele visita a São Paulo colonial); em “Gastão D’Orleans”, cria um perfil alentado do último Conde D’Eu, justiçando, de forma magnânima, o herói da guerra do Paraguai; em “Livro de Figuras” “pinta”, através de uma narrativa aguda, alguns vultos nacionais; em “Lume e Cinzas” e em “Textos e Pretextos” perscruta o passado interpretando os documentos esmiuçados nos arquivos e faz uma nova análise sobre o que já foi escrito em torno dos fatos e coisas brasileiras. A ficção sobre a Amazônia, “essa mata qual arame retorcido e exalando miasmas” ele “descobre” em “Inferno Verde”, de cuja profundidade de argumentos expressionistas leva Euclides da Cunha, em carta de dezembro de 1907, a dizer-lhe: “Deves, num posfácio, prometer o reverso do quadro: o livro antítese do Inferno, em que se considere, otimistamente, a nossa prodigiosa Amazônia”.

            Nas memórias de uma vida dedicada à pesquisa e à escrita analítica dos fatos, Alberto Rangel inclina-se a mexer em “Águas Revessas”, seu último livro, escrito em 1944, dando o “toque final” às suas confidências a respeito da luta de um intelectual brasileiro que ama a sua terra e sente-se inconformado com as mazelas constatadas. O sentido contrário que toma a corrente, distanciando-se da corrente normal (revessa) não escapa de sua simbologia terminológica, nesta obra memorialista de autor.

            O encontro marcado com a morte foi em Nova Friburgo, em dezembro de 1945, aos 74 anos. Um ano depois, Rangel foi homenageado com a denominação de uma artéria, no bairro do Leblon e, também, numa praça no Butantã, em São Paulo. Em Nova Friburgo, onde passou os últimos tempos, há uma rua com o nome dele, registro de sua passagem por lá.

 3. Os acessos negados e as permissões do autor

             Uma das situações que vivencia o/a pesquisador/a é a identificação de suas fontes e o meio de chegar aos documentos. Nem sempre os acessos são fáceis. Às vezes esses documentos assumem a categoria de “obras raras”. Nessa condição, tornam-se ainda mais inaccessíveis, pois o serviço dos arquivos tem uma responsabilidade a cumprir: resguardar do manuseio a raridade, garantindo a existência do documento para acesso privilegiado.

            A condição de “obra rara” da literatura escrita por Alberto Rangel mantém o público afastado desse acervo histórico. Conseqüentemente, limita-se o reconhecimento do valor e da importância de suas análises, numa fase da história brasileira que tem sido extraída de poucos historiadores clássicos, alguns com certo ranço cultural nos comentários. Deste modo, muitas informações, que poderiam somar-se às já existentes, deixam de ser incorporadas à versão clássica dos fatos histórico-políticos, omitindo o papel que tiveram outras figuras na construção da política brasileira, e que ficam perdidas no meio de análises pobres e inconsistentes.

            O que precisam os responsáveis pelos arquivos é garantir que os documentos históricos possam ser manuseados pelo pesquisador que recupera, da raridade, uma obra desconhecida, tornando-se o mediador entre o público e o autor. Esta nova condição cria um compromisso do pesquisador com o autor e com o público que é a socialização das informações e a publicização de suas análises para o reconhecimento de sua obra. O que fazer para que esses “acessos” deixem de ser negados e permitam a novos autores transformarem-se em atores do processo histórico, perdendo o anonimato e revelando o ineditismo de suas análises, é o que os pesquisadores devem começar a discutir. E este Instituto está promovendo essa possibilidade ao retomar uma velha prática entre os consócios, conforme pode ser constatado no manuseio das publicações da entidade.

 4. O amor, a História e três paixões: [[amor à História (Brasil, Brasís), às histórias (Pedro, Domitila e os seus acusadores) ]] ; e as paixões – Pedro & Domitila e a paixão de Rangel pela história privada e amorosa dos dois]]

 

“Eu sou imperador, mas não me ensoberbeço com isso, pois sei que sou um homem como os demais, sujeito a vícios e a virtudes como todos o são.”

( De Pedro I à Marquesa de Santos. Carta de 4 de maio de 1824)

 

            A obra “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares), de Alberto Rangel teve uma primeira edição publicada em 1916, pela Livraria Francisco Alves e outra em 1928, ambas impressas em Tours (França). A terceira edição é de 1969, da Editora Brasiliense (prefaciada em 1967), tendo sido baseada na 1a edição, hoje pouco encontrada e/ ou encontrada somente em bibliotecas ou museus. Tomei como base tanto a primeira edição, quanto a terceira[7]. Outra fonte de análise foi “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”, edição de 1984, da Ed. Nova Fronteira[8]. O coordenador editorial deste último livro, Emanuel Araújo, ao definir os critérios da edição (processo de atualização da grafia e outras alterações nos textos das cartas de D. Pedro I), faz duas referências importantes: a) um conjunto de cartas de D. Pedro I a Domitila de Castro foi organizada por autor anônimo e publicada pela Tipografia Morais em 1896; b) Alberto Rangel, em sua época, fizera a compilação exaustiva das cartas dos dois amantes imperiais acrescendo a obra de comentários, mas faleceu sem ter publicado o trabalho, sendo que seus originais foram adquiridos pelo Arquivo Nacional em 1970, recebendo tratamento especial para não ferir a autoria originária, embora a este fossem acrescidas mais outras cartas; ao critério de Rangel “de não reproduzir as inconveniências desses originais, ...poupada a reprodução sobeja das chordas ressumações aduzidas nesse carteio familiar”, não foram concordes os editores e seguiram a decisão do organizador de 1896 que publicou as cartas sob “a mais rigorosa fidelidade sem Cortes de pudica censura e sem folhas de parreira que falseiem ou velem a verdade”. Este livro contém: 98 cartas datadas, escritas entre os anos de 1822 e 1829; 33 não datadas; e 23 que foram acrescentadas sem comentários, portanto, de Alberto Rangel.

            A diferença entre os dois livros está na estrutura narrativa. Em “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares) a estrutura dos 15 capítulos mantém um estilo de crônica histórica e biográfica, com narrador na 3a pessoa, num tempo linear embora dialogando com os fatos históricos e com as nuances da vida pessoal de D. Pedro I e da Marquesa de Santos. Paralelamente, cria interlocução entre as várias histórias, explora a historiografia existente sobre os fatos narrados e apõe outros documentos para serem analisados e repensados pelo leitor. Os capítulos intitulam o assunto desenvolvido, desde a construção do perfil do Imperador e de D. Domitila (As Imagens) aos costumes da época (A Cultura e os Dotes, Casos e Traços, O Capítulo Ternura, A Matrona, Os Favores e a Política), explorando o momento do encontro entre os dois, as origens familiares da Marquesa, a sua condição de “teúda e manteúda”, as dimensões políticas da presença íntima da amada e sua condição de matrona, sempre chamando para cada caso os efeitos nacionais e internacionais dessa história particular. As cartas subjazem na esfera narrativa, sendo o meio de onde é extraído o subsídio do livro. Partes fragmentadas desses documentos servem de testemunhos para a impressão analítica.

Em “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”, estão publicadas 154 cartas. Rangel vê esses documentos como “uma literatura de pouca culminância e toda de ocasião” porque ela só “vale e representa para os que as escreveram ou receberam”[9]. Mas reconhece a importância histórica que as acompanha. À vista disso, a narrativa do autor analisa, em forma de nótulas, cada carta escrita pelo Imperador à sua amada, desenvolvendo, a partir das referências que este faz a nomes, assuntos, termos específicos e particulares ou a própria assinatura, uma História paralela, seja da situação amorosa entre os dois, seja da situação política luso-brasileira passada, ou daquele momento quando a independência transita como o “novo” no processo de poder político, mas que ainda é motivo de dúvida entre os brasileiros e a Corte. Há também, a partir dessas nótulas, a construção de uma genealogia familiar dos dois personagens centrais e o perfil de um “homem” convivendo num cotidiano da “vida ordinária” onde se expressa enquanto marido, amante e pai carinhoso. Os termos usados por D. Pedro, para acarinhar a amada, também são repassados pelo olho observador de Rangel, que nessa condição assume múltiplos papéis, quer seja enquanto historiador (o peso maior das observações e comentários, enfim, de toda narrativa fragmentada), enquanto psicólogo (das relações de gênero e da situação política nacional, internacional e pessoal criadas por essas relações) e enquanto um crítico (de uma certa História) que procura esclarecer o tom escabroso do acontecimento, na versão de outros historiadores e de uma literatura que omitira os fatos. Apresenta então outros documentos que rompem com as nebulosidades do “dito” e do “não dito”.

Apresenta também o perfil de “mulheres”: de Domitila, de D. Leopoldina, e /ou de qualquer outra figura que seja/esteja integrada ao percurso amoroso e político do fato histórico e/ ou que sirva para desmontar alguma farsa de historiadores malversados na sua ciência que ousaram mexericar sobre a concubina.

