sexta-feira, 28 de março de 2014

LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER


Uma das cenas de violência do período do golpe militar de 1964
O cinquentenário do golpe militar que levou o Brasil a um sistema político hibrido, entre a ditadura total e a liberdade vigiada, com funcionamento das casas parlamentares e eleições estaduais - embora limitando a escolha dos eleitos num bipartidarismo, um deles representando o governo geral e outro a oposição consentida (e por isso mesmo vulnerável à censura/leia-se ARENA e MBD), - dá margem a diversos estudos sobre a situação histórica brasileira que, no dizer do professor Rodrigo Patto Sá Motta, da UFMG, e organizador do livro “Autoritarismo e Cultura Politica”/Editora FCV, : “deve mover o historiador (...) a considerar (...) o caráter simultaneamente moderador e conservador do regime militar, que conciliou tendências por vezes contraditórias e abrigou agentes com idéias discrepantes desde liberais a fascistas”. Contrariando essa suposta “democracia militar” verifica-se que os três poderes da república estavam restritos a um só poder, apesar da referência a um sistema representativo. Isto ficou claro para Jarbas Passarinho que, num depoimento para o programa Arquivo N (Rede Globo) afirmou ter questionado seus colegas de governo, considerando que estávamos sim, numa ditadura.
Eu vivi o tempo que se chamou depois de “anos de chumbo”. E aceito a ideia do historiador e professor da UFRJ Carlos Fico que considera o começo do período bem antes de 1964, quando Janio Quadros renunciou à presidência em 1961, estando o seu vice, João Goulart, em viagem à China, unindo conjecturas de que este tinha ido ao encontro a um dos focos de suas ideias comunistas. Imediatamente surgiu a emenda parlamentarista para impedir a posse desse político de esquerda. E entra em cena o embaixador norte-americano Lincoln Gordon alertando o presidente John Kennedy do perigo que estava levando o Brasil a ser uma nova Cuba.
A atriz Brigitte Bardot em visita ao Rio pouco depois de abril de 1964 disse que ficou “maravilhada de no Brasil se fazer uma revolução sem se disparar um só tiro”. Sabe-se que não foi assim, a partir do fato de que, na realidade, não houve uma revolução no sentido tradicional, mas um golpe. Havia, nas classes conservadoras, o medo de que o país entrasse num sistema estatizante que lhes afetasse os bens (o caso dos produtores rurais ameaçados com a reforma agrária alertada pelo presidente e, ainda, setores da indústria e do comercio) e, também, na classe média de um modo geral, caracterizado pelo medo de chegar o “comunismo ateu” propagado por uma ala da igreja (que mais tarde mudaria de ideia diante da violência contra seus próprios membros) e pela imprensa que de inicio se manifestava contra Goulart.
Um quadro bem característico da aceitação do golpe por parte de uma parte expressiva da população foi a “marcha da família com Deus e pela liberdade”, realizada em todos os estados – e em Belém eu recordo da multidão caminhando e rezando o terço como se estivesse numa procissão católica. Também houve outra passeata de apoio aos ideiais golpistas: a marcha denominada “Ouro para o bem do Brasil”. Pessoas jogavam em lençóis estendidos joias e dinheiro que seriam aproveitados para pagamento de nossa divida externa e o mais que consolidasse o regime “democrático ...e cristão” (e hoje se pergunta para onde foi esse ouro?).
Na noite de 31 de março assisti do pátio da minha casa, o movimento em direção à sede da UAP (União Acadêmica Paraense) onde estavam reunidos estudantes que manifestavam sua repulsa ao golpe e para onde se dirigiram os pelotões que invadiram o imóvel e prenderam muita gente. Outro tanto fugia e se escondia nos quintais das casas vizinhas. No meio dos presos estavam amigos queridos e depois eu soube das torturas que sofreram com alguns deles sendo enviados para outros estados em porões de navios a lembrar dos trágicos navios negreiros do tempo da escravatura (felizmente não houve replay do Brigue Palhaço).
O período da ditadura trouxe a censura a tudo e a todos. Em meados de 1970 eu já escrevia neste jornal e, a partir de uma entrevista com o então presidente do sindicato de jornalistas, João Marques, não achei nada demais as suas referências aos filmes políticos que não chegavam a Belém com ele imprimindo criticas ao rigor censório de então. Por isso fui intimada a comparecer a Policia Federal onde passei uma tarde prestando depoimento e com o interrogador, o superintendente do órgão, sempre alertando: “Nós não somos sádicos” e/ ou outra frase com alusões ao episódio que me levou ao tal interrogatório e assinatura do depoimento a que fui submetida – “Você sabe que esta situação está incursa nas Leis de Sugurança Nacional ....”. A estratégia a que me submeteram foi não deixar que o advogado que este jornal mandara me acompanhar e o meu marido participassem da sessão do inquérito.
Censurava-se toda forma de imprensa e as chamadas “diversões publicas”. Os filmes chegavam com documentos que indicavam os cortes efetuados nas cópias. Isso era checado no departamento regional. O não cumprimento de um desses cortes levava à interdição do programa.
Sabe-se agora da influência norte-americana no processo. John Kennedy e Lindon Johnson chegaram a mandar navios para nossos limites com ordem de intervenção se os militares brasileiros não tomassem uma atitude impositiva contra os considerados “subversivos”.
Como disse o cineasta Camilo Galli Tavares, “o dia durou 21 anos”. Lutamos muito, perdemos inteligências, vimos tantas mudarem de endereço, e ainda agora há amigos adoecidos por esse tempo de terror e acho abominável que hoje seja criticado o que conquistamos como se a democracia trouxesse a corrupção, o desmazelo, o despreparo, o que descontasse a quem em sua maioria não viu e pouco soube do que foi vivido. Daí ser exemplar o título do programa (seminário, depoimentos pessoais e filmes) que será realizado no cinema Olympia : “1964: Lembrar Para Não Esquecer”.



