terça-feira, 13 de outubro de 2020

CÍRIO, OUTUBRO 2020

         Viver um “normal” diferente é a voz corrente das pessoas neste 2020, com formas de ser, metas, objetivos articulados em novos formatos. O mesmo ocorreu com o Círio de Nazaré, em Belém (PA). Uma nova maneira de participar, para alguns, reflete a presença na processão que nunca deixou de ser e estar. Como abaetetubense, ainda criança, a cada ano meus pais expressavam vontade de “neste ano vamos pro Círio”. E passava o tempo e a viagem não se concretizava porque teria que ser “a família inteira”. Não havia televisão para admirar as imagens, mas o rádio nos dava as notícias. A voz que ouvíamos (PRC-5) dizia: muita gente, muitos carros de promessas, procissão interminável, fogos, mais fogos... E nós: aonde? Meus irmãos e eu não conhecíamos a cidade de Belém, só meu pai, comerciante, que vinha mensalmente fazer suas compras de produtos nos armazéns, para a revenda aos seus fregueses. E onde é esse lugar por onde a Santa passa? É no Porto do Sal... é na 15 de Agosto... é no Largo da Pólvora... é no Largo de em Nazaré... E por ai íamos acompanhando os relatos de dois ângulos: a narração do rádio e a do meu pai explicando os locais da passagem da Santa.

Em 1953 foi o tempo do meu “novo normal”: a viagem a Belém no motor da linha (o “Pery”, de Carlos Paes), vislumbrar o ambiente da cidade, o cotidiano do internato e, finalmente, conhecer e viver o Círio. Com as Irmãs Filhas de Sant’Ana do Colégio Santa Rosa acompanhávamos a procissão, de uniforme de gala ou o tradicional do diário. Nesse dia, as normas do internato eram totalmente desconsideradas porque, cansadas, tínhamos direito a almoço diferente, à sesta, às brincadeiras que quiséssemos, fuga para os esconderijos que descobríamos, enfim, o final do dia do Círio era antológico para quem ficava no colégio sem ter parente na cidade para passar esse dia.

Outro “novo normal” de presença no Círio foi quando as minhas crianças já estavam no ponto de acompanhar a procissão. Os preparos, os medos de nos perdermos uma das outras, a sede, o sol, o cansaço estavam sempre no alerta dos outros, mas a vontade de acompanhar era tanta que nada disso era empecilho para nós. Felizes, cada momento parávamos e eu perguntava se queriam retornar para casa. Ninguém queria.

Assistir a processão passar era tradição, assim, não entra na história do “novo”. Salvo avaliarmos o lugar de onde víamos a Nazica e seu cortejo magistral – a casa dos amigos Alexandrino e Lourdes Moreira que já estão num outro plano de vida.

E neste momento um “novo normal” quebra as estruturas da tradição de mais de 200 anos de caminhada na procissão do Círio e desloca o estar físico humano da grande aglomeração do povo paraense para viver outras estratégias com vistas a desmontar a não-presença no cortejo da Nazica, mas permanecer nela de outra forma, por meio do ato de Fé. A pandemia desfez promessas, levou para outro plano milhares de romeiros, afastou a maioria dos familiares do almoço tradicional, induziu a desconfiança no sagrado, rejeitou planos e programas já delineados. Mas, este Círio, fortaleceu o poder do ser humano em si próprio, na estratégia de se manter vivo para saudar, ainda uma vez, o “carnaval devoto” de Dalcídio Jurandir naquele emblema de fé que carrega a força do povo paraense na reconfiguração dessa festa cultural, agora num plano virtual. Este “novo normal” num momento tão grave para o povo brasileiro reinventa um “novo Jesus” (se é possível dizer assim) aquele que expulsa os vendilhões do Templo ao dizer: “Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos’? No entanto, vocês fizeram dela um covil de ladrões.” As chicotadas de Jesus neste momento da homenagem à sua mãe Maria de Nazaré está aí para quem se propuser a analisar as rupturas, neste tempo do Círio, com um certo comércio que arrasta a fé para pensar valores comercializados. Pensar a força interior e se despojar dessas quinquilharias de uma cultura festiva tradicional, alavancou novos processo de análise sobre um sistema capitalista dominante neste momento de luz interior. Pensemos nesse “novo normal” que nos foi dado em função da dor, do sofrimento, da saudade, do isolamento social (para alguns/as), mas acima de tudo, da consciência sobre a reconfiguração desse suposto “sentimento religioso” empenhado em outros ângulos, menos na fé, na esperança, no amor.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

AS CAMINHADAS NO ISOLAMENTO SOCIAL

     

Arte - Ana Branco 

Cuidados. Tarefas doméstica. Horários de medicação. Leituras de notícias rápidas. WhatsApp/postagens recebidas e respondidas. Lives familiares. Lives de aniversários. Lives de programação temática. Lives de estudos. Lazer= filmes, seriados, minisséries, leituras. Isolamento social a dois = tarefas duplicadas.

