sábado, 3 de outubro de 2015

POR TODAS AS FAMÍLIAS



"Familia de Saltimbanco" de Pablo Picasso 


A sociedade civil e organizada brasileira há duas semanas está se mobilizando na articulação do Movimento “Por Todas As Famílias” contra o Estatuto da Família, o PL 6583/13, apresentado pelo deputado Anderson Ferreira (PR-PE) que define o conceito de família como “a união entre um homem e uma mulher” e restringe o núcleo familiar aos padrões heteronormativos. O parecer do relator, Deputado Diego Garcia/PHS, foi aprovado em 24/09/2015, por 17 votos a 5, na Comissão Especial, com o trâmite previsto para apresentação ao Senado.
A comunidade acadêmica que tem se debruçado desde longa data para estudar, pesquisar e refletir sobre as mudanças historicamente construídas da realidade global e da brasileira em particular iniciou e fortaleceu essa mobilização apresentando notas de repúdio, análises de experts das várias áreas inclusive da área jurídica como a da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), com demonstrativos da inconstitucionalidade de vários artigos e da grave violação de direitos fundamentais de cidadãos e cidadãs brasileiros. Em sua nota diz:
“A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) vem a público manifestar sua discordância acerca do PL 6.583/2013, que dispõe sobre o Estatuto da Família, por entender que o Congresso não pode legislar sobre direitos já garantidos pela Constituição Federal (CF) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), notadamente:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (...)”
Em outra parte do documento a PFDC/MPF afirma: “O PL 6583/2013 ao definir, em seu Art. 2º, “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, restringe direitos já conquistados por uniões civis de pessoas do mesmo sexo e que não correspondem à definição proposta.”(...) O documento segue demonstrando quais direitos são cerceados a/ao cidadã/ao brasileiro e que constam na Constituição de 1988.
Sobre o conceito de família homoafetiva, o documento capta o entendimento da Professora Dóris de Cássia Alessi (2011, p. 45): “Amparada pelos princípios constitucionais, às uniões homoafetivas ganharam relevo a partir do momento em que o obsoleto modelo patriarcal e hierarquizado de família cedeu lugar a um novo modelo fundado no afeto. A propósito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas pelo amor, respeito e comunhão de vida preenchem os requisitos previstos na Constituição Federal em vigor, quanto ao reconhecimento da entidade familiar, na medida em que consagrou a efetividade como valor jurídico”.
Neste texto considero, também, como retrocesso as alterações sociais provindas do Estatuto da Família. A Dra. Simone Barbosa Villa (FAUeD/Universidade Federal de Uberlândia) ao estudar a dinâmica urbana no Brasil contemporâneo observa “as significativas mudanças pelas quais têm passado os arranjos familiares da população (...)” constituindo-se em “nova dimensão nesse início do século XXI onde a velocidade das mudanças é grande”. Além da ordem demográfica como a diminuição da fecundidade e o envelhecimento da população ela destaca outros componentes integrados às transformações sociais e culturais como “o menor número de matrimônios, aumento das separações e atraso das uniões, conjuntamente com o novo papel da mulher na família e no trabalho, as quais tiveram importantes implicações nas relações de gênero.” Neste último aspecto são percebíveis as conquistas históricas que as mulheres alcançaram na luta por sua emancipação construindo um processo de conscientização sobre as seculares perdas de direitos no âmbito da cidadania política, social, cultural e econômica.
Esse processo de mudanças que nas últimas cinco décadas revolucionaram o mundo tende a afetar as estruturas familiares e sociais a exemplo: “(i) revolução contraceptiva na qual ocorre dissociação da sexualidade da reprodução; (ii) revolução sexual, principalmente, para as mulheres que passam a distinguir a sexualidade do casamento e; (iii) revolução no papel social da mulher e nas relações de gênero tradicionais, onde a figura do “homem provedor” duela com o consolidado papel da “mulher cuidadora” (apud LESTHAGUE, 1995).
A autora evidencia, então, que esses processos transformadores favorecem a consolidação de novos formatos de grupos domésticos com ativa participação nas estatísticas onde havia o predomínio da família nuclear. “Famílias monoparentais, casais DINC (Duplo Ingresso e Nenhum Filho), uniões livres – incluindo casais homossexuais -, grupos coabitando sem laços conjugais ou de parentesco entre seus membros e a família nuclear renovada.” Neste caso, essa renovação da antiga família nuclear trouxe maior autonomia aos seus membros com declínio da autoridade dos pais. Simone Villa cita Perucchi e Beirão (2007 p. 66): “O modelo patriarcal de família, caracterizado pelo arranjo composto por pai, mãe e filhos que convivem sob a égide da autoridade do primeiro sobre os demais, está em crise”.
Neste aspecto, a presença feminina se destaca em meio à nova ordem que tem disseminado ao entrar no mercado de trabalho antes restrito a algumas funções e hoje ampliado e inclusivo para as mulheres. No Censo Demográfico do IBGE, os dados de 2010 apontam para 66,2% de famílias “nucleares” (definidas como um casal com ou sem filhos, ou uma mulher ou um homem com filhos); 19% são estendidas (mesmo arranjo anterior, mas inclui convivência com parente(s)); 2,5% são compostas (inclui convivência com quem não é parente) e os demais 12,3% são pessoas que moram sozinhas. Há ainda 60 mil casais de outra orientação sexual e quanto às uniões homoafetivas, o IGBE aponta, em 2013, para 3.701 casamentos registrados no país, 52% (1926) ocorrem entre mulheres e 48% (1775) com homens.
Meu Estatuto é em defesa dos direitos e da pluralidade.

(Texto publicado originalmente em “O Liberal”/Pa, em 02/10/2015)


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