[1] Luzia Álvares é doutora em Ciência Política. 

sexta-feira, 14 de março de 2014

ÀS/AOS POETAS, COM CARINHO



No Dia Nacional da Poesia homenageio a nossa grande Eneida.

Na linha de escrever poesia, quase todo mundo já “cometeu” a sua. Para qualquer ocasião e em qualquer estado de espírito. Sem ser poeta (ou como diz o dicionário, poetisa) eu também já “cometi” alguns versos que na época, o saudoso editor geral deste jornal, Dr. Claudio Sá Leal publicou em uma página criada por ele, aos domingos, sendo posteriormente administrada pelo colega João Carlos Pereira. Mas sempre amei a poesia e principalmente aquelas que tocam mais o sentimento, com rima ou não. Sim, porque a rima define para muitos o sentido do poético, haja vista ser um dos elementos mais conhecidos da poesia. Trata-se “da repetição de sons iguais ou similares ao final dos versos que compõem um poema”. Não sou versada nos estudos dos tipos ou na composição da poesia. Mas sem dúvida considero-a, como refere a história desse gênero de escrita, uma das artes tradicionais que utilizam a linguagem humana de forma estética, revelando o interior e o exterior do seu criador, projetando isso a/ao leitor/a. O termo poesia vem do grego e significa criação ou fabricação, mas o usual é o reconhecimento de que ela constitui a arte de escrever em versos. Na contemporaneidade outras definições são registradas, mas me atenho ao que espero abordar.
No dia de hoje, 14 de março, registra-se o Dia Nacional da Poesia homenageando o nascimento de um dos maiores poetas românticos brasileiros, o baiano de Curralinho (hoje cidade Castro Alves), Antonio Frederico de Castro Alves (1847-1861), falecido aos 24 anos, autor de outros poemas, sendo o mais conhecido “O Navio Negreiro” (1869) onde tematiza a escravidão negra, destarte, um grande defensor do abolicionismo.
É possivel que outros leitores/as conheçam mais o 21 de março como o Dia Internacional da Poesia, instituída pela UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – cujo objetivo é a difusão e valorização da arte poética, querendo ou não alguns uma área que já foi muito mais prestigiada socialmente em tempos pretéritos (é só lembrar os saraus promovidos por intelectuais de uma classe social onde estavam sempre inscritas na programação, as declamações e o lançamento em récitas de poemas dos autores dessa arte).
Da pesquisa para registrar este tema, lembrei-me das mulheres poetas haja vista que a história evidencia o fato de que muitas jovens se escondiam em pseudônimos para publicar suas criações nessa área registrando seus sentimentos dedicados muitas vezes a alguém que não poderia ser reconhecido pelas famílias.
