sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O VOTO FEMININO, O SUFRAGISMO PARAENSE E OS NOVOS TEMPOS

Carlota Pereira de Queiroz - a 1a deputada brasileira, na câmara de deputados em 1933

Há 83 anos, no dia 24 de fevereiro de 1932, foi promulgado o 1º Código Eleitoral brasileiro, através do Decreto 21.076, adotando-se o voto direto, obrigatório e secreto e o sufrágio universal, onde foi, finalmente, formalizado o direito de voto das mulheres. Entre essa conquista e as lutas empreendidas para o alcance desse passo na cidadania feminina, um grupo de mulheres lideradas por Bertha Lutz e parte da sociedade brasileira se movimentaram desde os primeiros anos da década de vinte. Sobre essas ações, considerando a presença das mulheres paraenses em movimentos políticos instigativos extrai fragmentos da história desse processo no Pará para a minha dissertação de mestrado tornando visivel os avanços que nossas conterrâneas impuseram no processo.
Desde a década de 1920, a sociedade paraense presenciou o debate sufragista. Em 1923, Orminda Ribeiro Bastos, advogada e jornalista, posiciona-se através da imprensa, desenvolvendo pontos positivos e negativos que ela considerava essenciais nas reivindicações do movimento emancipacionista instalado no sul do país, através da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Faz conferência para a Liga Cooperativa das Operárias de Fábricas, enfatizando a necessidade de instrução como ponto fundamental para a ascensão da mulher na luta pelos seus direitos políticos.
A imprensa da época exala um forte anti-sufragismo nos textos que publica. A ideologia dominante na sociedade reafirma a reprodução dos papéis sexuais, aprisionando a mulher em nome de uma suposta fragilidade biológica, em um campo de atividades menos valorizadas socialmente. Mostra-a "imperfeita e frágil" para suportar a "dureza" imposta pelas condições da política, enquanto o homem, "forte e perfeito" é "talhado" para assumir o espaço público e político. Esse discurso reforçava ainda a concepção sobre a ignorância cultural da mulher apta apenas a mexer "panelas e mingaus". O confronto atinge as raias do paroxismo, quando a prática sufragista é invocada para estabelecer dúvidas à honra da "mulher-cidadã".
O direito do voto levaria a abertura de outro caminho até ali restrito aos homens, a atividade político-partidária, concedendo às novas "cidadãs" o direito de ombrear-se aos "varões" de igual para igual. No discurso de alguns anti-sufragistas deste período, subjaz, de alguma forma, a preocupação com essa provável "igualdade", pois estes desconfiavam que a concessão do direito do voto, levaria, cedo ou tarde, à efetiva representação parlamentar das mulheres, campo restrito da política partidária.
Em 1929 as paraenses Maria Aurora Pegado Beltrão e Corina Martins Pegado solicitam ao Juiz Federal o alistamento eleitoral, mas o arrazoado jurídico contrário à solicitação arvorou-se na justificativa de uma ruptura com a imagem tradicional da mulher.
Orminda Ribeiro Bastos é, sem dúvida, a liderança pioneira do sufragismo paraense da década de 1920. Sua figura mantém um nível equilibrado no debate jornalístico, apresentando suas próprias dúvidas sobre a concessão irrestrita do voto à mulher e à filiação do movimento brasileiro ao movimento norte-americano. Seu compromisso evidencia maior instigamento ao interesse cultural que deveria pautar a preocupação da mulher às suas condições de desigualdade com o sexo oposto. A "anarquia social" vivenciada pelo sistema político brasileiro e o "mau caminho" que tomaria o voto feminino, nessas condições, preocupam Orminda.
É somente em meados de 1931, já instalada, portanto, a revolução de trinta, que se organiza o núcleo feminista, no Pará. A “Folha do Norte” de 12 de junho de 1931 dá o tom da notícia referindo as principais repercussões do movimento em nível nacional. Do registro dos nomes das sufragistas paraenses à frente da associação feminista, identificam-se mulheres com expressão no meio das letradas. O Núcleo Paraense pelo Progresso Feminino é instalado oficialmente em 21 de junho de 1931, constituindo-se uma diretoria provisória sendo indicada Presidente de Honra a esposa de Justo Chermont, Izabel Justo Chermont.
O processo histórico da instalação do movimento sufragista paraense tem uma aura particular e os dados levantados identificam as personalidades femininas de mulheres letradas que organizam o movimento. Mas há um ponto dissonante: são mulheres espíritas que seguem à frente do movimento e, com isso, o sufragismo inicial neste estado favorece discursos inflamados contra elas do clero católico, a exemplo, os escritos da Folha do Norte assinados pelo Padre Florence Dubois.
Deslocando os avanços da cidadania feminina nacional para os dias atuais pergunta-se: o que representou a conquista do voto pelas mulheres brasileiras na ascensão aos cargos eletivos proporcionais e majoritários considerando que esse valor era o mote da participação feminina nesses espaços de poder?  
Num processo continuo, mas incipiente de avanços, vê-se que a nova legislatura iniciada em 2015 cresceu muito pouco em relação a anterior. No Senado, 11 mulheres representam 13,6% dos 81 senadores. E nas Assembléias Legislativas houve o maior número de mulheres candidatas em eleições gerais, mas somente 11,33 % ou 120 parlamentares eleitas. O número de deputadas estaduais e distritais diminuiu 14,89% ao compará-lo à bancada de 2010.
Quanto ao Pará, o eleitorado feminino é de 50,21%, aumentando em relação às eleições de 2010 que era 49,92%. Quanto às candidaturas de representação parlamentar, vê-se que de um total de 170 candidatos para a câmara federal, 31,76% eram mulheres. Nesse caso, este estado que apresentava 5,9% proporcional ao número de cadeiras (17) cresceu para 17,64%, uma vez que elegeu três mulheres, sendo uma reeleita e duas novas. Para deputado estadual, de 637, havia 182 candidatas ou 28,57% do total, contudo, em 2010 tínhamos 7 mulheres eleitas, e no pleito de 2014 reduziu-se para 3.
A não opção das mulheres por um cargo eletivo tem muitos componentes entre os quais a cultura sexista, falta de financiamento de campanha e outros itens da agenda política.


