domingo, 26 de abril de 2015

A ARQUITETURA DO PASSADO E AS CLASSES SOCIAIS


Cine Olympia , no ano de sua inauguração, 1912

A memória histórica de uma cidade tende a se comunicar também através de seus monumentos. Sabiam disso os egípcios quando fizeram as pirâmides. Também os gregos, os romanos, muitas civilizações que se desapareceram com o tempo persistiram no espaço. A nossa Belém, como todo núcleo residencial, tem suas relíquias históricas edificadas em anos passados. Hoje, ao comemorar os 103 anos do cinema Olympia, a casa de exibição cinematográfica mais antiga do país em atividade e sem hiatos significativos, é de olhar para trás e ver o quanto se perdeu em termos dessas edificações históricas e o quanto ainda persiste desafiando a passagem dos anos.
Há pouco foi comemorado o aniversário do mercado Ver o Peso que tem quase a idade do município de Belém. Criado logo depois da cidade “nascer” é um dos pontos característicos de uma cultura que mescla o índio e o europeu. Mas quem passar por este mercado, um pouco adiante, vai encontrar dois templos históricos: a Igreja das Mercês, que na sua fachada tem o registro de 1640, e a Catedral da Sé (que integra o complexo da Cidade Velha, o Feliz Lusitânia) cuja construção data de 1748-1771.
Esses templos foram desenhados e/ ou reformados por Antonio Landi, arquiteto bolonhês que esteve no Pará desde 1753. Como reforma por esse arquiteto pode-se citar o que fizeram os jesuítas, mas seu toque fez sobreviver, pelo menos em suas linhas primitivas. São várias igrejas, sendo a mais recente de sua lavra a de Sant’Ana da Campina, que recentemente recebeu uma reforma obedecendo ao traço original. Diz Leandro Tocantins, um estudioso da obra de Landi: “...jamais representou o abandono dos valores culturais que faziam parte de sua personalidade de homem europeu e, especialmente, de italiano. Ao contrário, sua presença no Brasil - e no Brasil mais tropical que é a Amazônia - significou a introdução de formas e concepções técnicas e artísticas novas para o Brasil daquela época, e a feliz convergência de estilos em voga na Itália e em Portugal, sem esquecer a íntima correlação entre a arquitetura e o meio (...).
Além dos templos, Belém guarda prédios de residências que evocam a época da borracha, a nossa “belle époque”, e alguns lugares públicos, as praças, parcialmente desfiguradas nas muitas reformas. Cita-se como exemplo a Praça da República, inicialmente chamado Largo da Pólvora (por ali estar um deposito desse inflamável). As estatuas que compõem esse logradouro dizem de suas idades embora algumas tenham desaparecido. Nesse espaço está o Teatro da Paz, outro monumento que lembra o auge da goma elástica; perto dele esteve o Grande Hotel, então o mais luxuoso da cidade, primeiro lugar a usar ar condicionado em pelo menos uma sala; adiante, o Palace Theatre, transformado em sede de banco; e o citado cinema Olympia.
