quarta-feira, 14 de maio de 2014

NAS FIMBRIAS DA ESCRAVIDÃO


Zumbi dos Palmares :lutou pelo seu povo e trouxe as leis contra a escravidão 

Recentemente, em uma das minhas jornadas para a UFPA, o condutor do taxi já meu conhecido por esse percurso quase diário, me pergunta sobre as efemérides e as formas comemorativas de datas marcantes da historia do Pará nos dias de hoje. Nesse “papo” fui rememorando com ele o formato do calendário escolar quando alunos/as ao chegarem aos seus estabelecimentos de ensino, eram conduzidos perfilados ao local de um mastro onde seria hasteada a bandeira brasileira, cantava-se o hino nacional e/ou hino à Bandeira para então seguir o rumo da sala de aula. Nas turmas da tarde, o processo se invertia, ou seja, como a bandeira não poderia ficar ao relento noturno, os alunos desse turno cantavam o hino e faziam descer esse símbolo da pátria. Talvez alguns dos/as leitores/as deste texto, da minha geração, tenham vivido essa experiência. A questão do taxista se prendia ao fato de constatar que seus filhos não conheciam as datas históricas e nem as simbologias nacionais, hoje perdidas pelo reforço das mídias sociais a uma recorrente versão sobre um tipo de política mais partidária e menos integrada a propostas de reconhecimento do conceito de ser brasileiro a partir desses símbolos.
A minha geração conviveu com a data de 13 de maio como comemorativa da abolição da escravatura no Brasil, pela Lei Áurea, assinada pela Princesa Izabel (outras leis haviam sido aplicadas culminando com essa). Faziam-se celebrações ostensivas nos colégios públicos e privados para dar visibilidade à situação do escravismo e a uma história cujos fatos da liberdade do povo de etnia negra ter vindo de cima (o poder público e dominante) para baixo (a liberdade dedicada aos escravos e escravas). Sem dúvida que essa visão era a versão do que hoje se conhece como a “história dos vencidos contada pelos vencedores”. Assim como os estudos sobre o descobrimento do Brasil foi retomado pelos historiadores para demonstrarem que houvecausalidade nesse fato (intenção de chegar ao novo continente para fins de vender e extrair novos produtos expandindo o comércio) e não casualidade (de repente, sem intenção, chegam às terras e se estabelecem) como havíamos aprendido, aos poucos, a história da situação de rainha & políticos no poder assinarem as leis da abolição e os negros e negras se sentirem “libertos por concessão” também foi se reavaliando e invertendo. Porque passou a ser “revirada” de ponta cabeça essa versão, também por historiadores e militantes da causa para mostrar que os escravos, ao tomarem consciência da tirania em que viviam, iniciaram a reação contra o trabalho forçado, as sevicias, a exploração humana deles, de seus filhos e filhas e abuso sexual de suas mulheres, além de discriminarem sua religião e cultura. E a militância política composta de estudiosos e pessoas comprometidas com a causa trouxe as evidências das lutas, das mortes, das fugas de líderes negros em busca de leis que demonstrassem respeito pelos seus direitos como humanos. Foi constituído, então, o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, que é o aniversário de Zumbi dos Palmares, um dos principais lutadores pela causa antiescravista. Dessa forma, houve uma sistemática reordenação temática e política em torno da causa afro brasileira. Movimentos étnicos e movimentos sociais hoje reavaliam o percurso de perdas que esse povo sofreu no Brasil ao tempo em que as portas do comércio escravo pendiam para a preocupação com o aumento da mão de obra cativa para a exploração da matéria prima com fins de fortalecer o progresso e o desenvolvimento da então colônia brasileira e depois império. Nesse caso, não só os africanos eram trazidos à força, mas muito antes a escravização era aplicada aos povos indígenas, os primeiros habitantes do Brasil.
“O escravos negros, raptados de sua terra natal (principalmente da África Setentrional, onde hoje estão, por exemplo, Angola, Moçambique e a República Democrática do Congo) e levados a um lugar estranho, eram controlados com mão de ferro pelos senhores de engenho, que delegavam aos feitores e outros agregados a fiscalização dos cativos. Os castigos físicos, como o açoitamento, estavam entre os métodos de intimidação que garantiam o trabalho, a obediência e a manutenção dos servos e se prolongaram pelos mais de 300 anos de escravidão no Brasil” (Biblioteca Virtual do Governo do Estado de São Paulo)
Outro eixo de imposição da cultura branca aos povos africanos refere-se ao poder da igreja que considerava “necessária” a salvação da alma do negro a cuja etnia culpava pelo “paganismo” em que era convertida a cultura trazida por esse povo sequestrado e vendido aos senhores de engenho e aos fazendeiros. Por esse aspecto pode-se avaliar a forma preconceituosa como se transfere à sociedade brasileira de um modo geral a cultura afro, visceralmente entranhada no jeito de ser e fonte de viver desse povo nos seus locais de origem. A partir da tentativa de “cristianização” transforma em símbolo pagão toda essa vivência nativa e, consequentemente, converte os símbolos culturais afro em lixo cultural estabelecendo as bases de um processo discriminatório.
Associando ao inicio deste texto, à falta de ensinamentos e de conhecimento de temas da nossa história vejo dois aspectos a serem tratados apontando a oficialização de uma data para tratar da abolição da escravatura. Num primeiro, demonstrar que apesar das boas intenções dos governantes portugueses, a Lei Áurea vem demonstrar que não foi o poder dominante que concedeu a abolição, mas uma conquista dos negros escravos no Brasil que iniciaram a luta pelos seus direitos. E o segundo ponto, segue-se a este, é a desmistificação de uma liberdade concedida, mas sim conquistada desde que se estabeleceu a consciência negra a partir dos líderes em luta, a exemplo, Zumbi dos Palmares.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal-PA" em 09/05/2014)