(Texto originalmente publicado em O Liberal, em 27/02/2015)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

MARGINALIDADE, CRIMINALIDADE, TEORIAS....

www.seligaai.net

Num primeiro momento, ao pensar na escolha do assunto para expor aos leitores deste jornal/blog que acompanham semanal e regularmente a abordagem de alguns temas da minha alçada e, às vezes, fora dela, pensei em um título do tipo “as teorias e as práticas”. Pareceu-me caber, nessa expressão, a perspectiva de olhar toda uma vida duplicada entre os estudos acadêmicos e o processo fenomênico da minha “vida ordinária” (vida comum, habitual, usual), ou seja, o meu cotidiano como sujeito social. Nesse aspecto, vê-se que existem papéis (cf. Houaiss - dever, obrigação legal, moral, profissional etc. ou atribuição, função que se desempenha ou cumpre) bem definidos na nossa trajetória, encimados pelo processo de vivência que projeta, a cada ciclo, as pautas da vida social onde modelos de significação de enunciados (explicação/demonstração) criam formatos de sujeitos estabelecidos pelos marcadores sociais de cada etapa de vida. Preferi um título mais forte para relacionar esses dois emblemas de uma vida porque fazem jus ao que considerei expressões dicotômicas causadas por uma ocorrência de violência urbana acontecida com um ente querido, levando toda a família a rever prioridades, valores, desejos até então existentes, por suposto, satisfazendo as necessidades.
Diante de todos nós o quadro construído pela descrição dos fatos violentos foi aterrador, sem precedentes, para conter uma explicação teórica da ocorrência. Não há palavras que sustentem, nesta hora (e além dela, diga-se) para quem sofre, a cadeia explicativa do processo de violência urbana. Mas a academia exige que seja processada dessa forma, pois, assim serão interpretados os fenômenos sobre a marginalidade, a criminalidade, que se acham tão perto de nós, na esquina, ao lado de uma agência bancária, dentro de casa, em qualquer hora do dia, com muitas pessoas no entorno ou em um ambiente vazio.
Sem que a angústia pela ocorrência tivesse tempo de dissipar-se – porque não há tempo para desaparecer o sofrimento sobre esses episódios – e pensando em como traduzir esse estado de (des)ânimo para escrever este texto, percorri as mais recentes análises sobre os dois fenômenos que a meu ver se integram. É preciso notar que desde as aulas na graduação do Curso de Ciências Sociais já iniciávamos, na disciplina Sociologia do Desenvolvimento (1975), o “estudo do comportamento social das interações e organizações humanas”, configurando-se, na ocasião, leituras dos velhos clássicos como Comte, Dukheim, Spencer, Marx, Tarde, Simmel, Pareto, Weber, Parsons, Germani e outros. Mas eu precisava organizar minhas ideias e construir uma exposição que me levasse a entender o estado de espírito de uma mulher de mais de setenta anos com alguma qualificação acadêmica e mãe, avó, tia, irmã, sogra diante de uma perversidade praticada contra um ente amado.
As lágrimas vêm aos olhos evocando essas teorias que me levam a ver/imaginar um jovem de arma na mão (e o tiro vindo em seguida) a exigir os recursos extraídos de um banco com intenção de matar um outro jovem já caído no chão pelas coronhadas recebidas. Quantia tão pequena ... mas, por suposto, necessária para suprir os desejos (quais desejos?) daquele que estava praticando uma ação criminosa.