O Grande Hotel foi transformado em Hilton Hotel com total mudança nas linhas arquitetônicas, desfigurando o que marcava um espaço da elite local no período em que essa classe social vivia o idioma francês como um marco de cultura pessoal, com um “terrasse” evocando bares parisienses. No Grande Hotel se hospedaram personalidades incluindo artistas de cinema como Errol Flynn, Lana Turner e Orson Welles. No Palace Theatre exibia-se teatro e cinema. Os filmes eram silenciosos (ou mudos), como de início os que chegavam ao Olympia (e o espaço era dos mesmos proprietários, Antônio Martins e Carlos Teixeira). Nessa história há outros monumentos ao redor da praça pouco tratados, como o Cine Eden e o Cine Rio Branco. Porque não lembrados? Frequentavam-nos outras classes sociais.
O período efervescente da borracha veio um pouco antes do intendente Antônio Lemos urbanizar a cidade com a plantação de mangueiras. Pode-se dizer que mesmo depois dos ingleses terem conseguido cultivar a seringueira em suas possessões asiáticas ainda se vivia, em Belém, o clima de euforia comercial & social dessa fase.
No quadrado cultural estruturado pelo Theatro da Paz, Grande Hotel, Olympia e Palace Theatre está inscrito o que se lamenta perder e o que se festeja em preservar. O Teatro ainda ostenta seu aspecto original externa e interiormente. O cinema restou no nome e área construída. O que o promove é o fato de persistir na exibição da arte que o fez nascer. Já o Grande Hotel e o Palace restam na saudade dos mais velhos e nos documentos escritos (e fotografados).
Outros monumentos da história da cidade estão na arquitetura das casas, ou palacetes cujos proprietárias eram ricos comerciantes e políticos da época que imprimiam aos imóveis construídos seus nomes de família. Um dos mais conhecidos é o Palacete Bolonha, do início do século XX. Há outros ainda de pé, como o de Montenegro, Virgilio Sampaio, Bricio da Costa e muitos outros, que pela insensibilidade e especulação imobiliária demoliram (cf. livro de Euler Bentes et ali, 2007).
A história do município através de edificações não se restringiu ao centro. Na vila do Mosqueiro, por exemplo, registra-se a presença dos “chalets”, onde as linhas arquitetônicas obedeciam (ou obedecem pois felizmente algumas mereceram reforma que segue as linhas originais) o que chamava atenção no início do século passado, evocando aspecto europeu, especialmente francês.
O que ainda existe do passado local deve ser preservado ou se tentar recuperar. Há uma literatura estimável sobre o assunto. Agora, Belém caminhando para o quarto centenário é oportuno tratar do assunto. E porque referir sobre esse patrimônio, mesmo considerando a valorização de um acúmulo de história patrimonial de uma classe social no poder? É que a identidade urbanística da cidade tem se dado por esses monumentos ainda de pé. Considero que as referências entre essas obras, o lugar onde foram construídas e as análises históricas do relacionamento entre o propósito urbanístico da burguesia tendem a revelar importantes matérias para ser encontrado o “outro” da cidade, ou como viviam as classes mais pobres. Essa seria uma considerável revelação histórica para marcar os 400 anos de Belém. Há material, basta esforço para compilar.

