NAS FOTOS,OS IRMÃOS REIS MIRANDA - FRANCISCO DE ASSIS, MANOEL TEODORO, CORIOLANO, LUZIA E JOÃO ROBERTO
ONDE ANDAMOS?
Memórias de uma família e as mudanças
climáticas e culturais
Crescemos com a
convicção — ainda que não enunciada — de que natureza e cultura formavam um
tecido contínuo no qual nossas vidas se entrelaçavam. Éramos as crianças Reis
Miranda, abaetetubenses, filhos de um pai comerciante e de uma mãe de múltiplas
profissões, cuja atuação política e comunitária marcava profundamente o
cotidiano familiar. Sem perceber, vivíamos dentro de um sistema de relações
ambientais e culturais que hoje dialoga diretamente com debates sobre mudanças e
crise climáticas, sustentabilidade e justiça social na Amazônia. Naquele tempo,
porém, esses termos ainda não ocupavam discursos públicos nem debates
escolares; eram inexistentes como “conceito”, embora presentes como prática de
vida.
Nosso dia a dia era
entremeado por ações que hoje seriam classificadas como sustentáveis, mas que,
para nós, eram apenas o modo natural de existir. O plantio de vegetais, ervas e
frutas nos quintais; o aproveitamento integral dos recursos disponíveis; a produção
de alimentos a partir de animais criados por nós mesmos; o uso de produtos
locais e de longa duração — tudo isso fazia parte de um sistema doméstico
autônomo, moldado tanto pela necessidade quanto pela cultura do cuidado. A
Amazônia, ainda distante das pressões extremas impostas pela expansão
agroindustrial e pelas mudanças climáticas contemporâneas, oferecia um ambiente
em que a relação com a terra se expressava em reciprocidade e respeito, mesmo
sem que tivéssemos plena consciência ecológica.
Mas não era apenas a
natureza que estruturava nossa formação. Havia também um forte cultivo da
cultura e do conhecimento. Participávamos de sessões literomusicais promovidas
pelo SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) e pela escola pública,
experiências que, embora simples, inseriam-nos em um circuito cultural que
valorizava a leitura, a pesquisa e a expressão oral. Essas atividades eram
inspiradas em uma política educacional que, nas décadas de 1950 e 1960, buscava
introduzir práticas higiênicas, de saúde preventiva e de educação comunitária
nas regiões interioranas do Brasil — especialmente na Amazônia, vista como
território estratégico.
A relação com a terra
No quintal, o cultivo
de hortas seguia os ritmos da estação, das chuvas e da fertilidade do solo.
Plantávamos legumes, hortaliças, temperos e ervas que abasteciam a cozinha
diariamente. Essas práticas estavam alinhadas a saberes tradicionais
transmitidos por gerações — saberes que, embora não reconhecidos oficialmente,
constituíam um patrimônio ambiental e cultural amazônico. É impressionante
perceber, hoje, como esse cotidiano antecipava, de modo intuitivo, discussões
contemporâneas sobre soberania alimentar, agroecologia e autonomia comunitária.
Os animais faziam parte
desse universo doméstico, desempenhando funções afetivas e alimentares.
Convivíamos com coelhos, cães e galinhas; criávamos patos, perus e porcos,
todos nomeados como membros da família. A galinha Pintada, o porco “31”, o
temido “Cara Preta” — todos tinham histórias, personalidades atribuídas, laços
construídos com as crianças da casa. Entretanto, vivíamos também a contradição
própria das famílias interioranas: os animais afetivos eram, ao mesmo tempo,
provisórios. Quando chegava o “tempo deles”, como dizia nosso pai, éramos
afastados para não testemunhar o sacrifício. Nesse gesto, misturavam-se o
respeito, a necessidade e uma tentativa de preservar as sensibilidades
infantis.
O cultivo da cultura
Aos
sábados, nossa pequena comunidade doméstica e do ensino público (grupo escolar
da cidade) transformava-se em espaço de apresentação e conhecimento.
Declamações de poemas, leituras comentadas, alguma história sobre rios ou a
floresta ou a apresentação de uma pesquisa feita durante a semana sobre um fato
ocorrido em torno de uma doença ou pesquisas sobre doenças comuns na região,
recomendações de cuidados sanitários, instruções sobre preservação da água
potável — todas essas atividades compunham um ambiente cultural e científico
improvisado, mas profundamente marcado pela pedagogia da época, apresentado nos
espaços do grupo escolar. Esse movimento não era isolado: fazia parte de uma
política nacional de saúde pública que buscava instruir as populações
ribeirinhas e interioranas sobre prevenção de doenças tropicais, higiene e
bem-estar social.
Hoje percebemos que
essas práticas contribuíam para construir um repertório de saberes que
combinava o tradicional e o institucional, formando em nós uma consciência
precoce sobre o valor do conhecimento integrado à vida.
As dimensões do silêncio
Entretanto, apesar
dessa vivência rica e plural, havia silêncios profundos que só a maturidade nos
permitiu reconhecer. Não discutíamos o desmatamento, a degradação dos rios, a
perda da biodiversidade ou os impactos ambientais gerados pelos ciclos econômicos
da região — temas que, décadas depois, se tornariam urgentes. A Amazônia
passava por transformações estruturais desde o período da borracha até os
projetos desenvolvimentistas da ditadura militar, mas esses processos eram
invisíveis nos discursos cotidianos das famílias interioranas e do ensino
público.
Mais profundo ainda era
o silêncio sobre a desigualdade racial. Não se falava sobre os povos indígenas,
sobre as comunidades quilombolas, ribeirinhas ou sobre a presença e
contribuição dos povos negros na formação amazônica. Vivíamos imersos em um
sistema de racismo estrutural que naturalizava desigualdades, apagava
identidades e criava a ilusão de que “todos éramos iguais”. As diferenças de
classe e cor eram tão normalizadas que se tornavam abstratas, imperceptíveis,
como se não fizessem parte do mundo real — embora estivessem em toda parte.
Nossa mãe e nosso pai
desempenhavam ações de caridade e assistência social que tentavam, de alguma
forma, amenizar essas desigualdades. No entanto, faltava a compreensão
estruturada de que essas diferenças não eram apenas pessoais, mas históricas,
políticas e sistêmicas.
O que a memória revela hoje
Hoje, revisitar essas
memórias é reconhecer camadas que, quando vividas, permaneciam ocultas. A
interseção entre classe, raça e acesso à saúde estruturava a vida social de uma
forma que só décadas depois se tornaria evidente. O uso de plantas medicinais,
tão frequente em nossa casa, refletia não apenas um conhecimento tradicional,
mas também a falta de acesso amplo a sistemas de saúde modernos, criando uma
dependência de práticas curativas em vez de preventivas.
Outras evidências,
antes difusas, agora se mostram claras: vivíamos sob impactos de pressões
sociais e econômicas da época, marcadas por desigualdades profundas que
moldavam o cotidiano e as oportunidades. As experiências que, na infância,
pareciam apenas parte do ritmo da vida, hoje revelam sua dimensão histórica,
cultural e política.
Percebemos, assim, que nossas memórias não são apenas recordações afetivas; são também testemunhos de um Brasil interiorano que carregava, em silêncio, as complexidades das desigualdades sociais e raciais que ainda hoje ecoam.
(Luzia Álvares, 19/11/2025)