Nos estudos do autor brasileiro Lúcio Kowarick (Capitalismo e marginalidade na América Latina. RJ, Paz e Terra, 1975) um dos analistas dessa obra, Walter Arno Pichier (Algumas Observações Sobre O Conceito De Marginalidade Social, Ensaios FEE, v.1.n.1), dá pistas do redirecionamento feito por Kowarick, desses estudos: “... a marginalidade deve ser caracterizada como modo de inserção nas estruturas de produção. (...) não é o resultado das disfunções do sistema, senão resultado das estruturas societárias de caráter global, as quais trazem em seu âmago um conjunto de contradições cujas expressões são múltiplas e, dentre essas, a própria marginalidade”. Para Pichier, Kowarick concentra o foco de análise na dinâmica da sociedade capitalista, mais especificamente na divisão social do trabalho e das categorias ocupacionais que dentro dela se articulam. Partindo deste ponto de vista, a marginalidade passa a ser caracterizada através de um conjunto de categorias ocupacionais que desempenham determinados papéis no processo de acumulação do capital.” (págs. 113-114). Não esmiuço o artigo, apenas extraio fragmentos de uma análise que traz uma explicação sobre o motivo da emergência da marginalidade social. Sem esgotar nem entrar nos clássicos.
No relacionamento entre marginalidade e crime – não sendo eu versada na área do Direito – procurei evidências na análise jurídica em que são observadas teorias criminológicas para explicar o crime que remete entre outros, à ação efetiva da marginalidade. Essas teorias investigativas classificam-se em Criminologia Tradicional e Criminologia Nova ou Crítica, com base em estudos de Dias e Andrade (Criminologia. Coimbra, 1997, apud Silva Jr., 2006). Também declino de discorrer sobre a extensa classificação que o autor faz, haja vista que minha intenção tem outro objetivo. Situo o que diz a literatura consultada: “sobre o mesmo objeto de estudo [o crime], os cientistas elaboram questões diferentes que reclamam respostas diferentes. Existindo, entre essas duas vias de explicação do problema do crime, mais uma relação de complementariedade do que de exclusão, fazendo da criminologia uma ciência interdisciplinar que envolve a biologia, a psicologia e a sociologia”.
Como se vê, há preocupação da ciência em construir teorias explicativas para a marginalidade, com proposições de soluções melhores para a eliminação do estado de violência global. Mas como vou encarar hoje a vivência na cátedra e a vida ordinária/cotidiana? Reconheço que como eu milhares de mães e avós incluem-se nas estatísticas desses crimes e, como tal, abraçam os mais diversos modos de reflexão sobre a natureza dessas violências urbanas. Porém, acredito que, nessas horas, o olhar do cientista se empodera da compreensão de que todo agente da racionalidade faz parte do grupo humanidade, onde o espaço para crescer está circunscrito a duas escolhas possíveis: ou se ama, para transformar o mundo; ou se odeia, para exterminá-lo. Eu fico com a Lei do Amor, como Jesus nos ensinou, com espaço para buscar o crescimento social por meio de uma política eficaz capaz de garantir a paz e a unidade entre os homens.