 (Texto originalmente publicado em O Liberal de 24/04/2015)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ÍNDIOS E ARMADILHAS DA INFORMAÇÃO


Mulheres Kalapalo dançanado na festa Itão Kuegu (Yamuricumã) na aldeiia Matipu. Foto de Camila Gauditano. 2001

Embora as escolas brasileiras de décadas passadas lembrassem aoos alunos e alunas o histórico da figura do índio no Brasil, em 19 de abril, havia, contudo, uma tendência para mostrar esses primeiros habitantes do país como exóticos, perigosos e outros des-valores que a minha geração somente aos poucos foi reavaliando, refazendo a ideologia anti-étnica. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC) em parceria com o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ lançou um livro considerando um outro olhar sobre a questão propiciando o que está sendo chamado de série Vias dos Saberes.
Na coleção “Educação Para Todos”, o livro “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje” (MEC/UNESCO, 2006) organizado por Gersem dos Santos Luciano (mestre em Antropologia Social e descendente do povo Baniwa , tribo que vive na fronteira do Brasil com a Venezuela), a introdução de Ricardo Henriques diz: “Uma de nossas mais importantes missões é propor uma agenda pública para o Sistema Nacional de Ensino, que promova a diversidade sociocultural, extrapolando o seu mero reconhecimento, patamar já afirmado em diversos estudos sobre nossa sociedade, os quais derivam, em sua grande maioria, de celebrações reificantes da produção cultural de diferentes grupos sociais, que folclorizam manifestações produzidas e reproduzidas no dia-a-dia das dinâmicas sociais e reduzem os valores simbólicos que dão coesão e sentido aos projetos e às práticas sociais de inúmeras comunidades.”(p. 9) Interessa, presentemente, interferir nessa realidade para criar um processo reflexivo dessas questões que chegaram à educação no interior de uma história de subordinação da diversidade cultural “que teve na escola o espaço para consolidação e disseminação de explicações encobridoras da complexidade de que se constitui nossa sociedade”.
E acrescenta: “Como convencer os atores sociais de que a invisibilidade dessa diversidade é geradora de desigualdades sociais? Como promover cidadanias afirmadoras de suas identidades, compatíveis com a atual construção da cidadania brasileira, em um mundo tensionado entre pluralidade e universalidade, entre o local e o global?” (p.10) Superar uma realidade construida sobre a diversidade cultural desses povos, está sendo uma reviravolta do ensino nas escolas através de políticas públicas não só nas pesquisas, mas nas atividades in loco tencendo novos olhares para nossos irmãos habitantes deste país e que foram expulsos, sendo suas terras saqueadas e incendiadas como meio de os mandatários políticos alargarem a base de terras nacionais.
Uma reflexão sobre o assunto começa pela etimologia da palavra índio. Por que índio? Cristovão Colombo, presumivelmente, o primeiro europeu a chegar à América (pelo menos oficialmente, pois se sabe que muitos estiveram antes no continente), chamou dessa forma a quem pensou que fosse habitante das Índias, afinal a meta do navegador.
Os chamados descobridores encontraram um povo dividido em varias comunidades, ou tribos, com organizações sociais específicas. Chamou a atenção, especialmente, à hegemonia na divisão dessas comunidades: não havia propriedade privada afora os meios de caça onde cada índio possuía suas armas.
No Brasil estima-se que Cabral encontrou cerca de 5 milhões de índios, divididos em tribos de acordo, principalmente, com a língua. Estimam-se os tupi-guaranis (região do litoral), macro-jê ou tapuias (região do Planalto Central), aruaques (Amazonia) e caraíbas (Amazônia). Nas expedições que se seguiram foram encontradas comunidades menores com feições peculiares. De um modo geral a sociedade indígena tinha como ponto de referencia o cacique, ou chefe da tribo, e o pagé, líder religioso.
Os padres que chegaram com os chamados descobridores tentaram “catequizar” os índios, ensinando preceitos da religião católica. Paulatinamente aconteceu o que se vê como descaracterização do meio originário. Isso não só sob o ponto de vista cultural como físico, com tribos inteiras sendo dizimadas por doenças trazidas pelo branco.
Mais adiante no tempo e mesmo com a descoberta de comunidades indígenas que não tiveram contato com outras etnias por viverem em regiões mais isoladas e ainda não devassadas, passou-se a estudar e tratar do índio reconhecendo a sua especificidade social e histórica. Criaram-se organismos como a SPI (Serviço de Proteção ao Indio) criado em 20 de junho de 1910, pelo Decreto nº 8.072, tendo por objetivo prestar assistência a todos os índios do território nacional (Oliveira, 1947). Esse projeto, que instituía a assistência leiga intentando o afastamento da Igreja Católica da catequese indígena, com a nova diretriz republicana de separação Igreja-Estado tinha outro emblema que era adotar um processo civilizatório transformando o índio num trabalhador nacional.
Deslocando a refllexão para o projeto de uma nova mentalidade onde a diversidade é vista com o acento cultural e não da desigualdade, presente na argumentação de Gersem dos Santos Luciano vê-se que o índio do século XXI passa a ser, de um modo geral (pois ainda há tribos escondidas em regiões como a Amazonia), um povo que luta por direitos humanos como os irmãos de outras categorias étnicas. Para esse autor, desde a última decada do século passado ocorre no Brasil um fenômeno conhecido como “etnogênese” ou “reetinização”. Os povos indigenas que foram marcados pela violência e pelo estigma devido aos seus costumes tradicionais o que os forçava à negação de suas identidades tribais principalmente como estratégia de sobrevivência “– assim amenizando as agruras do preconceito e da discriminação – estão reassumindo e recriando as suas tradições indígenas. Esse fenômeno está ocorrendo principalmente na região Nordeste e no sul da região Norte, precisamente no estado do Pará”.
A população indigena é hoje bem menor do que os 5 milhões do inicio do descobrimento. Segundo o Censo 2010 (IBGE) o Brasil possuí apenas 896.917 indios (0,47% da população nacional).
Esta é a minha homenagem a esse povo cujo respeito eu reverencio em nome dos direitos humanos.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 17/04/2015)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

