sexta-feira, 23 de outubro de 2015

LAURO SODRÉ E A REPÚBLICA NO PARÁ


Lauro Nina Sodré e Silva , Primeiro governador constitucional do Pará : de 24 de junho de 1891 a 1º de fevereiro de 1897


A presença de Lauro Nina Sodré e Silva no Pará está registrada em toda a história política da Primeira e da Segunda República. Encima monumentos públicos como nomes de edificações, de ruas e escolas. Vejo, entretanto, total descaso dos estudos históricos nas escolas de ensino médio sobre figuras e feitos paraenses. Poucas pessoas, ao serem questionadas, sabem sobre quem foi esta ou aquela figura pública do passado embora reconheçam o nome nos espaços da cidade. A meu ver as escolas deveriam incluir uma matéria sobre os fatos políticos paraenses e seus personagens. Sabe-se muito mais de entes políticos do sul e sudeste e silencia-se sobre os nossos próprios fatos. Meu registro hoje é sobre um desses episódios.
No último dia 17/10 registrou-se o aniversário de Lauro Sodré, nascido em Belém, em 1858, e falecido no RJ, em 1944. Por não ter recursos para frequentar uma das escolas de Direito existentes no Brasil, conforme era sua vontade, seguiu a carreira de engenheiro do Curso Militar do Brasil, na Praia Vermelha. Entre seus professores, Benjamin Constant fora o responsável pela adesão dele a uma das correntes do positivismo, linha filosófica que influenciou as idéias do século XIX, no Brasil, e que tinha sido um marco no meio da juventude militar. A corrente seguida por Constant e seus discípulos não se alinhou à ortodoxia dos princípios do Apostolado Positivista liderados por outros intelectuais brasileiros, que favoreciam a solução republicana do movimento brasileiro condenando a realeza hereditária através das leis naturais, assumindo a via pacífica do "evolucionismo", e não através de uma revolução. Os positivistas não ortodoxos, ou seja, os que não seguiam a linha rígida dos princípios de Comte, como Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, apoiavam a via insurrecional e foi esta linha a adotada por Lauro Sodré.
Servindo no 4º Batalhão de Artilharia, em 1884, ele polemizou sobre religião e política, através das colunas de “A Província do Pará", usando o pseudônimo Danton, e do jornal "República", como Diderot. Nessas polêmicas, enfrentou duas figuras paraenses de prestígio, o Bispo Dom Macedo Costa e o Conselheiro Tito Franco de Almeida. Era maçon, criando, com isso, zonas de atritos com os católicos ultramanos, entre os quais se incluíam as duas figuras em referência.
Lauro Sodré foi republicano histórico, vindo da primeira hora das lutas pela implantação desse regime. Com Justo Chermont, Paes de Carvalho, Manuel Barata e outros, fundou o Clube Republicano. Em 1890, foi eleito para deputado à Constituinte Federal, sendo escolhido, em 1891, o primeiro governador constitucional do Pará.
A historiografia regional silencia sobre possíveis conflitos havidos por ocasião da promulgação do regime republicano no Pará, relatando apenas os fatos convencionais da tomada do poder dos monarquistas pelos republicanos. Mas estes ocorreram, quer entre os militares, quer entre os civis, aflorado mais fortemente através do episódio que ficou conhecido como o “levante do Cacaolinho” e que é registrado no livro “Um Democrata[  ] Os sucessos de junho ou o último motim político do Pará” (Belém: Imprensa de Tavares Cardoso & Cia, 1891).
