domingo, 15 de março de 2015

PROTESTOS POLÍTICOS E PRECONCEITO




Os textos que escrevo neste espaço sempre têm fundamentos em pesquisas, estudos e ensaios que faço há mais de 37 anos (UFPA) e se deslocam para os acúmulos que fiz e tenho feito, durante minha vida de mulher madura e consciente de que alguma coisa havia/há de errado na hierarquia que distingue homens e mulheres e que eu aprendi ainda criança. Desde a indumentária própria a meninos e meninas ao modo de falar de cada um mesmo nos jogos infantis, havia sempre regras a determinar uma cultura específica para os dois gêneros. Depois, com a preocupação dos pais em contribuir para o avanço dos conhecimentos de seus filhos, a escola feminina e a masculina se mostraram dentro dos parâmetros aspirados para a continuação dos estudos.
Deslocando para outros recortes temporais as teorias estudadas no ensino superior na área sócio-política construíam a versão “para todos” onde se inclinavam as evidências do tratamento ao conceito de Homem, num plano universal, para tratar dos dois sexos. Tudo traduzido em regras sociais e acadêmicas que se fugisses à norma certamente estariam sendo vistas com incorreção e, numa prova escolar determinariam notas mais baixas e/ou mais altas caso expressassem ou não esses ensinamentos padrão.
O uso do dicionário para garantir a escrita da linguagem culta continha ou estabelecia verdadeiros diferenciais de vocábulos que para a criançada em tempo dos primeiros ciclos da escola básica eram motivo de chacotas dos meninos para as meninas. No recreio, chamar de “vaca” à colega esboçava comicidade e o autor do qualificativo depreciativo não era levado à sala da diretoria porque este era visto como “um garoto engraçado”, mesmo que com ele a classe masculina do seu grupo estivesse no coro injurioso. E o dicionário nem era consultado para avaliar uma das representações do termo – mulher de vida devassa – sendo essa a origem da “brincadeira”.
Mas a continuidade desses episódios deu sustentação à revisão da cultura cuja representação usava esse palavreado para humilhar as pessoas, no caso, as mulheres. E nesse aspecto outros termos da cultura sexista vieram se somar à lavra do dicionário querendo obter seriedade quanto às regras políticas democráticas ao serem instituídas as eleições num pleito de apresentação de candidatos e evidências aos que deveriam votar nesses sistemas. Para as mulheres que nos primórdios da república não eram incluídas como votantes, mesmo com as regras do censo que definia as quantias recebidas pelos cidadãos que deveriam votar (algumas chapeleiras e de outras profissões recebiam até muito mais do que muitos homens eleitores) os escritos  de Oliveira Viana (1977:163) discriminavam os eleitores e os que viviam nas cidades: “Os que habitam a povoação durante toda a semana são artífices (...) e homens sem ocupação, alguns mercadores e mulheres públicas”.
Partindo de toda uma reelaboração dos termos que no mais elementar compêndio (o dicionário) aos escritos que analisaram a base da cultura que tratava através de normas contratuais as relações de gênero na escola, no trabalho, na saúde, na política, houve revisão do tratamento dado às mulheres pelos direitos humanos numa república democrática (e além dela, nos vários sistemas políticos). E a revisão das teorias filosóficas, sociológicas, psicológicas e políticas através de uma base feminista refizeram o mal estar da modernidade no tratamento dado às mulheres marcado pela cultura tradicional que tratava “com naturalidade” as evidencias desrespeitosas dos modelos hierarquizados entre os gêneros. Refiro neste momento apenas a teórica política Carole Pateman em “O Contrato Sexual” (1995) ao observar como as discussões do tradicional Contrato Social (nas leis jus naturalistas) referem apenas metade da história social e em meio á revisão de clássicos reconhecidos ela avalia que “a questão do contrato sexual, que estabelece o patriarcado moderno e a dominação dos homens sobre as mulheres, foi sistematicamente recalcada” nesse contrato. Não vou me alongar nesse estudo de Pateman porque o interesse é usar sua análise para mostrar que nesses contratos que a autora trata exemplificam-se os que fazem parte da vida cotidiana, como os de casamento, trabalho, prostituição (...) etc.

Encabeçando os protestos atuais contra a Presidente Dilma Rousseff desde os que se fizeram em 2013, passando pelo período da copa do mundo e mais enfaticamente neste momento de sua reeleição e sequência de governo republicano há dois sinais de que a cultura tradicional contra as mulheres repercute como se fossem pretextos político-partidários para negar a ela o respeito como primeira mandatária do país. Já tratei neste espaço do formato como as três candidatas à presidência em 2014 foram tratadas ao longo da campanha, mas, neste momento que está sendo sumariamente escrachado é o epiteto de “vadia” e a relação do protesto como o “panelaço”. Os dois termos são parte da representação pejorativa em que são incluídas as mulheres há centenas de anos e ainda hoje os adversários da presidente revelam que esse protesto é político-partidário devido o formato da administração pública que não está a contento. No caso do “panelaço” a evidência é também anti-feminina porque secularmente quem “mexeu com panelas” foram as mulheres. E nessa onda quantas mulheres se incorporam sequer pensando que estão fazendo parte da cultura sexista recorrente que ainda hoje é forte no Brasil e que tem deixado marcas em vítimas do feminicidio. Por que “não é de “bom-tom” homens mexerem com panelas que lhes tira a virilidade.

Protestar é um direito, mas antes é preciso pensar em quanto preconceito é escarrado de bocas supostamente elegantes. E criando uma máscara de que é um protesto partidário quando na verdade é extremamente político contra as mulheres. Acusadas de não saberem administrar, que refazem regras, que revisam notas, que erram e etc.etc e que, principalmente, não devem estar num alto cargo como o de presidente da república. Foi preciso 83 anos de direito do voto às mulheres brasileiras para que elas chegassem a esse alcance. Mas as tralhas preconceituosas as acompanham.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 13/03/2015) 

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