sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CIRIO, DEVOÇÃO E POLÍTICA




 O pesquisador e sócio-geógrafo Eidorfe Moreira criou uma metáfora para o Círio, considerando-o uma verdadeira “pororoca humana”. Sua comparação com esse fenômeno amazônico derivava das ondas sucessivas de devotos no rio-humano de acompanhantes da procissão que se avoluma a medida que caminha progressivamente no percurso entre ruas e travessas. A elevação sucessiva das ondas de devotos aumenta o nível da maré humana ao longo da procissão qual o fenômeno das águas dos rios, furos e igarapés que se derramam sobre as várzeas e a ribanceira.
O escritor conterrâneo Dalcídio Jurandir definiu o Círio como “carnaval devoto” - a síntese de que a grande manifestação paraense é religiosa, profana, popular – conceito que foi referendado pelo antropólogo paraense Isidoro Alves (1980) em seu importante e imprescindível estudo sobre a nossa romaria, emprestando a Dalcidio para título de seu livro.
Ao tratar da corda, o poeta João de Jesus Paes Loureiro diz que o Círio também pode ser lido, mantendo-se a imagem de rio-humano, como uma preamar de signos” pela “... efervescência de símbolos, sinais, ícones, imagens, alegorias, assim como retóricas de marketing, da tradição, da modernidade, de pluralidade mística, pluri-ritualidades, grandezas hiperbólicas, cruzamento de crenças, crendices, fanatismos, devoções, enfim, uma verdadeira constelação semiótica”.
No Brasil consideram-se como as duas maiores manifestações festivas & religiosas: a de Aparecida, em S. Paulo, e a do Círio de Nazaré em Belém do Pará. A multidão que acorre a essas festas é um fator que a política nacional não deixa passar em branco. No caso do Círio, diversos Presidentes da República, e membros representativos das casas legislativas acompanharam a romaria no correr dos anos (e já somam 218). Há quem faça a peregrinação consciente de que é a fé quem move a multidão adiante ou depois da imagem da santinha. Mas há quem veja apenas o quanto a presença soma em status, ou como o povo passa a ver a figura de mando que se humilha seguindo os romeiros pelos mais de 6 quilômetros de caminhada da Catedral de Belém ao Santuário de Nazaré.
A presença política marcou tanto a história do Círio que influiu em determinados setores da romaria. A corda, por exemplo, que  surgiu no Círio de Nazaré em 1868(enchentes no Ver-o-Peso dificultando a condução da berlinda), somente, em 1885 foi introduzida oficialmente na romaria. Em 1926, o bispo dom Irineu Jofilly proibiu-a, mas em 1931, o interventor Magalhães Barata, concorde com dom Antônio de Almeida Lustosa, fez o retorno desse símbolo à tradicional procissão, permanecendo hoje embora com alterações que foram se incorporando às modernidades.
Mas é certo que os “políticos” acorreram (e acorrem) à capital paraense no segundo domingo de outubro sabendo que nesse tempo é dada a chance de aumentar prestigio, seja através de votos seja em admiração pela comunhão de crença como aconteceu em períodos de ditadura. Afinal, o povo aprecia quem lhe acena com a fraternidade. Mesmo que as figuras proeminentes fiquem isoladas da multidão no espaço ladeado pela corda, à frente ou imediatamente atrás da berlinda que conduz a imagem da padroeira do Estado.
Por vários anos eu testemunhei “políticos” acenando para quem os descobrissem em meio às autoridades eclesiásticas, diretores da festa e convidados desses diretores, todos isolados dos promesseiros que disputavam espaço para cumprir suas dividas com a santa. Podia-se até pensar que, em alguns casos, candidatos vencedores em determinados pleitos estariam “pagando promessa”. Ou quem conseguisse resolver problemas administrativos ou pessoais pesando na intercessão divina. Mas a lógica reproduzida no olhar dos outros acompanhantes ou meros espectadores era a mesma dos nobres que seguiam cortejos nos tempos imperiais. A religiosidade dificilmente escaparia de uma análise critica, especialmente quando o ilustre acompanhante fosse uma figura antipatizada pelo eleitor que o visse. 
Manifestações populares como o Círio têm sido, no correr do tempo e espaço, vitrines para quadros sociais. Se o “fulano” aparece contrito, rezando o terço e descalço, quem o vê divide-se pela simpatia que legou no passado como um cristão devoto ou como um hipócrita vendendo uma falsa imagem. No caso dos “políticos”, as impressões variam no mesmo tom. Mas assim como um astro de cinema ou TV ganha atenção seguindo a procissão dentro ou fora da corda, um nome que ocupa espaço na mídia é sempre observado. E ele/a sabe disso. As festas religiosas servem de trampolim em muitas campanhas eleitorais. Dificilmente quem não se diz cristão consegue votos num país que mesmo em certa época, quando a oposição aos valores do padrão político era assumir-se como “de esquerda”, a religiosidade era característica dominante. O povo é religioso e quem está ou ambiciona o poder sabe disso.
Assisto ao cortejo do Círio desde que adotei Belém como minha cidade vinda na pré-adolescência para um internato. Em princípio, na época da grande festa, rumava “contra a maré”, ou seja, ia para a minha Abaetetuba, com meus pais. Mais tarde é que passei a observar a romaria. E em algumas vezes cheguei a acompanhá-la ao lado das freiras do colégio.  Já na área das ciências sociais, revi muito do que se dizia e muito do que presenciei sobre os “notáveis” nas ruas, bem à vontade ladeados pelos promesseiros. Hoje, vejo que a opção pelo turismo ganha proeminência. Ela não atinge a religiosidade dos fiéis, mas impõe uma feição que retira a simplicidade que cativava nos primeiros tempos. Fiquei com a impressão de que a festa ficou mais “burocrática”, embora, e felizmente, para os crentes permaneça uma comunhão com o poder divino através da figura da santinha Maria de Nazaré.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" em 07/10/2011)

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