Este confronto entre as forças republicanas e monarquistas e alguns membros do clero paraense, coincidiu com o período de governo do Capitão Tenente da Armada Huet de Bacelar, gaúcho que veio nomeado pelo Governo Provisório para substituir Gentil Bittencourt, na interinidade do governo estadual, desde a nomeação de Justo Chermont para o Ministério das Relações Exteriores.
Huet de Bacelar adotou medidas de repressão contra os adversários do seu governo, entre os quais os chefes dos jornais "O Democrata" e do "Diário do Grão Pará". Estes dois jornais foram apedrejados e os jornalistas agredidos, sendo acusado o governador, como mandante das violências. No dia 11 de junho de 1891, momento de instalação do Congresso Estadual que indicaria Lauro Sodré para o Governo Constitucional, ocorreu uma insurreição armada conhecida como o “levante do Cacaolinho”. Segundo versões encontradas na história oficial do Pará, este levante armado, encabeçado por Francisco Xavier da Veiga Cabral, fora perpetrado pelos chefes do Partido Democrata e visava "impedir a reunião do Congresso, depor o Governador Huet de Bacelar e substituí-lo por Vicente Chermont de Miranda, chefe daquela agremiação política". A versão dos democratas para os fatos, registrado no livro, referencia sérios conflitos ocorridos ainda no período do governo de Justo Chermont contra os militares, denunciando o "spirit of corps" da categoria que se considerava responsável pela vitória do movimento republicano e que fora preterida na Junta Provisória do Pará.
Entre outras motivações que levaram ao “levante do Cacaolinho” sobressaem denúncias às eleições para a Constituinte Federal e Estadual, quando o Partido Democrata Republicano, apesar das alianças com as demais forças partidárias locais, como Partido Nacional Católico, foi derrotado fragorosamente pelo PRP Radical. Faz referência às condições em que se acham, naquele momento, as forças estaduais republicanas, e utilizam-se dessa denúncia para justificar e supervalorizar a importância das forças monarquistas subjacentes no Partido Democrata Republicano para conter a "insegurança do povo", pois, só "os chefes democratas" foram capazes de demonstrar "energia e patriotismo", num momento de agitação. A incúria do então nomeado governador Huet de Bacelar, contra os adversários de um modo geral, confluiu para o desfecho desse motim.
Este fato levou à prisão os considerados responsáveis pelo movimento armado, Vicente Chermont de Miranda, Augusto Américo Santa Rosa, Francisco Xavier da Veiga Cabral, e outros. Contra Chermont de Miranda e mais os majores reformados do exército e heróis da Guerra do Paraguai Frederico Gama e Costa, José da Gama e Silva e seu filho José Caetano, foi decretada, pelo governador, a deportação para a Europa.
A Constituinte do Pará foi promulgada em 22 de junho de 1891, encerrando-se assim o período em que as nomeações dos governos estaduais eram feitas pelo Governo Provisório Republicano. Um dia depois, os constituintes elegiam por unanimidade o Governador Lauro Sodré, que assumiu o cargo em 24, permanecendo no governo até 1º de fevereiro de 1897.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

