sábado, 20 de abril de 2013

ECOS DA INTOLERANCIA





Desde 1890, com o advento da Republica, o Brasil passou a ser um Estado Laico, ou seja, a religião deixou de ditar normas legais (Const./1824). Foi facil essa ruptura? Certamente não, mas a perspectiva de exclusões e discriminações de cidadãos/ãs perdeu a força.
Com a urbanização crescente e a secularização da cultura, na década de 1920, a influência do catolicismo tradicional enfraqueceu consideravelmente, sendo criado no Rio de Janeiro, pelo arcebisbo dom Sebastião Leme, um movimento em defesa aos ideais cristãos objetivando inserir-se na política nacional. A revista “A Ordem” (1921) e o Centro Dom Vital (1922) foram instituídos e dirigidos por Jackson de Figueiredo. Esse movimento teve maior expressão quando o intelectual católico Alceu Amoroso Lima assumiu a direção, no final da década de 1920. Em 1932, objetivando e inserção na política, esse grupo católico, ainda sob a orientação de Dom Leme, criou a Liga Eleitoral Católica – LEC, ampliando-se pelos estados, estratégicamente defensora da “segurança da comunidade católica”. Sua atuação consistia em supervisionar, selecionar e recomendar ao eleitorado católico os cadidatos que poderiam ser votados.
Em 1964, uma passeata que se chamou “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade” levantou a bandeira contra o que era interpretado como a expressão do “comunismo ateu”, valendo como uma espécie de “trailer” dos acontecimentos de dias depois: o golpe militar ocasionando anos de ditadura.
Hoje se fala de uma manifestação pública contra casamento entre pares do mesmo sexo, contra o aborto, e o mais que a religião condene (e no caso atual não é apenas a religião católica, mas todas as religiões). Em 11 de abril de 2012, o Ministro Marco Aurélio Mello reiterou, em sessão do STF: "Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”. Somos além de um país laico um país democrático, como tal, a liberdade de expressão é reconhecida. Mas em se tratando de religião, está havendo uma espécie de “guerra santa” desde que um deputado-pastor foi guinado a um cargo que orientaria decisões democráticas (presidência do Conselho dos Direitos Humanos na CD) e agora se anuncia uma nova marcha (“com Deus e pela Liberdade”?) em que verdadeiras caravanas serão patrocinadas para gritar pelos preceitos religiosos que punem o que consideram “pecado”.
A idéia dos religiosos não é condenavel legalmente. A democracia abre espaço para as expressões conflitantes. Mas uma coisa fere outra, ou seja, a demonstração de força de idéias religiosas é orientada contra quem pensa de forma diferente. Há quem queira proibir uma cantora de dizer em público, antes de seu número em um espetaculo publico, que ama outra mulher. E o pastor-politico continua aplaudindo, pode-se dizer, mortes de ídolos da música popular, como John Lennon, os brasileiros Mamonas Assassinas, afirmando que eles foram vitimas da ira divina. Se a sua versão pode ser ampliada nos sistemas sonoros democráticos ela fere familiares e quem ame a esses musicos, quem vê poesia nos versos de Lennon e quem vê na irreverencia dos Mamonas uma forma de expressão que advoga a independência de idéias (ou seja, o sentido democrático puro e simples).
As pessoas que de alguma forma foram guinadas a cargos eletivos pelo povo têm obrigação de saber que povo não é só uma falange de eleitores. Se assim fosse não haveria partido de oposição.
Quem for gritar contra a homofobia, contra as mulheres que decidem sobre seu corpo, as etnias “diferentes” da branca (que o “defensor dos direitos humanos” separou interpretando trechos biblicos como ‘castas amaldiçoadas’) está indo contra o sistema que se lutou para conseguir: a democracia. Não se deve tentar convencer quem pensa que o sistema heliocentrico ou a Teoria de Darwin é “coisa de cientista maluco”. A fogueira queimou Giordano Bruno e só não queimou Galileu porque este aquiesceu aos tiranos retirando alguns de seus pensamentos para salvar a pele.
O chamado “homo sapiens” não se tem como o último elo da criação, ou da evolução. Hoje a ciencia aposta mais além, num ser que pode evoluir na inteligencia como pode, numa fatalidade que estarrece, regridir aos ancestrais que matavam por se acharem donos da verdade. O recente atentado em Boston (EUA) faz pensar numa forma de intolerancia que em nada condiz com um progresso intelectual.
Nas palavras de uma figura que emergia na liderança ancestral, como Jesus, dando lição aos que tentaram apedrejar a mulher infiel de que “aquele sem pecado que atire a primeira pedra” há o objetivo de repelir os intolerantes. Naquele momento, ninguém atirou. Esta lição é onipresente e não podia ser de outra forma em se tratando do chamado Filho de Deus. Com essa lembrança de que a violencia como forma de castigo ultrapassa os limites de um julgamento está presente agora na condenação de tantos em nome de uma lei distorcida, ou de uma interpretação pessoal de uma lei (que pode ser do ser humano e/ou divina). E não se vá longe: alguns operadores da justiça intérpretes da Lei Maria da Penha ainda não se conformam em aplicá-la, como o juiz de Sete Lagoas que argumentou: "A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado.”(...)
É triste pensar que no seculo XXI, com os humanos deixando suas impressões além da Terra, chegando aos planetas vizinhos, ainda se veja pessoas nessa luta insana e discriminatória socio-racial sem reconhecer os principios da diversidade. Os artistas condenados pelos atuais puristas da tradição cantaram, na época da repressão, que “é proibido proibir”. Ao que consta, muitos não ouviram a música. A intolerancia é uma forma de surdez. E o mais grave ainda: um meio de violência exacerbada.

(Texto originalmente publicado em O Liberal/PA, de 19/04/2013) 

2 comentários:

  1. Luzia,

    Parabéns pelo lúcido, contemporâneo e necessário texto.

    Comungo do teu pensamento.

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Octávio Pessoa. Estamos nesse compromisso sempre.

    ResponderExcluir