(Texto originalmente publicado em O Liberal/Pa em  20/02/2015)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

GESTUALIDADE POLITICA


http://pt.slideshare.net/GeorgeSGMG/gestos-de-paz 

A palavra gesto explica a maneira de as pessoas se manifestarem podendo ser através do “movimento do corpo, da expressão das mãos, braços e cabeça, voluntário ou involuntário, que revela estado psicológico ou intenção de exprimir ou realizar algo; aceno, mímica” (Houaiss). Trata-se de uma forma de linguagem. Segundo Rector & Trinta (1993, p. 21, apud Pereira, 2009) “os elementos não verbais da comunicação social são responsáveis por cerca de sessenta e cinco por cento do total das mensagens enviadas e recebidas no processo de interações humanas, nas quais o gesto tem um papel fundamental”. O gesto pode combinar-se com a comunicação verbal por vezes fortalecendo ou substituindo-a. A psicolinguística é uma das ciências que estuda essa expressão/ação.
Não sou letrada nessa área, mas, como qualquer cidadã, transito nas interações com outras pessoas e, por vezes, é possível avaliar que esse modo de comunicação tem grande força de estabelecer os meios possíveis de se constituir num gestual que assinala agregação ou separação entre pessoas conforme seja a decodificação que se faça dele (o gesto).
A pesquisa que realizei sobre as mulheres na política no Pará, na década de noventa, entrevistou algumas pessoas da elite do início do século XX e, muito interessantes foram as lembranças registradas nesses depoimentos explorando o gestual do namoro, por exemplo. Da memória do Dr. Adriano Guimarães há resquícios destes transformados em signos quando ele evidenciava a representação do lenço nas mãos das jovens ou de uma flor na lapela masculina, frequentadores do cinema Olympia, e desejavam mandar um “recado” a/ao namorado ou namorada que não fora de escolha familiar (e/ou até que fosse). Ou mesmo uma mensagem de amor à/ao amada/o. O lenço que cai no chão, ou que vai à boca, o que é repassado entre as mãos, ou o que é preso na lapela são detalhes gestuais que representam, “eu te amo”, “não podes falar comigo”, “estou acompanhada” e por aí vão as expressões gestuais. No meu modo de ver, esses jovens criavam uma política comunicativa própria que revelava certos aspectos ousados em uma dimensão de códigos de relacionamento como forma interativa. Entretanto, havia necessidade de o par saber o que representava este ou aquele gesto, pois, um mal-entendido nesse detalhe poderia causar rompimento ou, no mínimo, reação negativa entre os namorados. No dizer de Edward Sapir e Benjamim Woorf (1956:17): “A lógica natural diz-nos que a fala é apenas uma manifestação acessória, que diz estritamente respeito á comunicação e não à formulação das idéias. Supõe-se que a fala ou o emprego da língua exprime apenas o que, em princípio, já está formulado não verbalmente”. Então esses códigos gestuais tinham que ser decifrados no reconhecimento de sua representação naquele momento.