ONDE ENCONTRAR O CÍRIO?

A Berlinda com a imagem da Virgem de Nazaré 

Nesta interrogação há muitas histórias. O verbo pode se transformar em conceito e se complexificar no que pretendo tratar sobre um evento cujos extremos – entre o que se considera sagrado e o que demonstra ser profano – em meio a vivências pessoais, memórias, práticas acadêmicas e as sinuosas hipóteses na extração de seu significado tendendo a evidenciar os muitos lugares em que o Círio possa estar.
A começar pelo termo originário – Círio – cujo verbete, na Enciclopédia Brasileira define-a da palavra latina cereus e apesar da dimensão da linguística mais conhecida – grande vela de cera – também reporta à rubrica religiosa – “procissão em que se leva, de uma localidade para outra, uma dessas velas”.
O que tratamos aqui sobre Círio está mais ligado à segunda dimensão por se constituir em duas posições – uma procissão que transporta uma imagem representando uma santa católica e as velas que iluminam os caminhos da passagem dessa procissão, tanto como registro de abrir espaços da caminhada quanto para reverenciar a imagem santa.
Na verdade, a recorrência histórica dessa festividade em Belém (PA), sobre o Círio de Nazaré tem sido bastante estudada, apresenta muitas versões, apreendendo-se de cada uma destas mais um capítulo de descobertas sobre esse evento, analisando-se a proximidade com outra festividade europeia. Com essas argumentações que aportam na história paraense vão sendo incorporadas ricas visões sobre fatos evidenciando pessoas ilustres e humildes devotos, objetos, valores, histórias simples e de guerra, costumes, novos atores entre os velhos da tradição e os novos da devoção.
Das teias de conhecimentos que procuram sustentar as análises de observações e dados coletados e sistematizados, o registro sobre o Círio percorre escritas as mais diversas. A História é então interpenetrada pela Antropologia que se abebera da Sociologia e adentra a Ciência Política não sem atravessar outras áreas de conhecimento como a Filosofia, a Geografia, o Turismo, a Economia, a Gastronomia, a Comunicação e outros roteiros acadêmicos que circulam como propulsores das pesquisas em torno desse fato social. Das teorias científicas aos procedimentos metodológicos cada eixo desses leva a várias formas de investigação onde categorias sociais se tornam os eixos fundantes das interpretações que ajudam a analisar desde a memória à indústria cultural, dos ritos aos mitos, da culinária à convivialidade familiar construindo-se laços de sociabilidade e marcando o processo identitário do povo paraense.
Na minha perspectiva reconheço alguns lugares em que posso encontrar o Círio. Primeiramente a memória da descoberta do que essa festa representava e das expectativas sobre ela enquanto moradora de uma cidade no interior do Estado. Alguns meses antes de outubro – o mês da festa - minha mãe projetava seu interesse em “passar o Círio em Belém”. Aquelas alturas nós já tínhamos parentes moradores nessa cidade e que nos dariam hospedagem. O desejo da celebração esbarrava, a maioria das vezes, no baixo lucro comercial do meu pai naquele ano. E os planos de minha mãe não se realizavam. O Círio nos encontrava, então, através do noticiário radiofônico onde a mesura católica de benzer-se à orientação ouvida no momento da procissão era registrada. Mas certa vez deu certo e viemos todos, entre cestos de patos, farinha e mel. Roupa e sapato novos para os filhos também fazia parte do enxoval. Embora a celebração fosse numa casa da família de meu pai senti certo constrangimento pela intrusão naquele espaço pouco conhecido para nós.
O próximo lugar de encontro desse evento, anos depois, eu já fazia parte da “comunidade urbana” de Belém, adolescente, aluna de um colégio religioso, e a participação na procissão se tornara um processo regular nos anos de convivência no internato entre as colegas e as freiras. Aliás, em que pese o tom místico determinante de nossa presença como caminhantes na procissão, para nós era realmente o momento da liberdade, deixando as quatro paredes do internato e nos integrando àquele povo todo que circulava conosco. Era uma grande festa de independência, pode-se dizer. Suadas nos nossos uniformes de manga comprida, não sentíamos cansaço. Só a alegria de olhar a cidade e observar os lugares desconhecidos. A geografia do conhecimento dos espaços se tornava uma espécie de surpresa quando conciliávamos o que diziam as colegas externas sobre esse ou aquele lugar e o que constatávamos sobre a cidade de Belém naquele instante de festa religiosa.
Outros tempos, outros encontros, outros Círios, outras descobertas, outras emoções. Casada, com filhas, nova família e parentes colaterais, os costumes já repassadas de anos de vivência e convivência entre a tradição, o ritual, a carreira acadêmica e as áreas de conhecimento que têm me dado material de análise para avaliar essa festa religiosa paraense percebi que há muitas outras versões sobre o Círio de Nazaré. Do lugar onde nos encontramos à forma que sobre ele nos reconhecemos, a situação da festa que se avoluma em estabelecer os vínculos com o religioso, mas englobam novos processos. Nossos olhos encontram a diferenciação de classe social nas normas da organização religiosa do evento que determinam quem vai estar posicionado num espaço hierárquico da procissão, mas esta situação não consegue deter o curso dos demais estratos que nem se importam com essa projeção porque o estar no processo tem o significado afetivo que se faz constitutivo de tantos quantos participantes estão ali convictos para oferecer sua ternura e o preço de sua promessa, conscientes de que valeu a pena estar na casa do amigo, do parente, nos encontrões da turba que vai e vem entre os “rios caudalosos de gente”. É o “carnaval devoto”, na expressão de Dalcídio Jurandir, que deu a Isidoro Alves a análise de sua versão como mais um encontro do Círio.

(Texto originalmente publicado em O Liberal (PA) de 09/10/2105 com outro título) 

