domingo, 14 de julho de 2013

É A REFORMA POLÍTICA, ESTÚPIDO!

Roberto Ribeiro Corrêa
Economista, Doutor em Ciência Política/UFPA

Quais os mecanismos institucionais que devem vigorar num sistema político de sorte a aperfeiçoar as relações entre os poderes executivo e legislativo, em proveito da boa política, fortalecendo os partidos, reduzindo os custos de campanha e os custos decisórios de governo? A resposta a esta abrangente questão induz a debates dissonantes, sobretudo com políticos aferrados a mandatos conquistados pelas regras atuais. O novo sempre traz apreensão e desconfiança. A expressão “reforma política” refere-se a uma ampla gama de compósitos institucionais cuja principal função é estruturar comportamentos interativos nos quatro níveis em que se estabelece a ação dos atores políticos: eleitor, candidato, legislativo e executivo. Algo que a semelhança do aparelho econômico tem a ver com os mecanismos de insumo (mercado eleitoral), processador (burocracia estatal) e produto (políticas públicas direcionadas a corrigir falhas de mercado). Ou seja, uma engenharia constitucional que tem a ver com a mais antiga questão política: como chegar, como usar e como transferir o poder?
Vivemos atualmente sob a égide da fórmula de voto proporcional de lista aberta combinada a um sistema de governo presidencialista que se estrutura a partir de distritos eleitorais de variados tamanhos quanto ao número de eleitores, em todas as esferas da Federação (União, estados e municípios). Esse é um sistema único no mundo e reconhecido pelo Banco Mundial, em seu Relatório de 1997, como o de mais alto custo em termos de manutenção e operação da máquina estatal. A fórmula eleitoral vigente permite, nos casos das coligações partidárias, a transferência integral do voto do eleitor, a chamadasobraque, aproveitada para totalização dos quocientes partidários, termina distorcendo o resultado das urnas, estimulando, como manda a regra, o surgimento de micros partidos organizados a imagem e semelhança da celebridade do momento, seja esta o moralista, o palhaço ou o justiceiro. Uma antiga e conhecida peroração resume essa patologia institucional: a freirinha vota em José, candidato do Partido Cristão que não se elege. Seu voto, todavia, é aproveitado nas “sobras” para eleger um ateu do Partido Comunista, integrante da mesma coligação da qual faz parte o Partido Cristão. Pode? Outra patologia do mesmo sistema eleitoral anula o princípio de “a cada eleitor um voto”. Por quê? Sim. Independente do tamanho do eleitorado, a legislação vigente estabelece um número mínimo (8) e máximo (70) de deputados federais por estado da federação. Isso leva a que o voto do eleitor do Amapá, por exemplo, valha algumas vezes mais do que o voto do eleitor de São Paulo — discrepância da proporcionalidade da representação legislativa que às vezes pode servir de estímulo à criação de territórios, estados e municípios.
O problema maior desse sistema eleitoral é, no entanto, o que diz respeito à estruturação de comportamentos nas relações candidato–eleitor. Como a ordenação das preferências se dá através da livre manifestação do eleitor pelo voto uninominal, o candidato deve preocupar-se apenas com a sua eleição e, uma vez eleito, com a sua reeleição. Sua campanha eleitoral, por isso mesmo, deve ser apoiada no clientelismo e o eleitor, sentindo a impotência do político frente ao poder constituído, prefere aceitar as migalhas pré-eleitorais a apostar num futuro melhor escolhendo um candidato mais comprometido com as questões de fundo da sociedade brasileira. Uma opção orientada para o presente, para o imediato, como função inversa do nível de renda. Ou seja: quanto menor a renda do eleitor, mais forte o estímulo em trocar voto por benefícios imediatos.
