Historicamente, a hierarquia sexual na sociedade se
responsabilizou pela cidadania seletiva privando as mulheres dos direitos civis
e políticos. O nascimento das democracias ocidentais com a defesa dos direitos
naturais dos indivíduos inscritos nos princípios de igualdade e de liberdade mensurou
o novo estatuto da cidadania. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
proclamada em 26 de agosto de 1789, síntese da Revolução Francesa, tornou-se o
documento-síntese do modelo de cidadania, fundador dos direitos de liberdade e
de igualdade modernos.
Este
modelo liberal atravessou o Ocidente, tornou-se fator revolucionário na luta
pela cidadania, mas deixou de fora as mulheres. A francesa
Olympe de Gouges, em 1791, denuncia as teias do discurso, reformula a Carta
redigindo uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 17 artigos,
reivindicando o mesmo nível de tratamento para os dois sexos. Em 1792, a inglesa Mary Wollstonecraft lança as suas Vindications of the Rights of Woman. Ambas pleiteiam
co-presença no terreno político, exigem complementaridade como possibilidade de
uma relação igualitária mesmo que não necessariamente simétrica baseada no fato
de que a diferença de sexo não pode justificar a exclusão das mulheres do poder
político e da cidadania social (Groppi, 1995).
O domínio da
política marcado pelos limites impostos à participação feminina gera
significativos problemas de desigualdade. Olympe de Gouges, analfabeta até a
idade adulta, liderou as mulheres francesas no processo de revolução,
reclamando o direito de voto às mulheres e o direito destas de exercerem um
ofício, influindo nos debates e nas lutas de outras causas sociais. Por ter
cometido o "delito” de haver esquecido as virtudes de seu sexo intrometendo-se
nos assuntos da República foi denunciada pelo Procurador Chaummete, sendo presa
e guilhotinada em 07 de novembro de 1791.
Olympe de
Gouges e Mary Wollstonecraft, no século XVIII, foram as primeiras mulheres a defenderem
o direito do voto, seguindo-se outros focos insurgentes nos EUA, Inglaterra e
nos demais países democráticos do ocidente. No Brasil, os estudos de Hahner
(1981) revelam que mulheres cultas já na década de 1880 demonstravam, nos
jornais que editavam (“O Sexo feminino”, de Francisca Senhorinha da Motta
Diniz) e nas peças e revistas que criavam (Josefina Álvares de Azevedo, em
1891), posições favoráveis à concessão do voto feminino. Alguns constituintes
de 1891 debateram o assunto, evidenciando-se posições contrárias de membros do
Parlamento, como Lauro Sodré, para quem o sufrágio feminino constituía-se uma
“idéia anárquica, fatal, desastrada”, embora fosse favorável à educação da
mulher. O médico Tito Lívio de Castro argumentava por sua vez sobre “os
cérebros infantis das mulheres, sua inferioridade mental e retardação evolutiva”
(Hahner, 1981).
Houve ainda uma
gradual mudança das normas legais brasileiras vigentes nas Cartas
Constitucionais, desde as Ordenações Filipinas (código portugues de 1603, embasando
os códigos no país até 1917) à Constituição de 1988, cuja alteração na
legislação civil incorporou um número considerável de propostas específicas,
resultante dos debates dos grupos autônomos e ONGs de mulheres.
O artigo 70 da
Constituição republicana de 1891 declara: “São eleitores todos os cidadãos
maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.” O termo cidadão referenciava o representante do
sexo masculino não contemplando os dois sexos. Através dos debates sabia-se,
contudo, que os legisladores haviam excluído a mulher, sem que isso estivesse
explícito na Constituição, como ocorria em relação aos mendigos, religiosos,
analfabetos e soldados.
A polêmica em
torno da cidadania política feminina intensificou-se na década de 1920, a
partir da atuação de um grupo de mulheres liderados por Bertha Lutz, mais
conhecidas como sufragistas. A Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino-FBPF fortaleceu os debates no interior da sociedade em “lobby”
nacional até a promulgação, em 1932, pelo então Presidente da República,
Getúlio Vargas, do novo Código Eleitoral incorporado (até 1934) à Constituição
de 1891. Essa nova lei determinava o voto secreto e facultava às mulheres, caso o desejassem, o exercício do voto,
direito obrigatório para os homens. Ratificado pela Constituição de 1934, esse
direito tornou-se dever de cidadania
apenas para aquelas que exercessem uma função pública remunerada.