sábado, 3 de outubro de 2015

POR TODAS AS FAMÍLIAS



"Familia de Saltimbanco" de Pablo Picasso 


A sociedade civil e organizada brasileira há duas semanas está se mobilizando na articulação do Movimento “Por Todas As Famílias” contra o Estatuto da Família, o PL 6583/13, apresentado pelo deputado Anderson Ferreira (PR-PE) que define o conceito de família como “a união entre um homem e uma mulher” e restringe o núcleo familiar aos padrões heteronormativos. O parecer do relator, Deputado Diego Garcia/PHS, foi aprovado em 24/09/2015, por 17 votos a 5, na Comissão Especial, com o trâmite previsto para apresentação ao Senado.
A comunidade acadêmica que tem se debruçado desde longa data para estudar, pesquisar e refletir sobre as mudanças historicamente construídas da realidade global e da brasileira em particular iniciou e fortaleceu essa mobilização apresentando notas de repúdio, análises de experts das várias áreas inclusive da área jurídica como a da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), com demonstrativos da inconstitucionalidade de vários artigos e da grave violação de direitos fundamentais de cidadãos e cidadãs brasileiros. Em sua nota diz:
“A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) vem a público manifestar sua discordância acerca do PL 6.583/2013, que dispõe sobre o Estatuto da Família, por entender que o Congresso não pode legislar sobre direitos já garantidos pela Constituição Federal (CF) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), notadamente:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (...)”
Em outra parte do documento a PFDC/MPF afirma: “O PL 6583/2013 ao definir, em seu Art. 2º, “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, restringe direitos já conquistados por uniões civis de pessoas do mesmo sexo e que não correspondem à definição proposta.”(...) O documento segue demonstrando quais direitos são cerceados a/ao cidadã/ao brasileiro e que constam na Constituição de 1988.
Sobre o conceito de família homoafetiva, o documento capta o entendimento da Professora Dóris de Cássia Alessi (2011, p. 45): “Amparada pelos princípios constitucionais, às uniões homoafetivas ganharam relevo a partir do momento em que o obsoleto modelo patriarcal e hierarquizado de família cedeu lugar a um novo modelo fundado no afeto. A propósito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas pelo amor, respeito e comunhão de vida preenchem os requisitos previstos na Constituição Federal em vigor, quanto ao reconhecimento da entidade familiar, na medida em que consagrou a efetividade como valor jurídico”.
Neste texto considero, também, como retrocesso as alterações sociais provindas do Estatuto da Família. A Dra. Simone Barbosa Villa (FAUeD/Universidade Federal de Uberlândia) ao estudar a dinâmica urbana no Brasil contemporâneo observa “as significativas mudanças pelas quais têm passado os arranjos familiares da população (...)” constituindo-se em “nova dimensão nesse início do século XXI onde a velocidade das mudanças é grande”. Além da ordem demográfica como a diminuição da fecundidade e o envelhecimento da população ela destaca outros componentes integrados às transformações sociais e culturais como “o menor número de matrimônios, aumento das separações e atraso das uniões, conjuntamente com o novo papel da mulher na família e no trabalho, as quais tiveram importantes implicações nas relações de gênero.” Neste último aspecto são percebíveis as conquistas históricas que as mulheres alcançaram na luta por sua emancipação construindo um processo de conscientização sobre as seculares perdas de direitos no âmbito da cidadania política, social, cultural e econômica.
Esse processo de mudanças que nas últimas cinco décadas revolucionaram o mundo tende a afetar as estruturas familiares e sociais a exemplo: “(i) revolução contraceptiva na qual ocorre dissociação da sexualidade da reprodução; (ii) revolução sexual, principalmente, para as mulheres que passam a distinguir a sexualidade do casamento e; (iii) revolução no papel social da mulher e nas relações de gênero tradicionais, onde a figura do “homem provedor” duela com o consolidado papel da “mulher cuidadora” (apud LESTHAGUE, 1995).
A autora evidencia, então, que esses processos transformadores favorecem a consolidação de novos formatos de grupos domésticos com ativa participação nas estatísticas onde havia o predomínio da família nuclear. “Famílias monoparentais, casais DINC (Duplo Ingresso e Nenhum Filho), uniões livres – incluindo casais homossexuais -, grupos coabitando sem laços conjugais ou de parentesco entre seus membros e a família nuclear renovada.” Neste caso, essa renovação da antiga família nuclear trouxe maior autonomia aos seus membros com declínio da autoridade dos pais. Simone Villa cita Perucchi e Beirão (2007 p. 66): “O modelo patriarcal de família, caracterizado pelo arranjo composto por pai, mãe e filhos que convivem sob a égide da autoridade do primeiro sobre os demais, está em crise”.
Neste aspecto, a presença feminina se destaca em meio à nova ordem que tem disseminado ao entrar no mercado de trabalho antes restrito a algumas funções e hoje ampliado e inclusivo para as mulheres. No Censo Demográfico do IBGE, os dados de 2010 apontam para 66,2% de famílias “nucleares” (definidas como um casal com ou sem filhos, ou uma mulher ou um homem com filhos); 19% são estendidas (mesmo arranjo anterior, mas inclui convivência com parente(s)); 2,5% são compostas (inclui convivência com quem não é parente) e os demais 12,3% são pessoas que moram sozinhas. Há ainda 60 mil casais de outra orientação sexual e quanto às uniões homoafetivas, o IGBE aponta, em 2013, para 3.701 casamentos registrados no país, 52% (1926) ocorrem entre mulheres e 48% (1775) com homens.
Meu Estatuto é em defesa dos direitos e da pluralidade.

(Texto publicado originalmente em “O Liberal”/Pa, em 02/10/2015)