domingo, 10 de abril de 2011

A CULTURA E A REDE “CEGONHA”



As discussões sobre a reforma política estão em curso nas Comissões instaladas no Senado para analisar, em primeira instância, alguns itens do sistema eleitoral e partidário no Brasil a serem submetidos ao Congresso Nacional. Nos últimos dias, essa comissão aprovou entre outros: o limite de gastos dos partidos para financiamento de campanhas eleitorais, fidelidade partidária e a candidatura avulsa para prefeitos e vereadores nas próximas eleições. São temas importantes que devem ser evidenciados em suas teses, o que farei proximamente. Hoje privilegiei uma questão importante que está circulando em redes sociais e como tenho acompanhado, desde a década de 1970, essa discussão, achei melhor explorar agora.


Trata-se da Rede Cegonha, lançada nos últimos dias de março como programa de governo integrado ao SUS. As medidas previstas esperam garantir a todas as brasileiras: “atendimento adequado, seguro e humanizado desde a confirmação da gravidez, passando pelo pré-natal e o parto, até os dois primeiros anos de vida do bebê. (... ) abrangem a assistência obstétrica às mulheres – com foco na gravidez, no parto e pós-parto como também a assistência infantil (às crianças)”(cf. site do Ministério da Saúde).

A visão que se tem sobre essas medidas são as melhores possíveis, contudo, para alguns grupos da sociedade civil há um retrocesso de 30 anos. Para a Dra. Fátima Oliveira, médica, escritora, do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC) a “A Rede Cegonha é no bojo da concepção de mulher-mala [mãe e filho no mesmo cestinho], antiga, antiga”.

A farmacêutica Clair Castilhos, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) diz: “É profundamente doloroso que tenhamos que criticar a formulação e implantação de um programa do Ministério da Saúde voltado para nós mulheres.”

O alerta da cientista social Telia Negrão, secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e diretora da RSMLAC, mostra que “A idéia da Rede Cegonha desumaniza o evento reprodutivo, quando retira das mulheres o papel de trazedoras dos filhos ao mundo”. Em conseqüência, elas deixam também de ser detentoras dos direitos reprodutivos. A detentora será a cegonha”. (entrevista exclusiva ao Viomundo - http://www.viomundo.com.br/ )

Secularmente, a lenda que procurava disfarçar a gestação e o parto tomava o imaginário infantil. Em criança, cheguei a olhar para o céu para ver se passava a cegonha com um irmãozinho prometido. Outros familiares correram atrás da fantástica mensageira.

Essa “ingenuidade” era aplaudida pelos adultos. Queriam criar anjos, como seriam os que iam nascer. As descobertas viriam com o tempo e pouco importava se a curiosidade gerasse desencontros físicos e morais. Mas o que menos se pensava era na mulher grávida e necessitando de cuidados. Tudo era facilitado pela cegonha.

Visto como um retrocesso das conquistas dos movimentos sociais e de mulheres, esse Programa é também reducionista, dizem. Pois, a luta por políticas de atenção à saúde das mulheres despojada dos artifícios da ideologia do período militar dos anos sessenta (políticas de planejamento familiar) vem desde 1983, quando foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher [chamado PAISM, agora PNAIMS]. Chega-se então ao Plano Nacional de Humanização do Parto (PNHP) regulando-se, através da norma RDC 36 (define o modo como deve ser a atenção às mulheres no período gravídico-puerperal) e ao de Atenção aos Direitos Reprodutivos das Mulheres (englobando o planejamento reprodutivo, a anticoncepção de emergência, as políticas destinadas ao enfrentamento da violência sexual) e, desse conjunto de ações foi criada a Política Nacional dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos das Mulheres Brasileiras.

A rede “Cegonha” está sendo criticada por usar o conceito de “mulheres hospedeiras” de fetos, visto que “retira das mulheres a capacidade de arbitrar, de exercer com autonomia as suas decisões (....), como o conceito de mala que só carrega coisas dentro”(Telia Negrão). Criticam-se também as ações desse programa que não evidenciam estratégias na garantia de outros serviços de atendimento previstos no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, de 2004 e ainda em vigor, quando este dá ênfase à “Atenção Humanizada ao Abortamento“, que propõe a garantia da qualidade e ampliação de serviços de atenção ao abortamento previsto em lei, assegura a atenção humanizada às mulheres com aborto inseguro, uma vez que este é uma das principais causas de mortalidade materna.

O fato é concreto: a mulher engravida e morre se não tiver um bom pré-natal, atenção ao parto, puerpério, etc. No Norte e no Nordeste do Brasil a morte materna por “causas evitáveis” (aquela que não ocorreria se ela tivesse adequada atenção ao pré-natal, adequada atenção ao parto, etc.) chega a 99%. Mas o título dado ao Programa... Não é bom re-pensá-lo?


(Texto originalmente publicado em "O Liberal" (PA), em 08/04/2011, Imagem extraido do blogdoreginaldo.blogspot.com).

Nenhum comentário:

Postar um comentário