Examinando a imprensa local da última década do século XIX e início do XX (1890, 1900), observei, em alguns jornais (“A República” e “O Democrata”) que as paraenses não se furtavam a publicar suas criações poéticas. Uma destas achei fantástica, assinada por Francelina Gomes (Diário de Notícias, Belém, 19 ago. 1897, p. 1- pseudônimo?), demonstrando que a exposição dos sentimentos femininos estáva deixando o espaço íntimo dos "diários", das memórias, do "dizer entre as paredes das alcovas" e alcançando a rua. Intitula-se “Rimas Velha”(sic): “Neste retiro em que vivo/sonhando com coisas mansas/da vida sempre me esquivo/como da escola as crianças./Gozo mais neste degredo/ nesta vivenda escondida/onde não tenho segredo/nenhuma queixa sentida. Nestes bosques verdejantes/ alcatifados de flores,/só moram ternos amantes/que vivem rimando amores. Há ninhos pelo arvoredo,/que se balançam frementes/onde os plumosos a medo/ entoam canções dolentes (...)
Outra referência poética como identificação de registro amoroso subjaz nas entrelinhas de um diminuto texto, com a ausência do nome por extenso, do par: "Ao jovem A.F.R. - Ao primeiro sorriso da alvorada de hoje sentirás sobre a tua fronte o estalido suavíssimo de um beijo. Traduz esse ósculo sincero a mais acrisolada saudação do teu feliz aniversário natalício. É tudo quanto pode oferecer-te neste dia repleta de prazer a alma de tua afetuosa. C.M." (A República, Belém, 1º mar. 1894, p. 1).
São mulheres de ontem que se fizeram poetas e publicaram suas criações. Talvez não sejam tratadas e/ou consideradas nos padrões clássicos das métricas exigidas pelo cânone, mas estavam presentes com sua emotividade e sua linguagem própria dessa arte.
 No Brasil, nomes como Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de AndradeCecília Meireles, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes, além de outros mais próximos deste tempo de poesia “cíbrida” (híbrido e cibernético, segundo o professor Jorge Luis Antonio) já se inscreveram no pódio e de lá não saem, mantendo sua obra perene. Temos os nossos paraenses já imortalizados no solo amazônico como: Eneida, Adalcinda Camarão, Olga Savary, Antônio Juraci Siqueira, Antônio Távernard, Benedicto Monteiro, Bruno de Menezes, Edyr de Paiva Proença, João de Jesus Paes Loureiro, José Ildone Soeiro, Max Martins, Rodrigues Pinagé, Age de Carvalho, Ruy e Paulo André Barata etc.
Na história da poesia brasileira, se não há o registro de muitas mulheres, há muitos motivos entre os quais a valorização maior de pesquisas sobre os poetas. Por isso, lembro hoje as nossas pioneiras, como a inconfidente Barbara Heliodora (1759-1819), a primeira mulher poeta do Brasil; a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira poeta negra e a primeira a aventurar-se pelos domínios da ficção literária; Auta de Souza (1876-1901) ombreia-se ao pioneirismo de Maria Firmina. A potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) e Patrícia Galvão, a Pagu entre tantas.
A colega Eunice Ferreira dos Santos sentindo a necessidade de visibilizar nossas poetas e escritoras criou, em agosto de 2007, a Casa da Escritora Paraense – CASAEPA, um projeto cultural do GEPEM/UFPA. Há um acervo de 2.340 exemplares fac-similados e 6.095 em CD. Um passo que espera demonstrar a celebração da arte poética das paraenses.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 14/03/2014)