Ainda daquele período é significativa a entrada triunfal das “cocotes” (as prostitutas de luxo) naqueles dias de cinema, ao acender das luzes pós-exibição do jornal, no corredor central do Olympia com seus chapéus e vestes francesas, mostrando todo o seu charme para as “donas” dos seus “donos” (na fala de Adriano Guimarães). A imponência delas e a ousadia do enfrentamento à classe social dominante eram gestos que deixavam rumores sobre as virtudes e os vícios dessas lindas mulheres assistindo prazerosamente os filmes em exibição ao lado das suas parceiras na cama.
É importante entender que o gesto é uma forma de comunicação transformada em linguagem do corpo. É possível entrar nessa “onda” de entender a tradução dessas manifestações humanas expressos em uma diversidade de gestos, da ansiedade à raiva, da impaciência à tristeza, da infelicidade à euforia em qualquer evento social, reuniões, festas e até mesmo no espaço privado da casa, numa repartição pública ou no lugar do trabalho.
Meu interesse em tratar deste assunto e considerá-lo como gestualidade política resulta de duas questões observadas no cotidiano da vida. Um primeiro reflete gestos de tensão de uma pessoa que há muito era considerada amiga de outra e, de um tempo a esta parte tem apresentado gestos de desconforto em relação a essa amiga. A gestualidade tem sido acompanhada de atitudes verbais nos emails, nos telefonemas, nos silêncios. Em confidência a amiga pergunta: “o que eu fiz para receber este tratamento?” “O que devo fazer para reparar as atitudes hostis que há mais de ano se estabeleceram entre nós?” Na verdade, não se têm palavras de aconselhamento para interpretar esses gestos do “outro”. E fica-se na dúvida se a colega não está interpretando mal a linguagem verbal e não verbal desse relacionamento. Se o eixo reparador tende a ser o afastamento entre as duas pessoas assim será, pois, já houve uma tentativa de enfrentar os códigos dissonantes sem resultado.
O outro aspecto do gesto vem de outra postura, agora marcando atitudes inter colegas e gestores no trabalho de um funcionário público prestes a entrar na idade de aposentadoria compulsória. Embora este ainda tenha alguns meses para entrar nesse processo, seus colegas tendem a apresentar gestos hostis e linguagem dissimulada para arguir o momento em que o colega irá deixar a função que ocupa na empresa/instituição. Também para este funcionário que procura “aconselhamento” sobre o que fazer, pois se sente inseguro, desconfiado de todos, sem vontade de trabalhar, não há uma explicação que o ajude. Nesse caso repercute no que Maria Lúcia Álvares (2015) diz sobre a aposentadoria compulsória por idade (cf. http://www.direitopublicoemrede.com/2015/01/ ): “E esse processo não se dá por meio de pedido do servidor ou mediante ofício formalizado pela Administração. Ele acontece sorrateiramente, por meio de palavras, ações e omissões de outros tantos agentes que, a despeito de estarem sujeitos ao mesmo destino, se erguem como vozes a rechaçar o que ditam ser ultrapassado - palavra que vem agregada à presunção de defasagem de conhecimento e à perda de habilidade, enquanto requisitos que emergem como condicionantes do processo de avaliação de desempenho com foco em competências, atualmente voga do processo avaliativo no serviço público”.
Nesta reflexão a ambiência dos códigos repercute no sentido da emoção que o gesto revela como elemento de interação humana.

