domingo, 29 de maio de 2011

A MILITÂNCIA E O PODER PARA FAZER CALAR




Cansa ser militante ou o assassinato é o limite?

As duas situações – militância e morte anunciada - estão hoje em discussão após o assassinato de dois líderes de movimentos sociais - José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva – assentados no Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira (PAEX), em Nova Ipixuna – PA, e Integrantes do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), ONG fundada por Chico Mendes. Vivendo e produzindo de forma sustentável a extração de óleos, castanhas e frutos de plantas nativas, como andiroba, pupunha, cupuaçu e açaí, num lote de aproximadamente 20 hectares, com 80% de floresta preservada, esse projeto era coletivamente utilizado por cerca de 500 famílias.

O que fizeram Cláudio e Espírito Santo para ter sua militância calada pelos tiros de fuzis? Denunciaram predadores da região que agiam na extração ilegal de madeira e demais produtos que os alimentava e ao coletivo social. Demonstravam que nem as ameaças de morte eram suficientemente eficazes para deixar de questionar os argumentos equivocados sobre desenvolvimento sustentável usados pelos predadores, diferentemente do processo que os/as agricultores/as construiam e reconheciam como o que necessitava a região e seu povo para o crescimento socioeconômico.

A militância dá caminho para muitos trabalhos acadêmicos. Alguns avançam, outros ficam na proposta. Lembro que ao optar pelo mestrado no NAEA/UFPA, em meados dos anos oitenta, a questão da terra no Pará estava muito tensa (e continua, ao que se vê). A prisão e as ameaças de expulsão, pelo governo militar, no início dos anos 80, dos padres franceses Aristides Camio e Francisco Gouriou, além de outros líderes de Conceição do Araguaia, levou a muitas denúncias de grilagem de terra, prisões e a mediação de entidades dos Direitos Humanos e a presença efetiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Manifestações em Belém levavam-nos às passeatas e a parceria com os líderes dos STRs para garantir a integridade física dos presos. As mulheres dos denunciados iam para a porta das delegacias, revezando-se durante as 24 horas do dia, para que seus maridos não fossem tirados de lá na calada da noite e levados para lugares desconhecidos de onde possivelmente não sairiam com vida. Meu interesse naquele momento em estudar para a pós-graduação a questão da terra em Conceição do Araguaia baseava-se na identificação dos problemas que estávamos vivendo e, também, da leitura de um clássico livro do prof. Octávio Ianni, “A Luta pela Terra. História social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia” (Vozes, Petrópolis, 1979) em que o autor (com quem travei correspondência sobre isso) evidenciava o grave problema da questão fundiária dessa cidade paraense. Fiz incursões empíricas para me assenhorear do que eu iria tratar, sendo assistida por uma das assessoras da CPT, hoje falecida. E certa noite fui chamada a casa dela para o primeiro contato com dois senhores identificados como intermediários dos “grileiros” do sul do Pará. Numa longa conversa, sem gravador (eles não aceitaram gravar a entrevista), mas somente com anotações, eles desfiaram para nós todo o processo que realizavam: as formas de cruzar os caminhos da grilagem de terra, os desafios que o pessoal “arrebanhado” (termo de Ianni sobre o processo de captação de mão de obra escrava) tinha diante do modo de viver o trabalho de desmatamento, o passadio, a convivência com as ameaças, a fuga e a morte dos que eram apanhados, os locais onde supostamente eram enterrados. Essa foi uma das noites mais tristes que vivi. E realmente não consegui avançar no projeto. Medo de enfrentar, naquele momento, os “atores” responsáveis pela morte anunciada? É possível. O trabalho acadêmico seguiu outras vertentes, também de militância, que está hoje na linha de minhas possibilidades.

No recente “Simpósio Democracia e Participação Política nos Movimentos de Mulheres e Feministas no Pará: Cenários, práticas de empoderamento e espaços de decisão política” promovido pelo GEPEM/UFPA, as associadas dos movimentos de mulheres de 22 duas cidades paraenses, presentes ao evento, não trataram somente das questões dos direitos das mulheres. Demonstraram sua militância local em casos de denúncias à questão da terra, da hidrelétrica de Belo Monte, do tráfico de pessoas, tráfico de drogas, violência de um modo geral, impedimentos de transformar em processos essas deúuncias pelas próprias entidades que tratam da defesa social porque estas se sentem intimidadas com as ameaças. Por esse motivo resolveram criar uma comissão de mulheres - Comissão do Movimento de Mulheres paraenses - Pela Segurança Pública e Cidadania - para tratar diretamente com o Secretário de Segurança Pública sobre esses assuntos e a instalação, em certas cidades, da Base de Polícia de Fronteira- PEFRON. Essas mulheres sentem que podem mudar a base política de sua comunidade vencendo o silêncio. Caminham para quebrar os limites das ameaças que recebem. O exemplo de Irmã Doroty Stang está nas veias de quem não pode calar. O assassinato dela foi o seu limite pessoal, mas suas palavras se ampliaram mundialmente.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 27/05/2011)

Um comentário:

  1. Muito triste isso, de continuarmos em um contexto de relações políticas primitivo, selvagem, que se pensava ultrapassado, pelos menos em parte. Lembro de sua fala de que os depoimentos de muitas mulheres no simpósio evidenciaram o que é fazer política em muitos municípios do interior do Estado, seja para tratar de questões de uso da terra e de recursos de valor econômico, quanto para questões de violência contra mulher. Mas há mudanças, inclusive os "projetos" em que esses líderes estão envolvidos.

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