quarta-feira, 19 de novembro de 2025

 

            NAS FOTOS,OS IRMÃOS REIS MIRANDA  - FRANCISCO DE ASSIS, MANOEL TEODORO,                             CORIOLANO, LUZIA E JOÃO ROBERTO 

ONDE ANDAMOS?

Memórias de uma família e as mudanças climáticas e culturais

Crescemos com a convicção — ainda que não enunciada — de que natureza e cultura formavam um tecido contínuo no qual nossas vidas se entrelaçavam. Éramos as crianças Reis Miranda, abaetetubenses, filhos de um pai comerciante e de uma mãe de múltiplas profissões, cuja atuação política e comunitária marcava profundamente o cotidiano familiar. Sem perceber, vivíamos dentro de um sistema de relações ambientais e culturais que hoje dialoga diretamente com debates sobre mudanças e crise climáticas, sustentabilidade e justiça social na Amazônia. Naquele tempo, porém, esses termos ainda não ocupavam discursos públicos nem debates escolares; eram inexistentes como “conceito”, embora presentes como prática de vida.

Nosso dia a dia era entremeado por ações que hoje seriam classificadas como sustentáveis, mas que, para nós, eram apenas o modo natural de existir. O plantio de vegetais, ervas e frutas nos quintais; o aproveitamento integral dos recursos disponíveis; a produção de alimentos a partir de animais criados por nós mesmos; o uso de produtos locais e de longa duração — tudo isso fazia parte de um sistema doméstico autônomo, moldado tanto pela necessidade quanto pela cultura do cuidado. A Amazônia, ainda distante das pressões extremas impostas pela expansão agroindustrial e pelas mudanças climáticas contemporâneas, oferecia um ambiente em que a relação com a terra se expressava em reciprocidade e respeito, mesmo sem que tivéssemos plena consciência ecológica.

Mas não era apenas a natureza que estruturava nossa formação. Havia também um forte cultivo da cultura e do conhecimento. Participávamos de sessões literomusicais promovidas pelo SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) e pela escola pública, experiências que, embora simples, inseriam-nos em um circuito cultural que valorizava a leitura, a pesquisa e a expressão oral. Essas atividades eram inspiradas em uma política educacional que, nas décadas de 1950 e 1960, buscava introduzir práticas higiênicas, de saúde preventiva e de educação comunitária nas regiões interioranas do Brasil — especialmente na Amazônia, vista como território estratégico.

A relação com a terra

No quintal, o cultivo de hortas seguia os ritmos da estação, das chuvas e da fertilidade do solo. Plantávamos legumes, hortaliças, temperos e ervas que abasteciam a cozinha diariamente. Essas práticas estavam alinhadas a saberes tradicionais transmitidos por gerações — saberes que, embora não reconhecidos oficialmente, constituíam um patrimônio ambiental e cultural amazônico. É impressionante perceber, hoje, como esse cotidiano antecipava, de modo intuitivo, discussões contemporâneas sobre soberania alimentar, agroecologia e autonomia comunitária.

Os animais faziam parte desse universo doméstico, desempenhando funções afetivas e alimentares. Convivíamos com coelhos, cães e galinhas; criávamos patos, perus e porcos, todos nomeados como membros da família. A galinha Pintada, o porco “31”, o temido “Cara Preta” — todos tinham histórias, personalidades atribuídas, laços construídos com as crianças da casa. Entretanto, vivíamos também a contradição própria das famílias interioranas: os animais afetivos eram, ao mesmo tempo, provisórios. Quando chegava o “tempo deles”, como dizia nosso pai, éramos afastados para não testemunhar o sacrifício. Nesse gesto, misturavam-se o respeito, a necessidade e uma tentativa de preservar as sensibilidades infantis.

O cultivo da cultura

Aos sábados, nossa pequena comunidade doméstica e do ensino público (grupo escolar da cidade) transformava-se em espaço de apresentação e conhecimento. Declamações de poemas, leituras comentadas, alguma história sobre rios ou a floresta ou a apresentação de uma pesquisa feita durante a semana sobre um fato ocorrido em torno de uma doença ou pesquisas sobre doenças comuns na região, recomendações de cuidados sanitários, instruções sobre preservação da água potável — todas essas atividades compunham um ambiente cultural e científico improvisado, mas profundamente marcado pela pedagogia da época, apresentado nos espaços do grupo escolar. Esse movimento não era isolado: fazia parte de uma política nacional de saúde pública que buscava instruir as populações ribeirinhas e interioranas sobre prevenção de doenças tropicais, higiene e bem-estar social.

Hoje percebemos que essas práticas contribuíam para construir um repertório de saberes que combinava o tradicional e o institucional, formando em nós uma consciência precoce sobre o valor do conhecimento integrado à vida.

As dimensões do silêncio

Entretanto, apesar dessa vivência rica e plural, havia silêncios profundos que só a maturidade nos permitiu reconhecer. Não discutíamos o desmatamento, a degradação dos rios, a perda da biodiversidade ou os impactos ambientais gerados pelos ciclos econômicos da região — temas que, décadas depois, se tornariam urgentes. A Amazônia passava por transformações estruturais desde o período da borracha até os projetos desenvolvimentistas da ditadura militar, mas esses processos eram invisíveis nos discursos cotidianos das famílias interioranas e do ensino público.

Mais profundo ainda era o silêncio sobre a desigualdade racial. Não se falava sobre os povos indígenas, sobre as comunidades quilombolas, ribeirinhas ou sobre a presença e contribuição dos povos negros na formação amazônica. Vivíamos imersos em um sistema de racismo estrutural que naturalizava desigualdades, apagava identidades e criava a ilusão de que “todos éramos iguais”. As diferenças de classe e cor eram tão normalizadas que se tornavam abstratas, imperceptíveis, como se não fizessem parte do mundo real — embora estivessem em toda parte.

Nossa mãe e nosso pai desempenhavam ações de caridade e assistência social que tentavam, de alguma forma, amenizar essas desigualdades. No entanto, faltava a compreensão estruturada de que essas diferenças não eram apenas pessoais, mas históricas, políticas e sistêmicas.

O que a memória revela hoje

Hoje, revisitar essas memórias é reconhecer camadas que, quando vividas, permaneciam ocultas. A interseção entre classe, raça e acesso à saúde estruturava a vida social de uma forma que só décadas depois se tornaria evidente. O uso de plantas medicinais, tão frequente em nossa casa, refletia não apenas um conhecimento tradicional, mas também a falta de acesso amplo a sistemas de saúde modernos, criando uma dependência de práticas curativas em vez de preventivas.

Outras evidências, antes difusas, agora se mostram claras: vivíamos sob impactos de pressões sociais e econômicas da época, marcadas por desigualdades profundas que moldavam o cotidiano e as oportunidades. As experiências que, na infância, pareciam apenas parte do ritmo da vida, hoje revelam sua dimensão histórica, cultural e política.

Percebemos, assim, que nossas memórias não são apenas recordações afetivas; são também testemunhos de um Brasil interiorano que carregava, em silêncio, as complexidades das desigualdades sociais e raciais que ainda hoje ecoam.

 (Luzia Álvares, 19/11/2025)