(Texto originalmente publicado em O Liberal/Pa de o6/02/2015)



[1] Luzia Álvares é doutora em Ciência Política. 

domingo, 1 de fevereiro de 2015

MISCELÂNEA


http://popgames.pop.com.br/review-project-x-zone/

É o dominio da palavra que leva as pessoas a ousarem mais. No balbuciar, o reflexo da insuficiência de um vocabulário que atue na comunicação e a ausencia de certos conhecimentos interfere na lógica de se pronunciar sobre qualquer coisa, salvo se há ousadia de mostrar a presença naquela ação. A criancinha que caminha no processo de aprender, tende a apreender dos seus mais próximos, tanto os gestuais como as palavras que são faladas para si e para os outros, dos conviventes que lhe asseguram o contato com o mundo. Hoje em dia, com o avanço de pesquisas, diz-se que o feto se estimula com os sons que ouve no ventre da mãe. Já presenciei mulheres grávidas dando ao seu rebento preste a nascer, um tempo de música clássica, não só para manter certa suavidade no enlace de momentos, mas, dizem, principalmente, para estes se inserirem no gosto por esse gênero musical. Novidades sempre ocorrem nesse estágio de entendimento sobre o ser no mundo e assim, o avanço da aquisição de conhecimentos leva os preocupados com o futuro dos filhos e filhas a incorporarem em seus comportamentos o que a ciência registra como o melhor para o ser humano.
Com a contemporaneidade vencendo o processo civilizatório em pesquisas permanentes sendo estas divulgadas sem que haja, por vezes, um tempo de amadurecimento sobre os resultados desses achados, vê-se uma amplitude de experiências consideradas saudáveis e aplicadas tal qual são noticiadas. Da ingestão frequente do café – que antes era salutar e se tornou inimigo da alimentação retornando, posteriormente, com outras insignes terapias e novamente marcando pontos negativos aos viciados nessa bebida – à profusão de frutas tendentes à cura desta ou daquela doença ou mal estar, com receitas caseiras favoráveis ao aumento ou diminuição de peso corporal, segundo o interesse nas dietas de engorda ou emagrecimento, o bombardeio noticioso quebrou as barreiras do ontem e o instante faz agora o processo real se tornar efetivo.
Mas quando a noticia se faz em relação à situação moral das pessoas, o fruto da disseminação desses casos vai além do comentário insidioso sobre o sujeito da ocorrência. Torna-se fofoca, ou seja, um dito maldoso, um mexerico, um disse-me-disse que tem sido causa de bulling (assédio moral e físico de um/uns contra outro/s) chegando ao climax de um ato suicida de quem foi o centro da falta de lealdade.
No âmbito da prática política as insinuações maldosas contra alguém são parte do processo de oposição e por vezes aversão sobre quem é contrário à ideologia do outro. Se a pesquisa de saberes e conhecimento científico é salutar para reaver as realidades passadas e demonstrar as novas posições de determinada assertiva da primeira hora da investigação, o rito maldoso contra alguém tem resquicios cujos resíduos jamais perderão o tom daquele dito provocante. Vê-se, por exemplo, na situação das relações de gênero em que homens e mulheres tiveram seu tipo sexual moldado em representações sociais sob a dominação de contextos hierarquizados pelas normas que definiam/definem a inferioridade feminina e a superioridade masculina. Até hoje as mulheres lutam para demonstrar sua inteligência em todas as áreas sociais e do conhecimento enquanto os seus parceiros seguem as normas reguladoras de procedimentos que se tornam princípios formais com preceitos estabelecidos em qualquer posição que se insiram haja vista que a tradição e os valores socioculturais tendem a privilegiar para eles o status herdado na ancestralidade patriarcal. Desde os mitos – o de Adão e Eva, por exemplo – ao plano atual comportamental, insinua-se a imagem feminina destratada moralmente. Eva foi criada depois de Adão que emprestou uma costela para torna-la ser vivente pelas mãos do Senhor. Eva teria insuflado seu parceiro a “comer o fruto proibido da árvore da ciência”, consequentemente, além da maldição de que geraria com dor aos filhos que parisse, o mais cruel foi a culpabilidade em ter sido a incitadora do pecado levando toda a humanidade a ser privada da perfeição e da perspectiva de vida eterna. Na sequencia das insinuações à figura feminina pecadora, a mulher foi submetida a muitas outras hostilidades gerando situações de violência contra ela. E até hoje as leis da justiça humana caminham na agenda das lutas pela conquista de novos olhares sobre elas para sanear esses principios hostis que a submeteram originalmente.
Procurando despojar-se das máscaras discriminadoras, o percurso submeteu-as às várias condições ideológicas que circulavam socialmente. Na teoria liberal e democrática, por exemplo, acharam as primeiras justificativas para questionarem os direitos desiguais. O voto se tornaria o “leit motiv” para pleitearem a cidadania escancarada nas doutrinas políticas, mas não as atingindo. Locke, Rousseau e os utilitaristas haviam modelado um mundo no qual os homens podiam ser livres e iguais, uma sociedade civil na qual os homens determinariam os seus próprios destinos. (...) John Locke e outros filósofos, que argumentavam contra o poder absoluto do rei e a favor de relações contratuais livres entre homens, não incluíam mulheres como participantes da sociedade civil.” (Andrea Nye, 199, p. 15). Entretanto, a presença de reformadoras como Mary Wollstonecraft e Harriet Taylor foi definitiva para enfrentar essas idéias e desmontar os paradigmas.
Ao circularmos nas redes sociais, em específico, o facebook, vê-se um turbilhão de idéias, ditos, verbetes, compartilhamentos de noticiário de midia nacional e internacional, opiniões pessoais, dos outros, serviços de utilidade pública, aniversários, casamentos, referência a relacionamentos construidos no estilo “sério”, preces, imagens as mais diversas de pessoas a insetos, eventos e tantos e tantos estilhaços de fatos das vivências particulares (pessoas) e coletivas (grupos), percebendo-se, então, o apresamento das representações sociais formando uma miscelânea de imagens construidas. Algumas mantêm o status quo ante. Outras revelam ousadias no enfrentamento às velhas tradições.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal"/Pa de 30/01/2015)