CRISE POLITICA DE 1935 – 80 ANOS



Joaquim de Magalhães Cardoso Barata


Em 5 de abril de 1935, ocorria em Belém uma das mais sérias crises políticas após a revolução de 1930 (implantação da Segunda República – 1930-1937). O conflito entre blocos no poder deste período precipita-se com a não indicação de Joaquim de Magalhães Cardoso Barata ao governo do Pará, em eleição indireta dos membros do Congresso do Estado formado por deputados e senadores do Partido Liberal (PL) e Frente Única Paraense (FUP) eleitos em outubro de 1934.
O desencadeamento dessa crise desenrola-se no dia 4 de abril de 1935, data indicada para a eleição. As articulações secretas de dissidentes do PL desde janeiro desse ano favoreceram a cooptação de sete deputados do partido que não votariam em Barata e que se asilaram no Comando da 8ª Região Militar, sendo abrigados juntamente com os nove membros eleitos da FUP, os dois partidos majoritários.
Essa dissidência fortalecia a oposição que passou a ter a maioria do quórum, podendo indicar quem quisesse para o cargo. Entretanto, a força ainda estava nas mãos do Interventor que, além de tudo, tinha os "batalhões patrióticos" para arregimentar a massa popular contra os "traidores".
Mesmo sem quórum, os deputados liberais que ficaram fiéis a Magalhães Barata, preencheram as vacâncias chamando, em lugar dos dissidentes, os suplentes para a sessão da Assembleia, onde se daria a eleição, completando a maioria absoluta e, dessa forma, elegendo Barata para o cargo de governador constitucional e Ápio Medrado e Fenelón Perdigão como senadores.
Os recursos interpostos aos tribunais eleitorais declararam nula a eleição realizada sem o grupo dissidente. No dia seguinte, dia 5 de abril, os deputados asilados tentaram sair do Quartel General protegidos por um habeas corpus que lhe fora concedido pelo TRE, resguardados pelo desembargador Dantas Cavalcante, mas o percurso dos opositores (Praça da Bandeira) não atingiu o objetivo, ocorrendo um violento conflito entre as forças do Exército que preservavam os dissidentes, e membros da Concentração Política Magalhães Barata (força politica militante criada por Aníbal Duarte, cunhado de Barata), colocada em pontos estratégicos do percurso que seria feito por aqueles e a grande massa popular que estava presente na ocasião. Houve feridos e mortos. Alguns dos deputados dissidentes foram hospitalizados. Foi nomeado um novo Interventor federal, Major Carneiro de Mendonça. Afastou-se de imediato o nome de Barata que não poderia ficar no cargo pelo qual lutara tenazmente.
Da atitude dos sete deputados liberais, ao fazerem a coalizão com a oposição, a argumentação histórica aponta duas situações: traição ou dissidência? O que teria ocorrido? Entre os partidários de Barata, a postura dos membros do PL foi tratada como traição. Caracterizam essa atitude com a utilização de indícios morais, pessoais e políticos como reforço à denúncia. Por outro lado, a defesa dos dissidentes denuncia abusos de poder praticados pelo Interventor e a dúvida quanto ao cumprimento da palavra empenhada com os correligionários na distribuição dos cargos da senatoria. Os fatos de agressão e violência contra Genaro Ponte Souza, Abguar Bastos