É somente com
a Constituição de 1946, revitalizada pelo processo de redemocratização após
quase dez anos de ditadura Vargas que as brasileiras alcançaram o direito do
voto enquanto dever de cidadania. Nas Constituições de 1967 (período da
ditadura militar) e na de 1988 (período que marca uma nova fase de redemocratização
depois de 29 anos de ditadura), as mulheres continuaram formalmente
reconhecidas nos seus plenos direitos constitucionais e políticos. Nesta Carta
de 1988, aliás, a igualdade política entre os dois gêneros tornou-se melhor
explicitada, como se pode observar no inciso I do art. 5º: “Homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.” Foi uma
estratégia do movimento de mulheres presente nos debates para elaboração do
documento, que procurou esclarecer prováveis interpretações dúbias que
porventura ocorressem nos termos da lei.
A luta pela
igualdade de direitos, definindo-se na plena cidadania política da mulher,
materializou-se no ato de votar e ser votada, contudo, não criou práticas de participação com direito à representação política, no mesmo nível
da participação masculina. As razões explicativas dessa desigualdade: a versão recorrente
de argumentos sobre a domesticidade feminina e a presença massiva das mulheres
nas tarefas domésticas, nos espaços privados do lar. Estes são fundamentos
centrais da formação de estereótipos ligados à definição dos papéis sexuais dos
modelos tradicionais de comportamento, reforçado pelo condicionamento cultural do
processo clássico de socialização política das mulheres, onde se inscrevem
idéias, valores, conceitos e explicações científicas que norteiam o
comportamento feminino aspirado. O sistema educacional precário nem sempre
contemplando as mulheres, também concorreu, reforçou e definiu as “carreiras”
tradicionais para estas, a exemplo, a sua ausência em certas profissões
enquanto em outras era quase exclusiva a presença masculina. A difusão de
mitos, tabus, estereótipos na sociedade e veiculados pela mídia, tem
contribuído para o reforço a esses modelos de comportamento.
Embora
ainda hoje persistam esses estereótipos houve grandes conquistas através de
lutas pelos direitos políticos femininos. A exemplo, em 1994, as discussões da IV Conferência de Beijing exploraram
o tema das ações afirmativas para as
cotas partidárias através de lei nacional. A apresentação, debates, articulação
e aprovação pelo legislativo de uma emenda de Lei Eleitoral, em 1995,
apresentada pela então Deputada Martha Suplicy, garantiram um percentual de 20%
das vagas de cada partido ou coligação para preenchimento de candidaturas de
mulheres, nas eleições municipais de 1996. Nesse ano, houve aumento do número
de candidaturas e de eleitas nos quadros legislativos municipais, embora não
fosse alcançada pelos partidos a cota mínima exigida naquele momento. Uma nova
redação da emenda a ser aprovada e proposta à Comissão de Constituição e
Justiça (CCJR), foi discutida pelos parlamentares que votaram e aprovaram em
definitivo, em 1997, o texto final assegurando a adoção de uma cota partidária
mínima de 30% e máxima de 70 % para qualquer um dos sexos.
Em 2007 inicia-se a discussão de uma minirreforma eleitoral. Pela Lei 12.034/2009,
altera-se o artigo que regulamenta as cotas, obrigando os partidos ao preenchimento
das vagas, e não mais uma reserva. Outros itens: a obrigatoriedade de no
mínimo 5% dos recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação das
mulheres; reserva de pelo menos 10% do tempo do HEG dos partidos para este
gênero. Outras propostas: lista fechada com alternância de nomes
na relação nominal partidária; e financiamento de campanha recentes eixos para
a promoção da presença das mulheres em mais cargos de decisão política.
A eleição da primeira presidente da
república no Brasil mostra a evolução da representação política feminina exemplificando
a presença de mais mulheres no poder.
(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 08/03/2013)
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