Em decorrência desse sistema eleitoral, portanto, as relações entre o parlamentar (i.e. deputado federal, deputado estadual e vereador) eleito por voto proporcional e o executivo (i.e. presidente da República, governador e prefeito) eleito por voto majoritário (maioria absoluta dos votos, mesmo que em dois turnos), tende a ser conflituosa mesmo que ambos coabitem a mesma legenda partidária. Diz-se, dessa maneira, que as relações entre executivo e legislativo são assimétricas e justapostas. Em outras palavras, a força e o prestígio do executivo é bem maior do que a de um corpo legislativo fragmentado em um grande número de legendas partidárias e, por isso mesmo, pulverizado por interesses paroquiais os quais, no limite do absurdo, faz com que o número de partidos seja igual ao número de parlamentares com assento na Câmara dos Deputados, nas assembléias legislativas e nas câmaras de vereadores. Com efeito, enquanto o executivo se devota à macropolítica; o deputado está preocupado com a micropolítica, em atender a sua paróquia mesmo que para isso adote a chantagem legislativa resumida nas boutades “é dando que se recebe” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Este rápido diagnóstico explica a importância da Reforma Política paralisada há anos no Congresso Nacional. Desde o encerramento da Constituinte de 1988 e com o plebiscito de 1993 sobre sistema de governo (parlamentarista ou presidencialista), crescem as dúvidas quanto à funcionalidade do sistema político atual (i.e. sistema eleitoral e sistema de governo) em face de um Brasil problemático e escasso de boas políticas públicas que produzam governabilidade (estabilidade decisória) e governança (sensibilidade às demandas dos atores sociais). Em síntese, uma única preocupação assoma a elite política brasileira: a percepção bastante difundida de que o sistema partidário brasileiro não estaria funcionando a contento, pois que entra governo e sai governo e os escândalos continuam, seja qual for o partido no governo (i.e. partido incumbente).  E aqui vale a blague do marqueteiro de Bill Clinton adaptada à realidade política brasileira: não são os políticos, são as instituições, estúpido!
Essa situação levou a que várias Comissões fossem instalada no Congresso Nacional para estudar a fundo a questão “reforma política”, a partir de um único elemento catalisador: o de conceber instituições favoráveis à consolidação de um sistema de partido estável, representativo das clivagens sociais mais importantes; e eficaz na formação de governos. Temas como voto facultativo, reeleição, desincompatibilização e inelegibilidade, elegibilidade de militar, imunidade parlamentar, perda de mandato, infidelidade partidária, financiamento público de campanha, entre outros, não mexem tanto com a vida política do país quanto à reforma do sistema eleitoral. Esta sim, — carro chefe das divergências conciliáveis apenas por meio de um amplo e profundo debate nacional, o que, naturalmente, conta com diversos obstáculos entre os quais o principal, sua complexidade para entendimento do cidadão comum. Daí a importância constituir uma comissão de notáveis, a exemplo da Comissão Afonso Arinos na constituinte de 1987, para elaborar um projeto de engenharia constitucional, tendo por foco a reforma política em sua acepção mais ampla. Desse ponto em diante, em meio à efervescência dos debates, a sociedade estaria preparada para responder um plesbicito ou, quiçá, um referendo. 
Dada a importância do tema, e as circunstâncias imprevisíveis de sua trajetória legislativa, opto por delinear e comentar algumas das proposições encaminhadas ao Congresso Nacional, as quais vão do voto em lista fechada, passando pelo voto distrital e chegando ao distrital misto e, mais recentemente, alguns monstrengos, que prefiro declarar minha total rejeição, como o denominado “distritão”, proposto pelo vice-presidente da República, deputado Michel Temner ─ que se aprovado derrogaria a representação proporcional via extinção do quociente eleitoral e partidário, em benefício dos campeões de voto em cada distrito (i.e. unidade federada, para eleições a Câmara dos Deputados), seja a unidade federada ou o município, oficializando a perenidade do personalismo e do caciquismo hereditário na política brasileira, com suas conhecidas mazelas, entre as quais avulta a corrupção eleitoral.
Vejamos a seguir cada um desses padrões de representação ou, dizendo melhor, de conversão de votos em cadeiras legislativas e seus resultados no que toca aos comportamentos políticos de eleitores, candidatos, representantes legislativos e executivos, estruturados a partir de cada uma dessas variantes institucionais.