e Acylino de Leão (exigência de desistência do cargo para ser preenchido pelo irmão de MB) comprometiam a palavra do Interventor. Num manifesto que fez publicar, no "O Estado do Pará", em 09/04/1935, um membro dissidente do PL nega o argumento de traição, remetendo a culpa a Barata e aponta os motivos que o levaram a dissentir, como as estratégias montadas pelo Interventor para alijá-los do poder e transformar o PL numa facção de caráter doméstico, comandado por seu cunhado, Aníbal Duarte. Denuncia a criação da Concentração Politica Magalhães Barata como "arma para matar o PL", sendo este argumento, o mais forte para justificar o motivo principal da coalizão com os eleitos pela FUP. Há denúncia de a prática política de Magalhães Barata estar desvirtuada do ideário revolucionário, com a dissidência optando pela "salvação" desse ideário fortalecendo o PL que Barata pretendia aniquilar com a força da Concentração Política.
Teoricamente identifico o conflito como uma crise hegemônica do bloco histórico (cf. Gramsci). Na aparência dos fatos, sobressai uma crise pessoal, quase doméstica levando a identificação prematura de um ato de "traição". Entretanto, os elementos subjacentes da crise hegemônica não surgem no momento da ruptura, mas em fatos anteriores que contribuíram para a ação final. É sintoma da construção desse momento os rompimentos entre os revolucionários, desde os primeiros anos após 1930, os cortes pelo Interventor do poder das lideranças emergentes que se organizavam em torno dele (rompe com Martins e Silva, líder da Federação do Trabalho), a arregimentação de grupos de interesse (magistério feminino) e grupos de pressão ("batalhões patrióticos"), supervisão do poder do magistério nas escolas, incentivando as práticas "cívicas", incorporação de outros grupos de interesse no séquito de apoio (Maçonaria, igreja, operários). À medida que o Interventor Barata construía seu poder pessoal, no conjunto da sociedade civil, fortalecia também um grupo de apoio dentro do próprio PL onde transitavam outros membros da classe dominante, também interessados em manter e defender sua predominância política. Ocorre que o Interventor tinha construído as bases ideológicas de um discurso populista, arregimentando as massas populares para, no momento aprazado, poder influir com maior peso do que o adversário, seus companheiros de partido que pertenciam à elite dominante e mantinham o poder econômico. Ele tinha o poder do Estado, mas não contava com a possibilidade de uma aliança de classes, única saída para fraturar esse poder. A coalizão realizada entre os dissidentes do PL e os membros da FUP, fortalecendo a elite decaída e fraturando as resistências dos grupos de pressão, através de medidas legais que afastaram as possibilidades de interposição de medidas coercitivas dos aparelhos de Estado, ainda nas mãos do Interventor, contribuíram para o desfecho violento que sacudiu a cidade de Belém, na tarde do dia 5 de abril de 1935. Houve, portanto, dissidência de uma parte dos membros da classe dominante que percebeu seu alijamento da organização partidária, onde se expressava o seu poder de classe.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 10/04/2015)