Agora me reporto à época e aos fatos que são o cenário desta narrativa, para situar a engenharia do historiador Alberto Rangel e sua preocupação com as duas dimensões da História (a da ciência e a particular dos personagens).

Os trezentos anos de colônia portuguesa fizeram, do Brasil, um espaço disponível para que as Cortes de Portugal, num quadro das relações internacionais em conflito, considerassem satisfatório, para amenizar a situação, a instalação do governo real na Colônia portuguesa. A vinda da família real para o Brasil, desde 1808, deslocou o eixo da vida administrativa da Colônia para o Rio de Janeiro e esboçou aí uma vida cultural intensa, mudando a fisionomia da cidade. Mas essa transferência da Coroa, que não deixou de ser portuguesa e nem de proporcionar as benesses aos interesses portugueses no Brasil, gerou descontentamentos, desde o acréscimo dos impostos nos bolsos da população, às desigualdades regionais. Não estava tão distante da elite brasileira o facho iluminista do liberalismo político, sendo este também um capítulo surpreendente nos levantes que se deram no território então luso-brasileiro. Nem a elevação da Colônia à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, por D. João, em dezembro de 1815, foi propícia para garantir a mudança de tratamento aos brasileiros, visto que sua condição de dependente às Cortes continuava a mesma. Sagrado Rei de Portugal, do Brasil e Algarves, após a morte da rainha, D. João VI retornou à sua terra em abril de 1821, deixando em seu lugar, como príncipe regente, seu filho D. Pedro. Mas as medidas tomadas pelas Cortes de transferir as principais repartições para Lisboa provocaram atrito entre a elite política brasileira que exigia melhor tratamento. A determinação da volta do príncipe regente para Portugal, alimentou ainda mais a desídia e obrigou D. Pedro a optar pela permanência no Brasil, constituindo-se como o Primeiro Imperador, em abril de 1822. Os atos de ruptura entre a Corte e a antiga Colônia desmontaram a fidelidade a Portugal. A formação de um novo ministério e a criação de um exército brasileiro operavam como fontes expressivas dessa desmontagem. Entretanto, despachos de Lisboa revogando ordens do príncipe regente apressaram os acontecimentos e deram vitalidade a uma ruptura mais formal através da proclamação da independência.

            É nos anos de sedimentação desse rompimento definitivo e do intento em estabelecer uma política brasileira sem o facho de submissão real (Império-Independência) - 1822 a 1829 – que Alberto Rangel vai integrar uma história de amor imperial, aos grandes sucessos que marcarão o período.

            Os amantes de São Cristóvão, como usualmente eram referidos D. Pedro e D. Domitila de Castro, conheceram-se em agosto de 1822 quando o príncipe regente inspecionava São Paulo, cujo povo exigia uma mudança de comportamento do Coronel Martim Francisco Ribeiro de Andrada que estava praticando arbitrariedades. Chegara ali estacando na colina Na Sa da Penha, em 21 de agosto, com um secretário, dois criados, mais o cadete Francisco de Castro Canto e Melo (irmão de Domitila) e Francisco Gomes da Silva, o Chalaça. Diz Rangel: “Para uns, D. Pedro teria chegado assim ao largo de São Francisco e circunvizinhanças, encontrando-se nessa ocasião com a última filha do coronel João de Castro; para outros, essa visita do lamecha e papa-léguas principesco se dera no ermo da várzea do Carmo, antes da cidade e de suas indiscrições, na herdade do Ferrão (....).

            Outras versões desse encontro extrai Rangel de dois testemunhos: o do irmão de Domitila, o cadete Francisco Castro Canto,  e de uma carta de D. Pedro à amada, de 27 de dezembro de 1825, na qual este diz: “No dia em que fazia três anos que eu comecei a fazer amizade com mecê assino o tratado do nosso reconhecimento com o Império”.(...). Sobre essa declaração Rangel analisa nas nótulas: “Foi, portanto, a 29 de agosto de 1822 que começaram as relações íntimas de dom Pedro com dona Domitila. Em carta de 31 de agosto de 1828, dom Pedro reassinalara essa data que naturalmente lhe seria inesquecível. Em carta sem data volta dom Pedro a lembrá-la.”[10]

            Se todos reconheciam em D. Pedro I o imperador do Brasil envolvido com as questões nacionais e com os conflitos que explodiam na estruturação e consolidação do movimento de independência – desde os movimentos autonomistas onde refluía o espírito de sujeição à metrópole e a inserreição de algumas províncias (como o Pará) contra o novo poder – à garantia, na esfera internacional, do reconhecimento da Independência pelos países onde deveriam ser mantidos os intercâmbios comerciais e econômicos, impondo-se “a tarefa de construir um Estado nacional para organizar o país e garantir sua unidade”, Alberto Rangel também considera isso tudo, mas vai apor a todos esses compromissos, que podem ser tomados como “razões de Estado”, o comprometimento do Imperador com as “razões do coração”. Para isso, mescla os documentos, inclusive fotos, que extrai dos arquivos públicos nacionais e internacionais, onde se operam os depoimentos da razão histórica, às cartas imperiais que tratam da razão romântica, criando um perfil do homem comum. Esses documentos íntimos, enquanto componente insofismável da “vida ordinária” de D. Pedro I, fornecem ao historiador a matéria prima para traçar-lhe o perfil:

“Ver assim o Imperador e lembra-lo sujeito às bronquites, abusando do Leroy e da água Vienense, com os rins inflamados, o fígado sempre congesto, areias e cálculos raspando os cálculos dessas vísceras, sobretudo o horror larval da epilepsia, a presidir os conselhos, a galopar com fúria, a poetar e musicar, a comandar, a chalacear, a escrever proclamações e declarações de amor, temerário e obstinado, onipresente e licencioso!”

 

Ou então, ao analisar uma carta onde D. Pedro I refere-se à Domitila que houvera tratado os seus filhos das doenças infantis, diz:

“Notável era a atenção acirrada do imperador pelos filhos, embora afirme em contrário algum historiador de pouco fôlego nas suas restritas informações”. Tomando outro testemunho ele diz : “(....) Walsh desembaraçamente afirma : Era ele um estrito e severo pai, mas um pai afetuoso, eles (os filhos) por sua vez o amavam e o temiam”[11].


Na intimidade de D. Pedro, tinha vez os seus desvelos de um pai extremoso e as cartas comprovam isso. Diz Rangel:

“Estava D. Pedro sempre pronto a acudir aos filhos e a medicá-los; não desdenhando lancetá-los e purga-los, aplicar-lhes parches e quiçá o instrumento molieresco das lavagens internas. (...) Escrevendo a D. Domitila ele noticia: “A Maria Isabel foi ontem vacinada por mim”; “A Mariquita tomou uma onça de Água , e nada de obrar fui dar-lhe outra vomitou, e se não obrar daqui a 3 horas tomará mais; (...)”[12].


É interessante essa recuperação dos costumes da época. No caso das formas de tratamento através da medicina caseira, estão cheias as cartas de D. Pedro e do fato dele próprio aplicar essas mezinhas, quer nos filhos, quer em Domitila. Rangel descreve cada fórmula medicinal, identificando o preparo e o modo de aplicação. Pelo seu relato, recupera-se a história das formas de tratamento médico no Brasil imperial. O interessante é que Rangel, ao registrar esses costumes, compara-os aos existentes em 1943 e até critica a mercantilização da medicina a partir daí. Vê, também, sobre isso, os costumes dos brancos, dos escravos e dos indígenas. São usados não só para a cura das doenças orgânicas, mas, como ele diz, “para quebrar a cor”[13].

É acerbamente crítico aos memorialistas que consideram o Imperador ignorante e sem cultura, o que leva Rangel a observar, pelos documentos, que D. Pedro desde criança estudara línguas e matemática. Além disso, o historiador enumera as qualidades do soberano: era sabrista, mecânico, marceneiro e torneiro, literatura e ciência detinha com certa parcimônia.