sábado, 8 de março de 2014

AS MULHERES, NO SEU DIA


Mulheres em luta contra a ditadura 


Nas datas especiais há sempre um motivo para centrar as idéias e discorrer sobre elas dando ênfase a este ou aquele ponto mais identificado com quem escreve. As áreas de conhecimento, âmbito acadêmico, revelam-se prolíficas em estabelecer teorias e meios de investigação para este ou aquele enfoque tornando ainda mais especifico o sentido da abordagem. Criam-se especialistas sobre os assuntos e por ai vai a maneira apropriada de tratar as coisas.
Neste sábado, 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher, portanto, um tema que me levou a evidenciar alguns aspectos neste texto. Há mais de 30 anos assumi a questão da mulher como uma especialidade do meu interesse para estudos e pesquisas acadêmicas. Dizer que sou expert nesse tema é ter muita ousadia para essa afirmação. A cada dia paradigmas são quebrados nas ciências humanas e sociais e entre estes se tem a situação da mulher como um eixo que vai subvertendo a onda das descobertas de estudos sobre a metade universal dos seres humanos.
Na visão de alguns, anteriormente, englobar no termo homens era a maneira universal de tratar dos humanos. Naturalizado pelo convencionalismo não era questionado porque entrava ai desde a questão da linguagem e termos que deveriam ser corretamente absorvidos e subsequentemente escritos. Aos poucos esse olhar criou uma maneira de ver a questão biológica afetando a política de tratamento dessa categoria social incluindo então o conceito gênero e suas intercorrências em outras línguas. No Brasil, vai-se nos dicionários e estes definem gênero como “conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma origem ou que se acham ligados pela similitude de uma ou mais particularidades”. Derivados dele como “generificar” não existem nesses compêndios, mas no inglês sim, ou seja, gendered – que numa perspectiva inovadora, é um termo que define uma ação marcada pelo gênero. Da biologia à cultura um passo agigantado marcou as mudanças mundiais sobre o tratamento concedido aos humanos vistos com o sentido da divisão sexual no âmbito da ciência biológica, marcador anatômico da condição entre os sexos. Mas a cultura deu outra dimensão a essa categoria do ser homem e do ser mulher. E assim, as maneiras de identificá-los foram desmontando o tratamento único embora diverso e incorporando os vários modos de ser da cada uma dessas categorias. Entretanto, a convenção marcando a representação social tornou seriamente irredutível tanto o tratamento formal da lingua quanto de atitudes reconhecidas como coladas à situação de homens e mulheres e inconcebíveis de serem assumidas por um dos dois sexos não fosse aquela definida para cada um deles, sob pena de serem vistos como subvertendo a ordem humana do gênero de nascença. Da indumentária ao gestual a diferença se dava pela dimensão do sexo. E assim foi sendo convertido o espectro humano exigido pela sociedade e, subsequentemente, aqueles/as que fugiam à imagem configurada pela tradição sofriam penalizações e se tornavam desviantes da cultura de seu sexo.
Tentando avaliar desde o momento em que pessoalmente me identifiquei como mulher, evidencio a corrente tradicional sempre ganhando valor ao definir usos, hábitos, ações e comportamentos próprios ao sexo feminino. As garotas que fugiam ao padrão, na minha cidade, eram sempre discriminadas devido a não se portarem como “meninas”. Atividades do tipo jogar futebol deveriam ser declinadas por esse gênero por seu pertencimento aos valores masculinos. Brincar de boneca, saber cozinhar, lavar & as demais atividades “do lar” tendiam a ser da minha alçada, enquanto ajudar meu pai no comércio, carregar mantimentos para casa, eram da alçada dos meus irmãos. Minhas roupas diferiam das deles, porque meus vestidos embora da mesma cor tinham rendas e bordados, enquanto os chamados fatos que eles vestiam eram isentos desses enfeites. Na escola, as meninas sentavam junto com as colegas e eles com os garotos. E assim, se tornavam hábitos cunhados como fortes valores que eram exigidos de nós desde criança, sendo, por isso mesmo, considerados, naturalmente, uma atitude ipso fato (me desculpem os juristas o uso deste termo latino aqui), ou seja, efeito consequente direto de uma ação em causa. E na torrente de acúmulos de hábitos e costumes sociais determinando os nossos comportamentos, a questão do namoro, do noivado, do casamento seguia uma linha clássica fortalecendo a categoria do “homem provedor” e da “mulher do lar” em que as predestinadas a este espaço eram as “santas” enquanto “as outras” eram vistas como “p....”, ou seja, “mulheres da vida”.
Forjam-se corações e mentes nesse clássico modelo e assim se tornam determinantes para as exigências. As que não seguem esse padrão são penalizadas e “malvistas” por todas as cabeças, mesmo as pensantes, ou seja, os donos do saber, os doutos que escorregam para os seus livros as facetas tradicionais como destidos determinantes das mulheres. Além do mais, porque a religião é uma instituição que forja suas regras para essas predestinações, a carga de des-valores para as mulheres se torna ainda mais exigente.
Hoje, ao avaliar as mudanças do novo momento em que a questão da mulher e as relações de gênero passaram a ser ponto de estudos e avaliações de todos os seculares costumes que as submetia às grandes violências porque não seguiam o padrão instituido, vejo que muitas conquistas nos fazem ir para as ruas e mostrar ainda mais pesares sobre aquelas que ainda morrem pelas armas de homens hostis que exigem delas um tipo feminino forjado pela patriarcalismo. Estou nessa marcha assumindo a postura de uma militante que acredita que os direitos das mulheres são também direitos humanos. (imagem de http://www.docentesfsd.com.br/ )

(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 07/03/2014)