No primeiro caso, lista fechada, o mecanismo deve ser definido a partir da fórmula de voto proporcional, o que implicará decidir qual a maneira de delimitar os distritos. Se por estado, com é hoje, com suas inevitáveis distorções, ou de proporcionalidade quase absoluta — implicando definir distritos com base em colégios eleitorais do mesmo tamanho (i.e. mesmo número de eleitores), o que anularia, para efeito puramente eleitoral, caso mantida a proporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados, os limites geográficos das unidades federadas para efeito de escolha de representantes a Câmara Federal. O sistema de lista fechada tem como vantagem a estruturação de campanhas eleitorais centradas em programas e partidos, e por isso mesmo menos dispendiosas, uma vez que, ao invés de clientelismo, próprio do sistema de lista aberta, os partidos teriam que se apresentar tal quais marcas de empresas políticas devotadas à produção de bens públicos diferenciados por interesses e/ou clivagens sociais. Ou seja, os partidos apresentariam a lista de nomes e o eleitor votaria na sigla do partido de sua preferência (ignorando aqui as combinações outras que permitem maior flexibilidade, como o ordenamento da lista a partir da vontade do eleitor) que, dependendo do percentual de votos, capturaria um determinado número de cadeiras a serem distribuídas de acordo com a ordem dos candidatos eleitos na convenção partidária ou por meio de eleições primárias. Assim, por exemplo, o partido A obteve 10% dos votos, preencherá então 10 cadeiras legislativas, na hipótese de uma câmara formada por 100 representantes. Nesse caso, não haveria espaços para as celebridades e para os puxadores de voto a la Tiririca e tampouco a possibilidade de votar no mocinho e eleger o bandido. Na estruturação endógena do sistema de lista pré-ordenada, o comportamento seria de estímulos à vida e a disciplina partidárias em detrimento do que hoje ocorre em todos os partidos, com facções, em permanente conflito, estruturadas não em torno de programas ou de ideologias, mas em torno de candidaturas.
O voto distrital ─ também chamado de voto distrital puro ─ corresponde a um tipo de eleição majoritária em oposição à eleição proporcional. Ou seja, cada partido lança apenas um candidato por distrito, obrigando o eleitor a votar em um dos candidatos ofertados em seu distrito. A natureza pluralista dessa eleição é do tipo: o vencedor (mesmo que por um voto) leva tudo. Esse é um sistema cuja patologia é a desproporcionalidade. Ou seja, um partido pode obter 40% dos votos e preencher menos de 10% das cadeiras legislativas, bastando para isso que tenha perdido por diferenças mínimas em 90% dos distritos; tendo por contrapartida, outro partido, o vencedor, elegendo mais de 90% das cadeiras com apenas 60% dos votos. Este é um sistema de viés geográfico, que favorece as disputas personalizadas em nível local, onde o poder econômico conta para definir, na repetição do jogo, os partidos sobreviventes no longo prazo. Por outro lado, devido a esse mesmo viés, as minorias são excluídas da representação, pois que teriam que estimular a migração de eleitores para um único distrito.  Emblemáticos nesse tipo de sistema eleitoral são: Inglaterra (sistema de três partidos parlamentares) e dos Estados Unidos (dois partidos parlamentares), em que pese a ampla liberdade de organização partidária existente nessas democracias.
O terceiro padrão, voto distrital misto, ou sistema de dois votos, vigente na Alemanha, funciona da seguinte maneira. Metade da câmara (ou assembléia) é preenchida via fórmula eleitoral distrital e, a outra metade, via fórmula eleitoral proporcional de lista fechada e pré-ordenada. Trata-se de uma combinação que favorece a escolha de representação geográfica (distrital) e de interesse (proporcional), tendo por vantagem a maior proporcionalidade entre o número de cadeiras recebidas por um partido e o número de votos recebidos, uma vez que a proporcionalidade é declarada no primeiro voto, havendo necessidade de cadeiras adicionais para compensar os eventos distritais dos pequenos partidos. O número de cadeiras atribuídas a cada estado (ou distrito) depende do número de votos válidos como proporção dos votos totais da União. Ou seja, a proporcionalidade é garantida como princípio filosófico de, a cada cidadão, politicamente ativo, um voto. Em outras palavras, por estímulo e punição, quanto maior a abstenção no estado ou distrito, menor o número de cadeiras destinado aquele território, e vice-versa.
De todas as fórmulas apresentadas a que mais tem a ver com governabilidade e governança — estabilidade institucional, dar conta das demandas das clivagens sociais e relações convergentes com o executivo federal, estadual e municipal, é, a meu ver, o sistema de voto distrital misto ou de dois votos. Por quê? Porque o cidadão-eleitor pode, por exemplo, nas questões da macro-política escolher em primeiro voto (i.e. voto em lista fechada) um partido progressista de sua preferência, e no segundo voto, no distrito, um candidato de outro partido, por ser este último uma pessoa competente para representar e lutar pelos interesses do seu distrito — numa palavra, a micro-política.


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