            Quanto à Domitila de Castro, era paulista, filha caçula do Coronel João de Castro do Canto e Mello e de D. Escolástica Bonifácia de Oliveira Toledo Ribas. Casara-se aos 16 anos com o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça e separara-se em 1821, por sevícias e atentado à morte, aplicadas pelo marido. Tinha 24 anos ao conhecer o Imperador, em agosto de 1822. Diz Rangel:

“Com respeito aos dons e ao desenvolvimento das faculdades naturais, que foram o apanágio de D. Domitila, podem resumir-se no feliz concurso da estética às boas qualidades de seu coração. Não vale passar a sabatina do ditado ou tabuada. Foi bela, atilada e bondosa mulher: - títulos do melhor quilate ao gênero. Pouco importa que se acompanhasse ou não, a algum instrumento, uma voz aceitável e os atrativos de mundana sobressaíam na languidez coreográfica da tirana ou nos trépidos passos do corta-jaca, que ela fez introduzir nos seus salões, animando e restaurando as danças brasileiras desbancadas pelos remeneios da gavota e do solo inglês. Alguém disse que a Marquesa lhe dera a impressão de quase não saber ler. Ela porém apenas recebeu educação limitada, que sob o ponto de vista das luzes do espírito se concedia então às pessoas do seu sexo (...). Ainda hoje, afora as meninas felizardas dos colégios de Sião ou São Vicente de Paula as normalistas e alguns exemplares mais da cultura feminina no Brasil, inclusive as poetisas e doutoras, as romancistas e bacharelas menos desajeitosas e mais espevitadas, o geral continua atolado nos limbos do analfabetismo colonial. Não seria sensato, portanto, exigirem de D. Domitila os pechosos cultivos de Aspásia Stäel ou Curie, num tempo em que se temia ensinar às mulheres ler e escrever, para que não se carteassem em namoricos...Se as donaires de corporatura da Marquesa de Santos, as linhas de sua graça espontânea e superlativa e os seus movimentos de afeto e previdência não puderam alindar e valorizar com os merecimentos de alguma ilustração, acusem a cegueira e as busões da sociedade de senhores escravagistas, apatacados e letras-gordas.”[14]

             O historiador revela-se crítico também das versões que tomam D. Domitila como prostituta e apõe documentos que as desautorizam. Trata da relação entre ela e o Imperador apontando-a como concubina, a preferida entre três aventuras de consequências mais ou menos sérias que D. Pedro tivera nesse período[15]. Diz :

 

“D. Domitila, que lhe apareceu nos entusiasmos da paulicéia, seria a fatalidade, a mancha, a traição à fé conjugal, o grande deslize do monarca. As atrizes, as fâmulas, as fidalgas, certas senhoras da classe média e as raparigas de rua tornam-se distrações, cochilos, não contam para objurgatórias, são pecadilhos de brejeiro ....Assim o entenderam aqueles que nos ataques pessoais ao Imperador fizeram da Marquesa de Santos, em partida sem tréguas, o naipe de preferência.”[16]

 

            Rangel acompanha todo o desenrolar do romance entre os dois amantes e, mais tarde, o processo de desgaste e tentativa de desvencilhamento dessa relação amorosa, tanto através das cartas de D. Pedro I e uma ou duas escritas por D. Domitila, quanto em documentos diversos – oficiais, relatórios, cartas escritas pelos chanceleres aos seus governos, imprensa, correspondência diplomática, de despachos do governo, biografias, livros de decretos, leis, alvarás, cartas régias, livros de registro de casamentos, arquivos de cemitérios, livros de memórias, nobiliários alfabético das famílias nobres, códices do Arquivo Público Nacional e de Lisboa, entre outros.

            Mas não somente para o acompanhamento do romance imperial esta documentação tem serventia. Cada capítulo do livro, cada carta analisada, contém registro da história do império brasileiro e do nascente movimento de independência que se estrutura e se consolida, em meio às histórias dos amantes e ao amor que os faz infringir as leis e determinar uma notícia pública dessa aventura. Percorre outros casos de amor clássicos e contabiliza o exemplo para demonstrar que há recorrência histórica em casos dessa monta. Dá ao leitor a impressão de que a História do Brasil não foi escrita/construída somente de uma formalidade extemporânea, mas de eventos particulares que determinaram o plano do político.  

Transforma o enfoque central de apresentar essas cartas, numa descrição densa sobre os costumes da época e o cotidiano imperial, constrói as teias de uma rede onde estão alinhadas as “pernas” da História do Brasil imperial, elaborando uma narrativa em que emerge o nível contraditório entre o homem público que conspira para eliminar as seqüelas de sua flexão ao sentimento (Domitila) e o amante que não tem coragem de romper e transformar-se em homem público[17]. Para mostrar o respeito a Domitila, pelo imperador, a mandar-lhe pêlos do bigode dentro das cartas, Rangel esboça o histórico da importância clássica dos pêlos da barba entre os antigos [18].

            Depois do enfoque sobre os perfis traçados por Rangel aos dois amantes, despojados da versão preconceituosa dos historiadores (Mary Grahan e outros) me detenho em alguns pontos demarcadores dos objetivos a que, a meu ver, se propôs o historiador ao optar pelo eixo temático das cartas amorosas imperiais e a partir delas criar vertentes para ferir o fato político e o histórico. Assim será possível referenciar a questão de gênero analisando-a nestes eixos.

 4.1) a situação do concubinato de D. Pedro I: a presença e convivência com a Imperatriz  e a relação com a “teúda e manteúda[19]

 

O enfoque de Alberto Rangel sobre o casamento do primogênito de João VI, D. Pedro I, com a arquiduquesa D. Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda Beatriz de Habsburgo-Lorena [20], filha do Imperador Francisco I e herdeira da Casa d’Austria, configura-se, ao leitor de “As Cartas....”, um estado impositivo das relações internacionais, uma praxe das alianças políticas entre os governantes imperiais para manter ou refazer os projetos de ascenção e permanência ao/do poder da coroa e ou retomar as bases desse poder muitas vezes perdido. Nesse caso, tratou-se de manobra estratégica e diplomática de D. João VI, rei exilado pela devastação napoleônica do período, para restabelecer os laços enfraquecidos entre os Bragança e Habsburgo.

Se uma questão política impôs uma aliança dinástica, contudo, há registro de cartas da Imperatriz a uma tia (dezembro de 1821) em que ela se refere ao marido como “mon Époux que j’adore; “mon bien-aimé Époux”, “les excellentes qualités de mon Époux”, resultando numa declaração de Rangel: “Amava a dissipada a D. Pedro com a materialidade de todos os sentidos, seguindo na efervescência de seu sangue ao animal e potestade, aturando-lhe o pernear e os urros o gozar nos arquejos e fartar-se nos bofes e medulas” (Rangel, 1969, p.127). E com parcimônia cria o perfil de Leopoldina[21]: “A Imperatriz lia, pintava, executava piano, escrevia e matejava, preocupações pouco favoráveis para atilar com o começo do fio, na meada das traições de alcova (...)”. “...a Imperatriz era uma louraça feiarrona. Não usava colete, trazendo sempre roupas frouxas e trajava quase diariamente as de montaria, saia ou casaco de ganga ou lila, botas, camisa e gravata de homem... (...) Tinha seus pontos de contato com a Cristina da Suécia : descaso de toucadores, prazer de montar, amiga de dissipações, licenças de linguagem e letras abundantes. Estatura meã, grosso pescoço das vienenses, um quê de corcunda, beiços polposos dos Habsburgos no rosto vultuoso e, como da irmã Maria Luisa, carregado de pigmentação vermelha, de modo a parecer sujeito a um exantema, o nariz desgraciosíssimo, cabelos espichados, olhos azuis com a expressão de assustados, a organização robusta e inelegante”[22].

Esses traços ele extraiu de cartas do ministro diplomático da Prússia e, também, de outras fontes em que estão configuradas as opiniões sobre o perfil que fazem dela, a partir de quem seja. Diz Rangel: “(...) o de Debret, que naturalmente melhorou o original, dá-lhe ainda assim a carcaça e o busto de molde a sustentarem cornijas e arquitraves, os cabelos apresilhavam-se no garavim ou redícula, onde se espetam plumas enormes; espiritualidade nenhuma nas grossas linhas de aldeã rubicunda e pesada”(1969, p. 127). (...) Walsh mostra-nos a soberana sempre esguedelhada, negligente no vestir e afirma ter ouvido muitas censuras a tal respeito”. (1969, p. 128). (....) O Marquês de Gabriac ajunta aos dotes pouco graciosos da Imperatriz o de ser um “espírito comum”. “Por sua grande ilustração, especialmente na ciência de Newton, de Hauy e de Werner, deveria D. Leopoldina trazer os olhos sempre distraídos por céus e pedranceiras, e não lhe diminuirem as torturas íntimas quando viesse a sentir o desdém com que D. Pedro, apurado de traje e asseio, a ofendesse, preferindo aos dotes intelectuais da naturalista e poetisa os adereços de uma sécia[23] e à toda mineralogia e astronomia o barro precário de bonita cara” (1969, p. 128).

Seriam esses os “defeitos” que afastavam a Imperatriz do amor do marido imperial? Na verdade, o período permitia um tipo de contrato matrimonial que dava aos homens o direito de circular entre a alcova de várias mulheres, mesmo que estas fossem casadas, embora a ordem sacramental estabelecesse o vínculo monogâmico e não a poliginia. A condição do contrato selado com as cores políticas e dinásticas agravava a solução do vínculo para as donzelas que aceitavam o trato, visto que a nobreza masculina não se importava com o tipo de mulher que seria depositária do título nobiliarquico para conviver com uma ordem sacramental cujo interesse primordial era a procriação e a reprodução de herdeiros homens para a coroa. O prazer sexual era buscado fora da alcova nupcial em aventuras consentidas socialmente. A ilegitimidade fica a cargo do registro que referia “pai incógnito” ou “mãe incognita” aos filhos que nasciam destas aventuras. A sociedade referendava o protagonismo patriarcal com base nas regras advindas do Código Filipino ou Ordenações Manuelinas (janeiro de 1603) que gerenciava os comportamentos , principalmente para as mulheres.