Esses são alguns pontos da situação que tem sido vivida há seis meses. Algumas pessoas têm como mudar essa rotina pela lógica da necessidade de trabalhar fora de casa ou do acesso aos supermercados etc. Somos do grupo de risco e de uma classe social de servidores públicos aposentados. A sobrevivência alimentar e de medicamentos tem a aquisição de uma pessoa da família e deixados na porta do apartamento. E assim vamos vivendo, convivendo e aprendendo macetes para burlar certas rotinas que cansam e estressam. Lembrar a infância, a adolescência, o ontem nas aventuras relevantes e às vezes incômodas, outras vitoriosas, algumas que se tornaram históricas e sempre vivendo esse reviver da memória onde não deixa de pontuar a presença de pessoas queridas, que hoje estão nas caminhadas em outro plano.

O marcador geracional importa. Os/as idosos/as que receberam educação tradicional em termos de classe, raça, gênero e geração em funções sociais naturalizadas submetidas aos rigores de um sistema patriarcal que subsumia a interseccionalidade e mantinha a naturalização do olhar e o viver para a diversidade sentem o ontem se apagando conscientemente e o hoje se renovando criticamente. Alguns/as percebem que avançaram nas ousadias mesmo ainda crianças, com o olhar crítico mostrando o quanto a educação familiar, escolar e religiosa submetia o conhecimento das coisas e a vivência dos valores, alguns reconhecidos, hoje, como tão discriminadores. Outros/as permanecem no ritmo que acreditam ser um ciclo natural da vida de homens e mulheres. E os reflexos da idolatria pelas regras patriarcais tornadas tradicionais e “naturais” ampliam a interpretação de que os valores sociais são ideologias nocivas à humanidade. O caráter dessa negação do olhar crítico ao desvalor humano renega o sentimento do afeto e toma outro rumo.

Nesta atual conjuntura, o cinema tem sido mais do que companheiro, assumiu uma outra dimensão na vida a dois, embora fosse um eixo básico das conversas e reflexões sobre estética, experiências de vida, foco de captar imagens a serem preservadas. Os filmes que assistimos e alguns em revisão têm contribuído para uma outra configuração nessa arte. E as perguntas surgem: por que gostamos tanto deste ou daquele filme? A atitude dos diretores “por trás das câmeras” tem mostrado a amplitude do sistema de repressão às mulheres, aos povos indígenas, aos negros e negras, aos que são apresentados como “desviados”. E muitas vezes deixa-se de refletir sobre o impacto dessa arte tão reforçadora de comportamentos vis, perversos, sabotadores de ações humanas. Quando iniciamos as exibições no Cine Clube da então APCC sempre discutíamos, no final, o tema e a estética dos filmes. Francisco Paulo Mendes, Benedito Nunes, Orlando Teixeira da Costa, Acyr Castro e os outros cineclubistas jovens, no caso, o Vicente Cecim, José Otávio Pinto, Reinaldo Elleres, Raimundo Bezerra e outros dessa primeira fase sempre contribuíram com esses debates. Alexandrino Moreira deu a força para novos programas com filmes que não eram exibidos comercialmente, em seus cinemas 1, 2 e 3. E passamos a fortalecer a crítica ao status quo ameaçador dos valores humanos. Hoje, Marco Antonio Moreira segue construindo um forte caminho no CC-ACCPA.

Tenho assistido a uma variedade de filmes “noir” e policiais de coleções adquiridas por Pedro Veriano há algum tempo e ainda hoje. Num próximo momento vou tratar das personagens femininas nesses filmes.

O isolamento social precisa ser produtivo para sairmos mais fortes desse embate. Ansiedade, insegurança, estresse não só pelo esforço para fugir ao cansaço psicológico que tem se fortalecido também em tantas políticas de governo fascista, negacionista e genocida. A superação é difícil, mas não impossível. Vamos unir forças e ter esperanças.