sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A HORA DAS URNAS

A dez dias para o segundo turno das eleições majoritárias, o eleitorado brasileiro está perplexo diante da forma que o “fazer política” partidária se entrecruza com o aviltamento do voto de cidadãos/ãs. De acusações a partir de fatos que nem sempre se inserem no contexto, a boatos infundados sobre atitudes e/ ou frases soltas e deslocadas da situação que ao serem pronunciadas pelos candidatos se transformam em libelo usado contra eles, o processo de capitalizar votos nessa dimensão tem feito mais estragos do que tem ajudado a definir a opção do/a eleitor/a pela competência de governar sob a orientação de um programa em discussão nesse momento. Se a liberdade de expressão de uma sociedade democrática se define pelo direito de os cidadãos e cidadãs manifestarem de forma livre suas opiniões e idéias sobre qualquer assunto, não é verdade que esse direito deva resvalar para a maledicência e o vilipêndio à honra das pessoas que estão no jogo eleitoral.

A garantia da liberdade de expressão no Brasil foi preservada desde a constituição do Império até a de 1937. No Estado Novo, o governo de Getulio Vargas imprimiu uma forma própria de censura com impedimento à formação de associações e a publicação ou reprodução de certas informações desfavoráveis ao governo. Com o ordenamento jurídico inscrito na Constituição de 1946 ficou restabelecida a livre manifestação das idéias.

Entre aberturas e fechamentos do direito de livre expressão dos cidadãos e cidadãs, tanto legais e públicas quanto privadas e ideológicas, o sistema político brasileiro transitou em uma grande maré de efeitos a cada época levando alguns/as a se tornarem vítimas de confrontos de idéias deixando entre nós as marcas insepultas de suas convicções pelo que disseram e cantaram.

O que se observa nesta época eleitoral tem extrapolado essa maneira de livre expressão. Não me convence o fato de instituições trazerem ao cenário de discussão, apelos discriminatórios contra as mulheres que há séculos estão intentando demonstrar que não são apenas útero, mas têm inteligência e discernimento sobre assuntos diversos que povoam sua existência. Basta terem acesso a eles. Se não, vejamos: por que, no período imperial, as familias internavam as mocinhas nos conventos religiosos e por lá estas permaneciam até a idade do casamento para aceitarem o “par perfeito” escolhido pelo pai, para constituir familia? Esta atitude refletia o medo de estas jovens fugirem com seus namorados e/ou namorarem rapazes de fora do status social, no caso das familias abastadas, um sintoma de que a censura interna grassava sobre o sentimento e as opiniões dessas meninas. E as mágoas secretas dessa repressão eram repassadas aos seus diários, hoje um documento importante de estudos sobre a vida privada feminina.

Por que os costumes decidiram que “mulher e política se excluem” deixando-as por séculos sem o direito do voto, sem a educação, sem acesso às profissões ditas masculinas? E às que ousavam avançar nessas áreas restritas havia sempre formas repressoras para “ensinar” às demais congêneres, de que elas sofreriam sansões caso seguissem os “maus exemplos”. Interesante um artigo escrito por Vilhena Alves, em 1887, para um jornal da Vigia, “A Borboleta” (depois reproduzido em 1993, em “A República”, jornal belemense) no qual ele questiona o saber das “mulheres doutoras” se para esse gênero outras áreas a dignificavam. Mas o professor se redime com a Ciência : “Não simpatizamos nada com as mulheres doutoras apesar de sermos idólatras da ciência”. Em outro parágrafo o autor continua, agora tratando da questão de classe: “De que serve, com efeito, a uma moça pobre, o estudo das ciências e das belas artes, se desconhece os princípios rudimentares da economia doméstica?” É uma época? Hoje as mulheres são doutoras, mas ainda se acham presas as imagens dessa “economia”.

Como se vê, as afinidades entre o pensar discriminador que detona qualquer livre expressão de ser outra pessoa fora do modelo feminino, para as mulheres, no final do século XIX, ainda resistem às bases das insinuações atuais do modelo de representação social a que este gênero deve seguir. Lembro Eneida de Moraes que em 1930, ao deixar marido e dois filhos em Belém para seguir suas convicções ao partido comunista que se organizava no Brasil, foi por muito tempo execrada pelas familias paraenses que assistiam aos seus “vicios” de fumar, beber publicamente, conviver em roda de homens intelectuais e nem sequer avaliavam a potencialidade intelectual da mulher que tinha o direito de seguir livremente suas idéias.

Nesses modelos que catapultam as mulheres que aspiram trajetorias supostamente acima do que devem ser, vige o que Margareth Rago (UNICAMP) trata como o “útero nômade” que constroi os estereótipos femininos e contrai-lhes o desejo para um só indicador social responsavel pelo vilipendio e a maledicencia da honra das mulheres que ousam sair da velha tradição.



Bertha Lutz, a sufragista brasileira histórica


(Publicado em "O Liberal" em 21/10/2010)

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