Mas não se pode afirmar que os contratos mantivesse “ad eternum” a artificialidade institucional e não pudessem, infringindo a regra, se transformar em paixão selada entre o casal.

Os inúmeros casos amorosos de D. Pedro I, desde os 16 anos, constam dos registros de Rangel, mas se concentram em Domitila de Castro. Em “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”, no capítulo “No Colo de Eros” (1969, p. 60-74) assinala o ambiente do Rio de Janeiro do periodo imperial entre os “casos” de viajantes e os fatos referidos em documentos, cartas, oficios e a imprensa sobre as escapadelas do Imperador. “Que a moralidade ambiente no Rio de Janeiro se apresentava bem precária, testemunham-no Cook, Martius e quantos observaram o nosso meio”. Outros testemunhos são captados de Luís de Freycinit, do Conde Aymar de Gestas, de Saint Hilaire , de Jacques Arago que apontam para os“ruins exemplos dados pela Corte de Portugal no Brasil, a piora dos maus costumes públicos, da união ilegitima à venalidade da justiça e à simonia do clero”. (1969, p. 61) Essas injunções tendem a justificar os registros de Rangel às ligações extraconjugais de D. Pedro I, quer seja com a bailarina francesa Noémi Thierry, com quem ele teve um filho (natimorto), antes que a Corte enviasse a moça de volta a Paris, às suspeitas de um affair com a irmã de Domitila, a Baronesa de Sorocaba, mais tarde transformado em incidente polícial. Debret afirma que o Imperador “se ocupou das demonstrações graciosas de algumas francesas”. O consul Delavat assinala a bandoleirice e o donear de D. Pedro: “habiendo elegido para sus galanteos entre Nacionales, Italianas, Francesas , y aún Americanas Españolas um objecto distinto cada semana, ninguna consegio fíjar su inclinacion”(...) “Na lista, que não é arbitrária e fantasmagórica, dos seus desvios de homem e bilontragem de rapaz, entra o caso escardado e verídico da Clemência Saisset”(1969, p. 64).

A lista é grande e incontável, pois Rangel aproveita o que dizem os documentos reservados e os registros da imprensa como fontes dessas indiscrições conjugais que à época eram graves para o marido ou a família da mulher Cortejada, mas atenuadas pelo tilintar das moedas no alforge de um Chalaça ou outro servidor menos formal ou a indicação imperial a um cargo público para o marido, o pai ou irmão ofendido.

Os laços amorosos que mantiveram Domitila de Castro enredada ao Imperador durante sete anos (1822 a 1829) são o mote histórico de Rangel. As cartas de D. Pedro à sua súdita brasileira são declarações de amor que referendam, ao meu ver, três fases desse envolvimento: a inicial romântica, a da rotina cotidiana e a da separação provocada pelas pressões para um novo casamento de Estado do Imperador, após o falecimento de D. Leopoldina. São peças necessárias ao historiador: “Para reparar lapsos, contraditar afirmações e preencher falhas propositadas de nossos anais, foi preciso arrancar véus corridos sobre um quarto de dormir... Explica-se de pronto, é que este era contíguo à sala do Trono” (1969, p. XI). Numa alocução a quem interessar possa, diz Rangel: “Recomenda-se a leitura de tais papéis meditáveis aos inquiridores da história, aos esquadrinhadores da psicologia, aos amigos dos documentos sugestivos e reais e os quais não se arrepiam de os saberem traçados na alcova de um paço imperial, muitas vezes entre o aparelho lavativo e a premência do bacio indispensável”. (1974, p. 35)

Para dar voz ao amante, como o fez o patrono, examino algumas dessas cartas de amor numa sequência sistemática às fases da paixão imperial e do descenso, deixando que os participantes/ouvintes estabeleçam a conexão que Rangel quis dar, criando a interlocução de D. Pedro com a amada piratiningana.

 

“Cara Titilia”.

Foi inexplicável o prazer que tive com as suas duas cartas.

Tive arte de fazer saber a seu pai que estava pejada de mim (mas não lhe fale nisto) e assim persuadi-lo que a fosse buscar e a sua familia que não há de cá morrer de fome, mui especialmente o meu amor, por quem estou pronto a fazer sacrificios.

Aceite abraços e beijos e fo... Deste seu amante que suspira pela ver cá o quanto antes. O Demonão. Santa Cruz, 17 de novembro de 1822.” (Cartas, 1974, p. 53)

 

 

“Meu amor do meu coração

Seria um impossível que eu me esquecesse de mecê e de nossa querida Belinha (para quem mando um beijo), ainda que estivese no fim do mundo.

Fui hoje ver as grandes plantações que tenho e, topando alguma caça, cacei e logo a destinei para a imperatriz  e mecê. Assim, aceite-a, meu benzinho, e igualmente o coração saudoso deste seu amante fiel e constante e desvelado. O Demonão.

P.S. Amanhã pretendo mandar-lhe mais e melhor caça. O Ponçadilha se recomenda.Todos os jantares têm sido honrados com a sua saúde.Não canse responder ou sequer mande ao Plácido a carta.” Santa Cruz, 23 de novembro de 1824. (Cartas, 1974, p.73)

 

 

Meu bem

Convindo ao meu decoro que mecê sempre apareça diferente no teatro todos estes tres dias, ai vai o colar de ametistas para hoje levar e amanhã leve o outro que eu lhe dei antes do que levou ontem. Eu passei bem, mas apesar de tudo vá sempre no teatro para eu ter o grande gosto de a ver. Seu mano Carlos, quando lá chegar, que procure o empresário ou o administrador , que qualquer eles lhe dará a chave do camaorote.

Seu amante

O Fogo Foguinho

(s/d, Cartas, 1974, p. 605)

 

Titilia, Demonão, Fogo Foguinho são alguns adjetivos usados pelo Imperador para acariciar a amada. São também marcos de uma fase que no dizer de Rangel “...cheira a lençóis usados, num leito em pouca ordem”. (1974, p.45) É o tempo dos afagos e da fase inicial em que o romance se intensifica. Mas em geral, a assinatura vem com a menção do título funcional: ‘O Imperador’.

 

“Meu amor e meu tudo...

No dia em que fazia tres anos que eu comecei a ter amizade com mecê assino o tratado do nosso reconhecimento com o Império por Portugal. Hoje, que mecê faz os seus 27, recebo a agradável noticia que no Tejo tremulara em todas as embarcações nele surtas o pavilhão imperial, efeito da ratificação do tratado por el-rei, meu augusto pai. Quando há para notar uma tal combinação de acontecimentos políticos com os nossos domésticos e tão particulares !!!

Aqui há o que quer que seja de misterioso, que eu ainda por ora não diviso, mas que indica que a providência vela sobre nós (e se não há pecado) até como aprova a nossa cordial amizade com tão celebrs combinações.

Como estou certo que mecê toma parte e bem aceito nas felicidades ou infelicidades da nossa cara pátria, por isso teve lembrança de lhe escrever.

Este seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro amigo e amante do fundo dalma.

O Imperador

P.S. Não responda para se não incomodar e perdoe a carta ser tão grande e maior que fosse ainda não dizia o que querem dizer tais combinações. 27 de dezembro de 1825” (Cartas, 1974, p.102)

 

Em 1826, o Imperador demonstra a informalidade no trato com a amante sem deixar de referir-se às atividades do cargo ocupado. Deste período, o volume de cartas é menor com registros em nótulas que referendam informações históricas extraidas por Rangel de uma considerável diversidade documental a explorar a intensidade de evidências para o registro necessário da História do império.

 

“Meu amor, minha viscondessa e meu tudo

 

Neste momento são nove horas e um quarto. Chego do meu passeio com a minha senhora, vindo da Fábrica de Chitas e Papel, que ainda o não faz , e de te entrado na chácara do visconde de Barbacena, aonde não me apeei e lhe falei a cavalo mesmo. Estimei muito em saber que mecê e nossos queridos filhos passaram bem. Bem desejei que esta lhe fosse escrita em papel brasileiro da fábrica, mas por ora ainda o não há, o que em pouco espero assim não seja. Agora, meu encanto, só me resta dizer-lhe que é e será sempre

Seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro amigo e amante do fundo da alma. O Imperador. Boa Vista, 11/1/1826”. (Cartas, 1974, p. 107).

