quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A “INVENÇÃO” DA MULHER NA POLÍTICA


O Brasil está ainda impactado com a eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar o cargo de Presidente da República. Não é para menos. Se há 78 anos o olhar espantado era para as “eleitoras”, ou seja, para as mulheres que haviam conquistado o direito de votar nos seus representantes políticos, havendo clara alusão de intelectuais e da mídia da época às “mulheres públicas”, combinando com a menção às prostitutas, o que dizer hoje da que ousou aceitar sua candidatura, lutou pela vitória e foi eleita para o mais alto cargo político do país?

Fundamentado num sistema vertebrado pelo patriarcalismo cuja retórica assume regras determinantes de condutas no relacionamento entre os gêneros, ao definir a constituição da esfera pública para a participação de “cidadãos” na “política”, diferentemente da esfera privada porque “naturalmente” assumida pelas mulheres, o sistema político estabeleceu regras diferenciadas de inclusão e de exclusão dos membros do demos na polis moderna. Mas se essas regras mantinham apoios institucionais (Constituições, Códigos Eleitorais) estes não menos se expressavam em “leis sociais” forjando e reproduzindo idéias de uma imagem feminina ética, fragil, instável e sem força para garantir as permanentes batalhas políticas que se interpunham nos conflitos partidários e eleitorias desde tempos pretéritos. E às que ousavam quebrar os ritos estabelecidos, sem dúvida recaía a censura da sociedade.

Há 25 anos tenho me debruçado nos estudos e pesquisas sobre a questão da desigualdade nas relações de gênero com ênfase na política. Uma ampla literatura nacional e internacional tem sido minha companheira em avaliar os porquês de as mulheres inventarem fórmulas para pressionar a sociedade e os governos por suas demandas próprias e, dessa forma, conquistar recursos vitais para a sua sobrevivência. Salários iguais, condições de trabalho, participação política, rompimento com a violência doméstica e sexual, foram problemas debatidos e se transformaram em políticas públicas que têm sido aprovadas e implementadas. Nada têm “caindo do ceu” para contemplá-las nessa longa caminhada de questionamentos sobre como manter a dimensão democrática equilibrada no ponto-chave desses princípios. É desse acúmulo de abordagens que tenho presenciado a grande revolução construída pelas mulheres ao mostrarem não só o seu protagonismo, mas a responsabilidade na transformação social.

Quem acompanhou os embates nestes meses de campanha entre os candidatos à presidência da república observou que a midia, as redes sociais e o próprio candidato opositor, além de outras lideranças partidárias, ensaiaram inúmeros apelos discriminatórios contra Dilma Rousseff. Um dos primeiros foi o descredenciá-la pela ausência de uma carreira política (falta de exposição do nome nas urnas) versus demanda por um cargo para a presidência da república. A expectativa era creditar a incompetência feminina para a gestão política. Seguiram-se a de “tutelada” de Lula, a “terrorista”, a “abortista”, a “sem Fé religiosa” e tantos outros epítetos que foram somados aos discursos que procuraram desqualificá-la para o cargo. Sem querer entrar no enfoque sobre as ações massivas objetivando a disseminação da “falsa informação”, e de prognósticos de decepção e dúvida sobre seu governo, no caso de uma possível vitória da candidata – argumentos que julgo mais no âmbito da luta político-partidária do que de discriminações das relações de gênero – o que pode ser configurado com o discurso sexista nessa campanha foi considerá-la tutelada e, portanto, não possuir nenhuma base de conhecimento de políticas de governo para o país. Por que ela era a “sombra”, o “arremedo”, a caricatura e, assim, quem governaria seria Lula e não ela.

Por outro lado, o fato de ser considerada adepta de políticas favoráveis ao aborto e de não possuir nenhum credo religioso, se pensado somente no ângulo partidário, destoa do aspecto discutido sobre a discriminação de gênero. Porque são “temas de mulher” relacionados à “missão materna” desfavorecida pelo ato considerado criminoso que se relaciona com a devoção religiosa muito marcada pela presença feminina.

Hoje as manifestações discriminatórias são outras. Aceita incontinente a condição de eleita, a nova presidente do Brasil está sendo suspeita de não conseguir desenvolver os programas de governo, duvidando-se sobre a sua capacidade de articulação política, de enfrentamento de questões que precisam ser combatidas desde o primeiro momento de sua posse. Como disse a Profa. Cristina Maneschy: “O problema é que já se constrói uma representação de dúvida e de incerteza, como que preparando os corações para uma tragédia anunciada”.

Na frase de Dilma, vê-se a esperança de que as mulheres brasileiras “inventem” o futuro democrático: “A igualdade de oportunidades para homens e mulheres é um principio essencial da democracia. Gostaria muito que os pais e mães de meninas olhassem hoje nos olhos delas, e lhes dissessem: SIM, a mulher pode!”


(Texto publicado em "O Liberal"(PA) em 04/11/2010)

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