Os textos que escrevo neste espaço
sempre têm fundamentos em pesquisas, estudos e ensaios que faço há mais de 37
anos (UFPA) e se deslocam para os acúmulos que fiz e tenho feito, durante minha
vida de mulher madura e consciente de que alguma coisa havia/há de errado na
hierarquia que distingue homens e mulheres e que eu aprendi ainda criança.
Desde a indumentária própria a meninos e meninas ao modo de falar de cada um
mesmo nos jogos infantis, havia sempre regras a determinar uma cultura
específica para os dois gêneros. Depois, com a preocupação dos pais em
contribuir para o avanço dos conhecimentos de seus filhos, a escola feminina e
a masculina se mostraram dentro dos parâmetros aspirados para a continuação dos
estudos.
Deslocando para outros recortes temporais
as teorias estudadas no ensino superior na área sócio-política construíam a
versão “para todos” onde se inclinavam as evidências do tratamento ao conceito
de Homem, num plano universal, para tratar dos dois sexos. Tudo traduzido em
regras sociais e acadêmicas que se fugisses à norma certamente estariam sendo
vistas com incorreção e, numa prova escolar determinariam notas mais baixas
e/ou mais altas caso expressassem ou não esses ensinamentos padrão.
O uso do dicionário para garantir a
escrita da linguagem culta continha ou estabelecia verdadeiros diferenciais de
vocábulos que para a criançada em tempo dos primeiros ciclos da escola básica
eram motivo de chacotas dos meninos para as meninas. No recreio, chamar de
“vaca” à colega esboçava comicidade e o autor do qualificativo depreciativo não
era levado à sala da diretoria porque este era visto como “um garoto
engraçado”, mesmo que com ele a classe masculina do seu grupo estivesse no coro
injurioso. E o dicionário nem era consultado para avaliar uma das representações
do termo – mulher de vida devassa – sendo essa a origem da “brincadeira”.
Mas a continuidade desses episódios
deu sustentação à revisão da cultura cuja representação usava esse palavreado
para humilhar as pessoas, no caso, as mulheres. E nesse aspecto outros termos
da cultura sexista vieram se somar à lavra do dicionário querendo obter
seriedade quanto às regras políticas democráticas ao serem instituídas as
eleições num pleito de apresentação de candidatos e evidências aos que deveriam
votar nesses sistemas. Para as mulheres que nos primórdios da república não
eram incluídas como votantes, mesmo com as regras do censo que definia as
quantias recebidas pelos cidadãos que deveriam votar (algumas chapeleiras e de
outras profissões recebiam até muito mais do que muitos homens eleitores) os
escritos de Oliveira Viana (1977:163) discriminavam os eleitores e os que
viviam nas cidades: “Os que habitam a povoação durante toda
a semana são artífices (...) e homens sem ocupação, alguns mercadores e mulheres
públicas”.
Partindo de toda uma reelaboração dos
termos que no mais elementar compêndio (o dicionário) aos escritos que
analisaram a base da cultura que tratava através de normas contratuais as
relações de gênero na escola, no trabalho, na saúde, na política, houve revisão
do tratamento dado às mulheres pelos direitos humanos numa república
democrática (e além dela, nos vários sistemas políticos). E a revisão das
teorias filosóficas, sociológicas, psicológicas e políticas através de uma base
feminista refizeram o mal estar da modernidade no tratamento dado às mulheres
marcado pela cultura tradicional que tratava “com naturalidade” as evidencias
desrespeitosas dos modelos hierarquizados entre os gêneros. Refiro neste
momento apenas a teórica política Carole Pateman em “O Contrato Sexual” (1995)
ao observar como as discussões do tradicional Contrato Social (nas leis jus
naturalistas) referem apenas metade da história social e em meio á revisão de
clássicos reconhecidos ela avalia que “a questão do contrato sexual, que
estabelece o patriarcado moderno e a dominação dos homens sobre as mulheres,
foi sistematicamente recalcada” nesse contrato. Não vou me alongar nesse estudo
de Pateman porque o interesse é usar sua análise para mostrar que nesses
contratos que a autora trata exemplificam-se
os que fazem parte da vida
cotidiana, como os de casamento, trabalho, prostituição (...) etc.
Encabeçando os protestos atuais
contra a Presidente Dilma Rousseff desde os que se fizeram em 2013, passando
pelo período da copa do mundo e mais enfaticamente neste momento de sua
reeleição e sequência de governo republicano há dois sinais de que a cultura
tradicional contra as mulheres repercute como se fossem pretextos
político-partidários para negar a ela o respeito como primeira mandatária do
país. Já tratei neste espaço do formato como as três candidatas à presidência
em 2014 foram tratadas ao longo da campanha, mas, neste momento que está sendo
sumariamente escrachado é o epiteto de “vadia” e a relação do protesto como o
“panelaço”. Os dois termos são parte da representação pejorativa em que são
incluídas as mulheres há centenas de anos e ainda hoje os adversários da
presidente revelam que esse protesto é político-partidário devido o formato da
administração pública que não está a contento. No caso do “panelaço” a
evidência é também anti-feminina porque secularmente quem “mexeu com panelas”
foram as mulheres. E nessa onda quantas mulheres se incorporam sequer pensando
que estão fazendo parte da cultura sexista recorrente que ainda hoje é forte no
Brasil e que tem deixado marcas em vítimas do feminicidio. Por que “não é de
“bom-tom” homens mexerem com panelas que lhes tira a virilidade.
Protestar é um direito, mas antes é
preciso pensar em quanto preconceito é escarrado de bocas supostamente
elegantes. E criando uma máscara de que é um protesto partidário quando na
verdade é extremamente político contra as mulheres. Acusadas de não saberem
administrar, que refazem regras, que revisam notas, que erram e etc.etc e que,
principalmente, não devem estar num alto cargo como o de presidente da
república. Foi preciso 83 anos de direito do voto às mulheres brasileiras para
que elas chegassem a esse alcance. Mas as tralhas preconceituosas as
acompanham.
(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 13/03/2015)
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