 

A rotina da convivência do Imperador entre as duas casas e o papel que representa sua presença pública com D. Leopoldina deixam de mascarar esta situação entre os dois amantes. Os filhos aos quais alude são Izabel Maria, mais tarde reconhecida pelo pai e entregue à Corte para acompanhar os seus filhos legitimos e a educação imperial; o outro filho é Pedro, nascido em dezembro de 1825 e falecido em março de 1826.

 

A troca de cartas entre Domitila e o Imperador era constante. Em que pese Rangel sentir-se impotente diante de algumas alusões para as quais não tinha explicações, a dúvida de interpretação sobre fatos referidos por D. Pedro mantinha-se intocada. Entre as “Cartas...” surgem, contudo, dois ou tres bilhetes não datados, (alguns supostamente escritos depois de 4 de julho de 1826), assinados pela Marquesa, consignados para avaliar o nível dos colóquios entre os dois, achados no meio da correspondência do Imperador:

 

Filho

Vossa Majestade manda; farei tudo o que mo ordena. Mande vir tinta e areia para hoje se assinarem as patentes. Até a noite.

Sua Filha

 

Não esperava menos de ti, eu te agradeço. Teu filho,

Imperador

 

P.S. Beijos na duquesa, nossa filha, pelas flores.

Domitila

 

Neste caso, Rangel é mordaz, em suas nótulas nas “Cartas...” ao familismo de Domitila, supondo serem as patentes demandas de seus irmãos oficiais “gulosos das vantagens de suas promoções” (...).

A depêndencia às normas de conduta das mulheres aos seus senhores é suma soberana para Domitila. Isso é expresso em outros bilhetes enviados ao amante.

 

Filho,

Manda-me dizer se de tarde é preciso que eu vá de manto, pois não sabe esta sua amiga como há de ir. Até logo.

Tua amiga

 

Se é um tempo em que as mulheres estão orientadas pela representação social que agudiza condutas submissas e evidencia a servidão com a ausência do letramento e da instrução para elas – forma de conhecimento pendente do interesse de parlamentares transformarem seus projetos de incentivo à educação feminina em leis – não se pode incluir, neste esquematismo análitico, a brasileira Domitila de Castro e muito menos ainda a letrada Imperatriz Leopoldina. Embora não tenha sido possível avaliar com mais substância a escrita através das cartas que escreveu ao Imperador, pelo menos duas ou três destas missivas evidenciam o letramento dela. A instrução feminina da época totalmente descuidada e direcionada para o saber doméstico não isentou a moça de classe social acima da média e filha de um visconde da Corte dos principios básicos da arte de escrever e do estudo das “quatro operações”, como era a praxe do tempo.

Estas asserções se confirmam na referência de Alberto Rangel à “cultura e os dotes” das três figuras principais de sua narrativa. Procurando desmontar o que dizem, maliciosamente, certos historiadores sobre D. Pedro, acentuando mais os dotes culturais e de mulher letrada de Leopoldina comenta, sobre Domitila, não sem antes tecer-lhe uma imagem rebordada com o cinzel estético da beleza: “(....) Não vale passar-lhe a sabatina do ditado ou tabuada. (....) Alguém disse ao marquês de Gabriac , que a Marquesa lhe dera a impressão de não saber ler. (...) “...Ela, porém, apenas recebeu educação limitada que sob o ponto de vista das luzes do espírito se concedia então às pessoas do seu sexo”, assinala o íntegro polígrafo e professor Macedo. (.....) Não seria sensato, portanto, exigirem de D. Domitila os pechosos cultivos de Aspásia, Stael ou Curie, num tempo em que se temia ensinar às mulheres ler e escrever, para que não se carteassem em namoricos...” (1969, p, 28)

 

Meu bom senhor

Estimo a boa saúde de V.M. e de Suas Altezas. Meu senhor, como V.M. tem sido meu pai e de todos os meus filhos, eu peço licença a Vossa Majestade para acabar de efetuar o casamento da minha Chiquinha com o mano José, isto sendo do gosto de V.M., senão nada farei. Minha mãe ainda passa incomodada, minha tia o mesmo, mano José também hoje amanheceu com muitos tremores de frios e, assim, está de cama. Eu, graças a Deus, vou passando sem novidade.

Sou de V.M. criada que muito o estima e obrigada,

Marquesa de Santos

 

Em meio aos “casos” e pilhérias sobre a conduta pública de D. Domitila, que apontam para uma figura destemperada e agressiva, o historiador remete a outra maneira de ser da Marquesa de Santos:

“O papel felizmente discreto da brasileira se resume na criação dos filhos e na determinação corriqueira de arranjar a casa. Trabalhos de agulha, de cozinha, de puerpério, de asseio e de ordem; a agulha, o berço, a caçarola, a vassoura , o bilro. Ela não costuma afamar-se em outros. Os rasgos de sua heroicidade enxertam-se e confundem-se no rosário cotidiano e obscurissimo das medianas habituais da esposa, da filha ou da irmã. O papel previdente e mundano é a glória escassa, preferível e suficiente das nossas Penélopes. (...) A domestiquesa rege os seus programas de dependente e associada. Reflete-se esse sentimento na paciência com que a brasileira executa não somente os deveres, mas suporta certas cangas que a constrangem, a imbecilizam ou esmagam na lareira, por mais que ultimamente importações levianas do estrangeiro a comprometam e a compliquem...” (1969, p.

 

E nesse tom ele acrescenta, à sua avaliação, outros testemunhos. A exemplo, o de um agente espanhol do tempo da Marquesa na Corte: “Su caracter es bondadoso y accessible a todos los disgraciados”. Outro depoimento: “Tem genio serviçal, e é cheia de carícias para os que ela busca distinguir”.

Rangel também registra os petitórios que Domitila faz ao Imperador, subtraidos das respostas das cartas deste à Marquesa.

 

 

 

Meu amor, meu tudo,

Neste momento, acabo de perdoar toda a pena do Martins e o mandei soltar. Mande-me dizer quem está lá, pois de cá vejo duas seges.

Adeus, meu encanto e meu tudo quanto pode ser de bom, e aceite o coração deste que é

Seu verdadeiro, fiel, constante, desvelado e agradecido amigo e amante.

O Imperador

Boa Vista, 12/1/1826

(Cartas, 1974, p. 113)

 

A pessoa a quem D. Pedro se refere é um paraense, o soldado João Martins que em 1824 esteve envolvido em sedições. Rangel supõe que houve intervenção da Marquesa para a soltura do preso pelo Ministro da Guerra.

O outro detalhe da carta demonstra o controle do Imperador aos passos de Domitila. As nótulas de Rangel sumarizam esse domínio: “A Quinta da Boa Vista bem se situava para ele observar o que se passava no palacete da paulistana sua vizinha. Em outras missivas, diz Rangel, aparecem várias referencias a essas espiadelas no seu observatório distante do que que se passasse na casa de sua amiga. Seges, luz acesa, janelas fechadas lá embaixo e o imperial observador de óculos de ver de longe, à maneira do capitão na ponte da sua nave, ancorada entre os arvoredos da Quinta”. (Cartas, 1974, p. 113-114).

 

No período de 1826 e 1827 alguns fatos convergiram para um novo desenrolar do relacionamento entre os amantes de São Cristovão, por suposto, desconhecido, inicialmente, de D. Leopoldina, a primeira mulher que em dois momentos da história brasileira assumiu a regência do país[24]. Segundo Rangel “...até outubro de 1825 a Imperatriz dava mostras de não suspeitar das relações ilegítimas do marido, pelo menos D. Domitila, segundo afirma o próprio Mareschal [25], esforçar-se-ia para esse resultado (...)”. (1969, p. 122). Em uma carta à Marquesa, diz D. Pedro no post-scritum: “A Imperatriz ia me agarrando a escrever mas valeram-me as suas orações” (1969, 123).

Outras fontes, contudo, consideram que desde janeiro de 1823 o romance do Imperador transtornara a sua mulher, ao levar a amante para a Corte (Schumaher & Brazil, 2000, p. 324). Entre as fofocas palacianas rivalizando com a boataria das barbearias, a amante ia sendo introduzida por amigos do soberano nos mesmos espaços da Imperatriz. Agravos contra ela de damas da Corte, que publicamente se afastavam ostensivamente à sua aproximação, eram compensados pelo Imperador com a indicação de D. Domitila para cargos nobiliárquicos e funções importantes na Corte o que, segundo Rangel (apud Mansfeld), “causou imenso desgosto a D. Leopoldina” (1969, p. 123), embora esta se visse “obrigada a reconhecer a mencionada condessa de Santos como sua primeira camareira (...)”.