sexta-feira, 3 de abril de 2015

A PAIXÃO E A SITUAÇÃO



Embora o Brasil seja um país laico, os chamados dias santificados são considerados como feriados nacionais. Especificamente o Natal e a Semana Santa. No meu tempo de criança, o período dedicado a lembrar da paixão de Cristo era marcado pelo respeito dos cristãos. Na 6ª Feira Santa, especialmente no horário tratado como as “3 horas da agonia” (o tempo em que Jesus morreu crucificado) nossos pais exigiam um comportamento normativo em que o próprio falar era em murmúrio. Guardávamos o silencio que seria a forma de respeito ao Senhor morto. O Natal é que sempre foi marcado pelos presentes, pela imagem do Papai Noel, mescla de culturas que eclipsavam o motivo básico, que seria o nascimento de Cristo (uma data, enfim, escolhida pela Igreja posto que historicamente é discutida). Basicamente a confraternização familiar. Penso que dessa forma se festejava, sim, a vinda do Criador. Mas o que dizer da época da Paixão? Um mínimo de respeito seria de se desejar. O tratamento dado agora, como um feriado qualquer onde as pessoas procuram as praias ou as piscinas para banhos divertidos supõe-se não revelarem a contrição pensando no Crucificado. Mas se o conforto familiar é explicito, se há uma manifestação de amor entre as pessoas, nada a condenar como um desacato ao momento que o calendário indica. Afinal, Jesus pregou o amor e as orações falam de que morreu por isso, pelo amor ao próximo.
No mundo atual, o período está cercado de fatos que deixam pensar. A morte de 150 pessoas num desastre de aviação que pode ter sido uma forma de suicídio de um co-piloto do Airbus caído na França é uma demonstração, caso tenha sido verdadeira a causa, de um egoísmo trágico (o homem que desejava tirar a vida sem considerar que levaria consigo tantos acompanhantes). E o momento politico mundial, as constantes investidas terroristas no oriente, a falta de uma conciliação em terras por onde Cristo andou, e, no nosso país, o reflexo de uma crise econômica que vem de longe, um dos problemas comuns ao capitalismo?
A insatisfação do ser humano diante de situações que não entende e amplifica na sua conceituação critica é um caso a se pensar no período em que Jesus foi traído e condenado à morte. Se o apóstolo Judas recebeu 30 dinheiros para entregar seu mestre aos soldados romanos, quantos, atualmente, pedem quantias por desvios morais? Há uma anedota que diz ter sido ínfimo o valor que o apóstolo infiel recebeu por sua traição. Hoje se inflaciona tudo, dos atos aos informes. Tornou-se moda a investigação por conta de desserviços na administração publica. O espectador desse quadro pensa que tudo em volta é corrupto, é malsão. Não é à toa que na literatura e no cinema os atuais tipos maus (chamados “bandidos”) passam a ser vistos como “mocinhos”. A velha dicotomia “bateu as asas” na assertiva de que não há santo sobre a terra. Mas se Judas se enforcou arrependido de seu ato, que dizer de quem entrega alguém sem provas suficientes de seu crime formulando no mínimo, uma tortura psicológica pela formação ideológica conservadora?
Jesus foi um subversivo de seu tempo e espaço, contrariando as normas e os interesses do rei Herodes e do Império Romano. A voz do povo da antiga Galiléia vinha há algum tempo de João Batista pregando uma revolução pacifica, admoestando os judeus da proximidade da vinda de um “Messias” que estabeleceria o “Reino do Céu”. Incomodava a quem usufruía de benesses, e ao se mostrar um líder que criticava o poder dos poderosos (como o rei Herodes) foi condenado e morto. O mesmo ocorreu com Jesus.
Interessante observar que mesmo sem a mídia que passou a existir influenciando multidões (naquele momento as manifestações eram em editos e presenciais) eles foram vistos sem comoção pelos espectadores de julgamentos, decapitando-se João Batista e preferindo-se a liberdade do criminoso Barrabás no lugar do Nazareno. É que as vozes dos opositores às pregações de amor tornaram-no antipático à multidão mesmo com os milagres que realizou.
Como se observa no comportamento humano desde épocas remotas, as influências malsãs nas diversas formas que são veiculadas afetam julgamentos. Pensando nisso guarda-se respeito ao Dia da Paixão. Lembrando o sacrifício de quem amou a humanidade deve-se analisar situações e comportamentos antes de um veredito que patrocina formas de violência. E hoje se fomenta o ódio através de veículos de comunicação adentrando pelos lares e estimulando comportamentos sem se importar que alguns sejam modulados por traumas, como o caso do aviador do Airbus.
Triste ainda é a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados da PEC 171/93, admitindo a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos infringindo o artigo 228 da Constituição Federal e o artigo 27 do Código Penal. Os 42 votos a favor e 17 contra - resultado que está gerando protestos nacionais – investem numa perspectiva de que a prisão do menor infrator irá dimensionar os crimes e eliminar a violência no Brasil quando na verdade esse espaço serve de criador de mais atitudes violentas. É a Paixão que se traduz em frases religiosas quando esquecem que mais salvacionismo se dá pela criação de escolas, “prendendo” esses garotos em locais onde possam sair melhores pelo processo educacional. Replicando o poeta Sergio Vaz: “sou a favor do aumento da maioridade escolar (...) porque lugar de criança é presa na Escola. (...). Depois de cumprirem pena e se tornarem cidadãos terão liberdade assistida… Pelos pais orgulhosos.” (Revista Forum)
Que a passagem renovada (Páscoa) não deixe que o descalabro da menoridade penal se instale.
(Texto ooriginalmente publicado em O Liberal, de 03/04/2015)