Em uma viagem à Bahia, “com vistas a fortificar a instituição do Império às províncias do Norte” (1969, p. 129), em fevereiro de 1826, e a bordo da nau “Pedro I”, o Imperador fez transportar a família real, além de um séquito de quase trezentas pessoas, com a Imperatriz, levando entre suas damas de honor, a primeira camareira, D. Domitila. Sendo raras as cartas catalogadas desse ano, me atenho na narrativa de Rangel aproveitada de depoimentos de diplomatas presentes na viagem e de sua própria verve: ‘Nas horas cálidas, esticada a lona dos toldos, D. Leopoldina movia as pedras do gamão ou deglutia bocados de um prato apreciado, sozinha, com o apetite voraz de gulosa que o era. [....] Os sentimentos do Imperador por D. Domitila, nas horas longas de bordo, vazias e calmosas, exacerbar-se-iam naturalmente. Ouviam-no tratá-la pelo diminutivo meloso e comprobatório : - “Titília” , perder-se indefinidamente em enleios com a paulista, cercá-la de atenções despropositadas”. [....]. No desembarque em Salvador, a “entourage” decomposta, a comitiva real ficaria no primeiro andar do Palácio do Governo, enquanto D. Domitila no segundo. “Pela manhã cedo D. Pedro saía a cavalo com a esposa, que montava também de escachapernas; transportando-se na caleche, à tarde com toda a família e mais a “Titília” (1969, p. 129-130).

Embora as cautelas de D. Pedro fossem confirmadas em cartas à Marquesa (“O melhor é que eu quando sair de dia nunca lhe vá falar para que ela não desconfie do nosso – santo amor – e mesmo quando for para essa banda, ir pelo outro caminho, e em casa nunca falar em Mecê, e sim em outra qualquer Madama para que ela desconfie de outra e nós vivamos tranquilos à sombra do nosso saboroso amor.”(1969, p. 134), diz Rangel que D. Leopoldina limitava-se aos murmúrios queixosos quando tinha que beijar a duquesa de Goiás, a Izabel Maria, filha legitimada dos dois amantes, desabafando em carta de outubro de 1826, ao amigo Schaffer: “Aqui anda tudo transtornado infelizmente, pois sinceramente falando, mulheres infames como se fossem Pompadour e Maintenon (!!!) e ainda pior, visto que não têm educação alguma, e ministros da Europa toda e da Santa Ignorância governam tudo torpemente. E os outros devem ficar calados e procurar apenas o maior isolamento, ficando cada vez mais almejando a independência e a tranquilidade”. (1969, p. 142).

Em 12 de outubro, D. Pedro I dá mais um título a D. Domitila, elevando-a de Marquesa a Viscondessa de Santos. “A 23 do mesmo mês a Imperatriz faz saber ao Ministro da Áustria quanto era infeliz e encarregou-o de comunicá-lo ao pai”. (...) O desenrolar do romance entre D. Pedro e a Marquesa de Santos espedaça-lhe o coração. A dedicação do Imperador, demonstrada ao abandonar o lar para ficar junto à amada que no inicio de novembro desse ano perdera o pai, cria uma nova tensão. “A paciência de D. Leopoldina cansara”, diz Rangel. “Seus nervos por fim adquiriram vibratilidade. Vendo-se só durante dois dias e duas noites, a imperatriz sentiu assanharem-se os sentimentos de que se julgava providencialmente despida. (...) Não satisfeita de recorrer às oiças do ministro austríaco, debateu-se numa cena de todos os diabos, declarando ir recolher-se à companhia das monjas da Ajuda, à espera que o pai ordenasse o regresso à Austria, quando D. Pedro, avisado da trovoada em casa acorreu bufando de furor incontinenti”. (1969, p. 145)

A cena foi dramática. Diz Rangel que: “Com a permuta dessas grosserias, coincidiram os pródromos da doença de D. Leopoldina, que aliás, desde o parto dificultoso do príncipe Pedro perdera a saúde. Apregoava-se que a origem do mal provinha dos maus tratamentos de D. Pedro e até de contusões, afirmava Gabriac” (1969, p. 146). É o inicio do fim. “Sentia a Imperatriz ao demais uma depressão enorme, vontade e medo de morrer, preguiça de pensar e as lágrimas a aguarem-lhe as faces desbotadas, sem haver lembrança que as sustivessem ou carícias que a secassem”. (1969, p. 146). 

A instabilidade da saúde de D. Leopoldina vem encontrar o Imperador já em preparativos para uma viagem ao sul, para conter a sedição no Prata, mas a essa altura, já se reconciliara com a esposa. “Esta definhava na hipocondria, aliás natural na marcha ao puerpério; chorava na tristeza sem consolo, repetia a D. Pedro que não o veria mais, falava na morte, tinha certeza do fim próximo, o coração lh’o afirmava....” (1969, p. 146). Ele parte. As forças corsárias no Rio Grande necessitam ser apaziguadas. Ela fica. Com a melhora pelo tratamento, em 29 de novembro a Imperatriz sente forças para presidir o conselho de ministros. Mas logo em seguida começaram os sintomas convulsivos. Diz Rangel:“A febre alta não remitiu. Os ministros de estado acompanhavam a enferma (...) Os médicos reuniam-se consecutivamente. (...) A Marquesa visitava diariamente a enferma, por vezes acompanhando-se da duquesa de Goiás”.(...) (1969, p. 147)

À vista do estado de saúde de D. Leopoldina, os ministros insistiram no afastamento da Marquesa de Santos da capital do Império. O ministro Lages e o Caravelas se opuseram ao considerarem uma medida injusta. Decidiu-se então “dizer à D. Domitila, alguns dias antes do falecimento da Imperatriz, que deixasse de comparecer à Boa Vista em busca de notícias, pois que isso perturbaria a doente (...)”. Esta situação foi relatada à paulista pelo ministro da justiça que furiosa, encaminhou uma carta ao Imperador relatando o acontecido. Este preparou seu retorno imediato ao Rio” (1969, p. 161)

Em 2 de dezembro às duas da manhã a Imperatriz “malparia um feto masculino” (1969, p. 147). Entre as crises de delírios começou a suspeitar que estava sendo envenenada. Com isso, relata Rangel, “A Marquesa e a Goiás encheram subitamente de horror a moribunda. Não as queria ver mais. (...) E porque seus gritos exprimiam o apogeu dessa aversão, a Marquesa de Aguiar resolveu que D. Domitila não reaparecesse na sala em que a infeccionada havia de expirar” (...). O Bispo do Rio de Janeiro , o marquês de Palma, frei Arrabida, a Marquesa de Aguiar e o primeiro marquês de Paranaguá se mantiveram à porta do quarto da Imperatriz e impediram a entrada de D. Domitila: “Tenha paciência a senhora Marquesa! Vossa Excelência não pode entrar” (...) (1969, p. 148).

Na versão de Rangel, “O populacho, sempre sensível aos escândalos e amigo de os agravar, ao saber do embargo palaciano aplaudiu na rua do ministro, principal ator penoso entremês” (1969, p. 148-149). Não houve comunicação oficial desse fato ao Imperador, salvo a correspondência sobre o falecimento da Imperatriz, em 11 desse mês.

 

O registro de Rangel ao comentário do ministro austríaco Maréschal, segundo ele, secundado por uma carta de D. Domitila ao Imperador, mostra as insídias desses dias contra a Marquesa:

“Serviram-se do pretexto da doença da imperatriz para insultá-la, proibindo-lhe a entrada no palácio, o povo fora incitado contra ela e se não fosse o ministro da Guerra e o intendente de polícia ela e os seus teriam sido apunhalados. A imperatriz e o povo eram só uma desculpa criada pelos ministros para os separar, e a intenção era colocar o imperador em tutela e governá-lo. Ela implorava seu regresso breve e sua vingança, dizendo que seus dias estavam ainda ameaçados”. (Cartas, 1974, p. 153)

E acrescenta:

“O imperador, ao receber essas notícias demonstrou aos seus confidentes um pesar sincero pela morte da esposa, dizendo que ela era uma mulher excelente e que não o havia nunca contrariado; que ele era sinceramente dedicado e sentiria sempre saudade dela. Exprimiu temores que se aproveitassem desse triste acontecimento e de sua ausência para espalhar calúnias atrozes e suspeitas odiosas, mas toda a sua cólera se voltava para o insulto feito à sua bem-amada e o perigo que ela corria, e não pensava em outra coisa”. (Cartas, 1974, p. 153)

 

Em “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”(1969) o senso investigativo do historiador Alberto Rangel explora todas as evidências documentais e circunstanciais em cartas e depoimentos de Ministros e outros tão grados que tendem a desmontar certo denuncismo de uma história privada que supera a significância das questões políticas reveladoras de estarem, os dissidentes, naquele momento, intentando afastar o soberano de seu real governo devido às insidias entre dois grupos de ódio étnico, o dos “cabras” e o dos “marotos” ou “pés de chumbo”: “Em 1826 ía funda a rivalidade no conflito do antagonismo colonial subjacente, separando aspirações e divergindo programas”(1969, p. 158). Diz Rangel: “D. Pedro estava na tradição lusa, que então via profundamente no Prata a nossa grave e irrevogável questão continental, o flanco doente, o ponto sensível....A oposição que reclamava a paz nas fronteiras do sul e tratava D. Pedro de intrêmulo e desmiolado, pródigo do sangue e dinheiro alheios, não era somente um partido de campanário, mas a população anti-metropolitana reagindo por nativismo estreito à herança dolorosa da luta cuja vitória Portugal bem sentiu indispensável à tranquilidade dos destinos nacionais” (1969, p. 158).

Enquanto os planos traçados para manter a guerra, com vistas a dificultar a formação de grandes países com a anexação da Cisplatina e o controle de toda a bacia do rio da Prata dificultavam contatos nas áreas localizadas em Santa Catarina, Paraná e o Rio Grande, a presença de D. Pedro I era vista como necessária á frente das fragatas que se mantinham nesses sítios; por outro lado, a notícia funesta da morte da esposa e as seqüelas de entreveros intraministeriais na capital do país exigiam-lhe a presença.

            O desembarque do Imperador no porto do Rio de Janeiro dá-se somente em 15 de janeiro de 1827 e, segundo os comentários do austríaco Maréschal pelo olhar de Rangel, D. Pedro chegou tomando as medidas cabíveis aos acontecimentos, tanto políticos quanto de foro íntimo. Neste último caso, fez logo o despejo do Paço de Frei Arrabida, do mordomo e da camareira mor instalados ali desde a doença de D. Leopoldina. Quanto aos ministros, primeiramente demitiu Vilela Barbosa, o marquês de Paranaguá, exonerou alguns tantos, nomeando outros para o Ministério. Queixando-se ao Ministro da França, Paranaguá confidenciou que embora se carteasse com D. Pedro I tranquilizando-o sobre a situação no Rio, “sabia ter a Marquesa enviado contra ele e outros colegas uma carta acusatória, repleta de prognósticos em relação à integridade da sua pele de galante à segurança da cidade e do Império, caso Sua Majestade não regressasse logo”(1969, p. 163). Mas na opinião de Rangel: “Se por ventura D. Domitila compôs a gravidade da situação, não mentiu. Era de fato excepcional e de negras perspectivas o momento histórico do Brasil. Criara-o a morte obstrusa de D. Leopoldina e a situação do soberano, por assim dizer de mochila às costas, ao acaso dos acampamentos de guerra. E no fim de 1826 não morrera a paixão e o espírito de anarquia de 1823 e de mais longuínguas origens” (1969, p. 164).

            No mesmo dia da chegada de D. Pedro I ele escreve uma carta à D. Domitila, ainda a bordo da nau “Pedro I”, vinda do porto de Desterro, Santa Catarina.

 

“Bordo da nau Pedro Primeiro

entrando no Rio de Janeiro

 

15/01/1827

 

Minha querida filha do meu coração e minha amiga

 

Teu Tio Manuel Alves, meu íntimo amigo e inseparável companheiro de dia e de noite , é portador deste. Ele, minha filha, te contará os incômodos, sofrimentos, aflições, pesares e, mais que tudo, o desgosto pela morte da minha adorada esposa. Saudades e cuidados em ti e em todos os meus, digo, nossos filhos me têm feito quase enlouquecer, chegando a ponto de não comer três dias quase nada e não dormir. Ele te contará do célebre sonho que tive em 11 do mes passado, que desde então data a minha aflição e disposições para vir unir-me contigo junto de teu peito e sobre ele depositar minhas lágrimas. Eu tomo nojo por oito dias e esta a única razão que faz com que eu não vá logo, como desejava, abraçar-te e mais nossa Bela, que tanto cuidado me deu, e sim vá à noite, como teu tio combinou contigo. Pedro Primeiro que é teu verdadeiro amigo, saberá vingar-te de todas as afrontas que te fizeram, ainda que sua vida lhe custe. É ao mesmo tempo com todo o gosto e verdade que tenho o prazer de poder dizer com toda a franqueza e contentamento que

Sou o teu mesmo amante, filho e amigo fiel, constante, desvelado, agradecido, verdadeiro, digo outra vez amante fiel.

O Imperador

 

            Esta carta documenta as juras de amor de D. Pedro a D. Domitila em uma fase de tensão pelas acusações de ter abandonado a esposa doente e a morte desta exacerbando a crise politica que esse episódio ocasionou. Revela também a convivência que se estreitará entre os dois amantes, testemunhada pelo cartear quase diário , cuja leitura registra desde o juramento de amor eterno e fiel do missivista à amada até “leves e passageiros motivos de zangas, nugas[26] de momento mas quão pressagioso...” (1969, p. 170). Outros temas de ocasião são repassados como os indicios de ciúme entre eles, a normativa de conduta a ser observada, a oferta/envio de regalos – da caça às joias –, o cuidado com a saúde dos filhos e da amada, a maneira de aplicar remédios caseiros, justificativa de petitórios imperiais, simbólicos versos eróticos e uma ou outra frase lasciva, permeando uma sintonia com a rotina vivenciada de sensualidade não tão secreta, mas ainda camuflada pelos dois parceiros. Nessas missivas, o registro do tempo, da hora, do lugar do encontro e os meios para serem seguidos pela Marquesa a uma ordem do amado são recorrentes e sistemáticos.

As juras românticas dos apaixonados de São Cristovão seriam postas à prova ao longo de pelo menos dois anos (1927-1929), diz Rangel. Inicialmente houve murmúrios quanto à probabilidade do Imperador fazer de D. Domitila a Imperatriz do Brasil, suposição suscitada pelos Ministros austríacos Maréschal e Metternich, decorrente dos últimos acontecimentos do final de 1926, mas descartada pelo próprio Imperador, em meados de 1827, convencido da impossibilidade de tomar uma atitude de foro particular pela sua posição de estadista. Devido a isso, aproxima-se desses nobres para acertarem, junto ao sogro D. Francisco I, um novo contrato nupcial com alguma princesa estrangeira interessada, embora isso não representasse uma perspectiva de ruptura imediata com a Marquesa, visto que a fleugma do sentimento entre os dois não arrefecera confirmado pelas cartas e pelo que destas é possivel extrair em referência aos encontros diários entre os amantes.

Mas em dado momento, D. Pedro externou à Marquesa de Santos a causa do casamento de Estado. Embora este fato não seja um assunto em registro nas cartas pesquisadas, os relatórios de Maréschal, desse período, apontados por Rangel, dão notícias das conversas entre eles e a busca pela nova protagonista do Paço Imperial. Da imposição de uma nova conduta para conseguir ser acreditado entre os chefes de Estado cujas filhas se interessassem pelo viúvo imperial, reservou-se o Imperador às confabulações com o ministro austríaco. Uma das nótulas de Rangel a uma carta de D. Pedro I demonstra as tramas para a separação de D. Domitila e a garantia devida às filhas que tinha com ela: “(...) É impossível expulsar a Marquesa, não posso fazer-lhe esta proposta no estado em que se encontra. Depois do primeiro golpe que lhe dei anunciando minha determinação de casar novamente e a promessa de não vê-la mais, o que cumprirei religiosamente, mandá-la embora seria causar uma revolução e provocar a morte da mãe e da criança. Não posso cometer um ato tão bárbaro que ninguém aprovaria nem teria o direito de exigir de mim”. (...) (Cartas, 1974, p. 218)

 

4.1.1) O Casamento de Estado e a Conspiração para o Rompimento do Romance

 

Inicia-se a terceira fase do que me foi possível avaliar nos textos de Alberto Rangel, sobre os dois amantes como protocolo de uma história particular embebida nas exigências da história oficial: afastar do convívio imperial a Marquesa e a filha, a Duquesa de Goiás, mandar um Enviado Extraordinário da Corte com instruções secretas para tratar do contrato nupcial, acertar as vantagens pecuniárias com D. Domitila.

Se o leitor de Rangel seguir avaliando o conteúdo das cartas do Imperador nesses dois anos em que se deflagrou a ruptura do envolvimento imperial com a cortesã, vai se surpreender com o tratamento do amante, sempre apaixonado, sempre ditando as normas do comparecimento público dela e a sua presença à socapa quase todas as noites na casa da amada. Ferir o assunto da dissolução da amizade há poucas entradas nessa correspondência, até ao final de 1827. É sugestivo que em uma longa carta de 14 de outubro à “Minha querida filha e amiga do coração”, D. Pedro refira ao final que (....) “Nem por sombras desconfies de mim, porque por minha desgraça bem me basta ter-te perdido para sempre com o casamento e ter-me atormentado por tudo que tem havido para te perderem”. (...) (Cartas, 1974, p. 291). Essa entonação vai até meados de 1828, quando a decisão de romper em definitivo é uma medida sine qua non para que o protocolo oficial circulando pela Europa seja levado a sério pelas princesas casadouras. Houve duas desistências, muitas conversas entre os diplomatas austríacos e D. Pedro, mas, de concreto somente quando a decisão da Marquesa de sair do Rio foi sistematicamente postergada nas datas-limites impostas que lhe foram impostas oficiosamente. O processo de expulsão fortaleceu-se gradual mas cruelmente, como pode ser notado em uma carta sem cabeçalho amoroso, de 22 de maio de 1828:

 

“Marquesa. Não repare que eu, a bem do meu negócio do casamento, lhe torne a escrever. Minha filha infalivelmente sai até dois de julho, e por isso eu muito desejo que a Marquesa saia pelo menos seis dias antes, o que vem a ser 26, porque muito convém que os que vão possam dizer “a Marquesa ja saiu” e não “está para sair”. Todos acreditarão o que aconteceu e não o que está para ser, que pode não ser, e o negócio é grave e muito grave” (...).de 22 de maio de 1828: (Cartas, 1974, p. 458).

 

“Dona Domitila intimada para retirar-se da Corte em outubro de 1827”, diz Rangel, “deixa-la-ia por um momento a 27 de junho de 1828. Para não ser de todo pontual, apenas um dia a mais do que a última data exigida por dom Pedro”. (Cartas, 1984, p. 459).

A rejeitada Marquesa, contudo, insistia em retornar ao Rio a qualquer tempo, desde que fora despejada para São Paulo. Em dezembro de 1828, D. Pedro escreve uma carta em tom rispido à Viscondessa Bonifácia, mãe dela, exigindo o respeito devido à nação:

“Neste instante recebo uma carta de sua filha Marquesa, dizendo sem mais cumprimento que saía para cá no dia 23 deste. Eu protesto altamente contra e em nome de toda a nação, a quem a sua presença faz mal nesta Corte e província, por causa do meu casamento. E protesto mais, que provas não equívocas e nascidas verdadeiramente de um homem de honra e de um soberano provarão e farão ver ao mundo inteiro minha imperial desaprovação”. (...) (Cartas, 1974, p. 475)

 

D. Domitila retorna ao Rio em abril de 1829. Nas cartas percebe-se regozijo e bom tratamento a quem não era mais benquista na Corte por condições adversas, mas ainda permanecia a grande favorita do amor do Imperador. O casamento com d. Amélia Augusta Eugênia Napoleona de Leuchtenberg-Beauharnais, Princesa da Baviera , deu-se por procuração em 2 de agosto de 1829, na Capela do Palácio de Leuchtenberg , com o noivo sendo representado pelo marquês de Barbacena, chegando ao Brasil em 16 de outubro de 1829.

No capítulo IV “Casos e Traços” de “Dom Pedro Primeiro e a Marquesa de Santos”, Alberto Rangel dá a sua declaração sobre os dois personagens:

“O Imperador foi súdito e a Marquesa soberana da ternura. Nos mistérios do instinto cego que os abraçou e dominou, nas desordens conclamantes das relações ilícitas, a extrema afetuosidade ajudou-lhes a queda e o envolvimento pecaminosos. Foi assim que os dois náufragos flutuaram, derivados no fio da mesma onda de emoção que lhes chofrou nos peitos, fazendo-lhes esquecer a pragmática, o estado social e os principios éticos e não consultaram as horas e os dias tão ardorosos ambos quanto imprudentes e culpados”... (1969, p. 59)

 

Findou-se um tempo de amor?

Mexer com o tempo da História é conviver com a incerteza.

Alberto Rangel como historiador arguto e prespicaz à vista de tantas fontes, de tantos testemunhos de tempos de historia e fatos que remetem às paixões entre os que construíram a sociedade política do Brasil, deixa aos seus leitores esta pergunta sem resposta.

 

5.      Uma Conclusão Possível : as cláusulas de “Rosebud”

 

No filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles, o milionário americano Charles Foster Kane pronuncia ao morrer, com dificuldade, uma palavra enigmática: rosebud. É a partir dela que será desencadeada toda uma revisão da vida do magnata para identificar o significado daquela palavra que, ao final, se descobre estar escrita num trenó com o qual ele brincava em criança. O que quer dizer ? Por que um homem de vida pública intensa lembraria de um objeto desses nos seus últimos momentos?

Afora a lição estética que ficou da realização, restaram duas lições a serem percebidas pelo público: a primeira está na condição paradoxal de se tratar de um fato sem testemunhas e, portanto, desconhecido de todos. A segunda é sugerida pelos planos que abrem e fecham o filme: a visão noturna de um palácio – Xanadu, onde mora o milionário, cercado por muros, grades, cercas de arame, enfronhado em rochedos e focalizado de forma que sejam percebidas sua magnificência e solidão – onde uma chaminé exala uma fumaça escura, a câmera, encerrando a sua passagem num travelling para trás , vai mostrando uma placa onde se lê a advertência: “no trespassing”.

            Neste fecho do meu elogio a Alberto Rangel, faço analogia com o filme de Welles, ao ler seus escritos historiográficos que traduzem a obra de toda uma vida. Para mim, as cláusulas de Rosebud se cravaram ao que eu ainda não sei dele, apesar de ter descoberto sua obra. Quem é Alberto Rangel?

Se o patrono não conseguiu decifrar o enigma de D. Pedro e D. Domitila em tantas fontes mauseadas, escavacando uma parte da Historia do Brasil para atingir outras histórias, eu avaliei que sua contribuição para a história desses dois amantes respeitou o “no trespassing”.

            E assim, tal como Orson Welles, Alberto Rangel evidenciou uma condição humana indevassável: o mistério de sua “rosebud”, o que o individuo faz de si mesmo.

 

 



§ Texto originalmente elaborado como discurso de posse de consócia efetiva do IHGP.

§§ Professora Associada 1/FCS/IFCH/UFPA. Doutora em Ciência Política/ IUPERJ/UFPA. Sócia efetiva do IHGH. Cadeira no 1;Patrono: Alberto Rangel.

[1] Revista do IHGP, vol. XV, 1968, pág. 61.

[2] Cf. idem, ibid., p. 63.

[3] De uma “Notícia Bio-Bibliográfica do Escritor”, escrita por Sebastião Campos Braga, que refundiu e revisou a 3a edição da obra “Dom Pedro I e a Marquesa de Santos”, em 1969,  para a Editora Brasiliense; e extraída de ROQUE, Carlos. Enciclopédia da Amazônia, Belém (PA): Amazônia Editora Ltda., 1968, 5o  Volume.

[4] Cf. Braga, 1969, p. 327

[5] Idem, ibid., p. 327.

[6] A coleção da Biblioteca da UFPA, registra que este livro foi publicado em 1972.

[7] Facilitada pelo empréstimo da obra da Profa. Maria de Nazaré Sarges, a quem agradeço penhorada.

[8] Esta obra herdada da biblioteca de Pedro de Castro Álvares por seu filho Pedro Veriano.

[9] Cf. Rangel, 1974, p. 28.

[10] Cf. Cartas de Pedro I ....., 1974, p. 103.

[11] Cf. Cartas, 1974, p. 243.

[12] Cf. Rangel, 1974, p.

[13] Cf., Rangel, 1974, p. 124.

[14] Cf. Rangel, 1916, p. 29.

[15] Sobre isso, cf. a nótula no 1, de “Cartas ..., 1974, p. 323.

[16] Cf. Rangel, 1916, p. 72.

[17] Cf. Rangel, 1974, p. 286.

[18] Idem, ibidem.

[19] Segundo o Direito, indicam a concubina tida e mantida as expensas do parceiro (Cf. www.marioprataonline.com.br/). Para a História: “Teúda e Manteúda eram duas irmãs gêmeas, loiras e lindas, naturais de Nápoles, no século XVIII, e ficaram conhecidas porque uma não conseguia ir para a cama com um homem sem a outra”.

[20] Leopoldina foi Arquiduquesa D'Áustria; Princesa Real Consorte de Portugal Brasil e Algraves (1817-1822); Imperatriz Consorte do Brasil (1822-1826); Rainha Consorte de Portugal (1826).

[21] Aqui extraido das duas fontes bibliográficas principais

[22] Cf. Rangel, 1969, p. 126-127.

[23] Mulher elegante, mas afetada, presumida. Cf. Dicionário Aurélio- Século XXI.

[24] Em agosto de 1822, presidiu o Conselho de Estado durante o período em que d. Pedro esteve em São Paulo e às margens do Ipiranga bradou o grito de indepêndencia. E  em novembro de 1826, com a viagem de d. Pedro ao sul, para avaliar os conflitos cisplatinos.

[25] Filipe Leopoldo Wenzel, Barão de Maréschal, era ministro da Legação Austríaca no Brasil, estando mo país desde 1818 até 1830. Era  muito dedicado e confidente (segundo algumas das fontes de Rangel) da Imperatriz D. Leopoldina. Era delegado da Santa Aliança.

[26] Quer dizer ninharias.