sexta-feira, 4 de março de 2016

ENTREVISTA - O FEMINISMO E AS VÁRIAS FORMAS DE VIVER AS RELAÇÕES DE GÊNERO



Publicada no jornal "Diário do Pará" em dezembro de 2015, a entrevista considerou  minha posição tanto pessoal quanto institucional sobre o feminismo. A publicação neste blog quer celebrar as comemorações do Dia Internacional da Mulher - 8 de março de 2016,

1.O que é feminismo?
R. É uma ideologia formada por um conjunto de ideias estruturadas no âmbito teórico-cultural-institucional-pessoal das sociedades, que foi incorporada pelas mulheres na luta por seus direitos e por se fazerem reconhecidas enquanto pessoas humanas.
2. O assunto ainda é um tabu em tempos modernos? Por quê?
R. A sociedade global criou suas próprias representações sobre um modelo feminino forjado por um sistema patriarcal que definia e defendia a valorização dos homens como seres mais dotados cultural e de conhecimentos, em detrimento do saber das mulheres. Esse modelo de submissão e de aceitação a um tipo de viver social o qual sempre foi esperado socialmente dos comportamentos femininos – desde o modo de vestir aos gestos e atitudes – cravou até hoje a imagem das mulheres que ainda sofrem violência doméstica por não seguirem o suposto “aparato” criado para elas. Do aspecto objetivo – demandas por certas profissões, atividades “femininas”, comportamentos – ao subjetivo – “instinto materno”, posição apolítica sobre o seu corpo, desconhecimento de si mesmas porque as torna “ingênuas” (sendo esse estado que a sociedade reclama) – todas as possibilidades de envolver novos conhecimentos e consciência política sobre o que é ser mulher servem, muitas vezes, de processos de culpabilização contra as mulheres. As mais ousadas – enfrentando esses tabus culturais – ferem o sistema proposto e caminham para conquistas profissionais, pessoais, afetivas – enquanto um número significativo de mulheres ainda acredita que “ser direita” é não fugir às imagens tradicionais. Por que ainda vigem esses esquemas de manutenção do poder que as submete a esse esquema hostil? É que a cultura disseminada pelo sistema patriarcal ainda é muito forte. E as mulheres têm ainda certo receio em ser mal faladas. Existe isso? Sim. Veja-se que há familias que ainda seguem esses tabus em nome da tradição. Existem mudanças no ponto de vista feminino sobre isso? Sim, creio que sim. Caso contrário hoje não haveria tantas e tantos lutando contra a discriminação contra as mulheres, a homofobia, a violência doméstica.
3. Você é feminista?
R. Sim, sou feminista. À medida que fui começando a visualizar as diferenças que eu percebia entre as mulheres – não havia um só tipo de mulher, mas havia várias mulheres que agiam diferentemente, algumas, minhas familiares – procurei saber a história de vida dessas mulheres e dos homens seus companheiros – essas foram as minhas primeiras impressões sobre essa ideologia sem dela fazer bandeira. Mas através de leituras e de novos conhecimentos sobre o que era ser mulher, o que era “mulher no modelo” e o que era conquistar espaços, sobre as dificuldades desse gênero, que demonstrava sua inteligência e seu saber em qualquer área fui me inserindo na luta sobre o reconhecimento dos direitos das mulheres.
4. Quando e por que se tornou uma?
R. Vejo hoje que a condição de “ser feminista” foi o meu processo de existência que me identificava como uma garota diferente dos meus irmãos, mas, por isso mesmo, eu deveria me submeter a certos padrões femininos da época que aos poucos eu fui entendendo que eram situações que desvalorizavam as meninas e as mulheres em relação aos meninos e homens. Conhecer o porquê uma jovem era “malvista” na minha cidade e cujo comportamento eu não deveria seguir, fazia parte da cultura familiar. No colégio religioso, no internato em Belém, eu me incorporava ainda àquela tradição de “meninas bem-comportadas” e achava estranho que outras colegas fossem vistas como “malcomportadas”. Toda essa bagagem acumulada sobre “ser mulher” e “ser homem” se incorporava na minha forma de ser. Já casada, com filhas, procurando seguir os estudos e alcançando o vestibular na área das Ciências Sociais/UFPA fui abrindo minhas ideias e meu reconhecimento sobre o eixo tradicional - “meu marido”, minha casa”, meus filhos” -  ampliando-se para o olhar sobre as múltiplas mulheres minhas colegas e então, com o pronome possessivo (nosso) – passei a desmontar a figura única feminina para um olhar mais concessivo às múltiplas mulheres com seus problemas, suas vidas, e uma infinidade de outros comportamentos. Me conscientizei da cultura sexista acumulada e passei a lutar contra esses paradigmas clássicos da “imagem feminina”. Investi em me tornar uma outra mulher.
5. Você é uma feminista ativista? (Se sim, explique o que faz uma e, se não, explique que feministas não precisam necessariamente ser ativistas).
R. Há feministas e vejo que algumas são ativistas. Outras são ativistas, mas não se consideram feministas. Cada pessoa tem sua opção por ter respeitada sua forma de ser, a identidade com a qual se investe. Na verdade, a medida que entendi o processo de socialização das relações de gênero em que as pendências desvalorizadas tendiam sempre para as mulheres, passei a ser uma feminista ativista. Como me faço ser? Tenho clareza que há muito os paradigmas que tratam dos direitos humanos incorporaram a luta das mulheres por direitos e por respeito com o fio condutor das lutas sociais. Por que essas lutas além de abraçarem as demandas das mulheres, trazem em seu bojo a luta dos diversos seres humanos que são discriminados socialmente. Assim, estudo, pesquiso, escrevo, oriento, faço palestras, divulgo, integro grupos sociais e de mulheres os mais diversos procurando avaliar o quanto é difícil uma ativista assumir a todos os problemas do mundo e ainda viver em família, com os problemas internos desse grupo. Mas de qualquer forma estou na luta pela justiça social e pelos direitos humanos das mulheres, dos homens, das crianças, dos idosos, dos homossexuais, dos transexuais, dos negros, dos indígenas e tantas e tantas categorias. Enquanto eu tiver vida vou estar do lado dos menos favorecidos socialmente. E vamos ganhando espaços. Ativismo é não calar diante do preconceito e da discriminação.
6. O que defendem as feministas?
R. Se antes a política pelos direitos das mulheres mostrava-as com essa única bandeira para garantir conquistas, hoje as feministas estão em todas as frentes em que se faz necessário lutar pelos direitos humanos. Dizer que elas estão lutando só pelos seus problemas é estar de fora da filosofia feminista atual que tem um leque de demandas para criar o emblema do reconhecimento da diversidade. Lutamos pela incompetência da parcialidade dos direitos, lutamos contra uma cultura segregacionista, lutamos pela amplitude do abraço a todos os seres humanos que estão sem direitos.
7. O feminismo é forte hoje ou já foi mais forte em tempos passados?
R. Não há feminismo, mas feminismos. Sim, a ideia de ampliar a luta das mulheres para contemplar a discussão dos problemas aos demais seres humanos é de ontem, mas hoje se torna bastante intenso. Em cada tempo ele se fortaleceu pelas circunstancias que demonstravam situações de exploração contra as mulheres, mas ainda hoje se reconhece que ele jamais “cairá de estação” até quebrar algumas das ainda persistentes desigualdades sociais.
8. Qual a diferença das feministas de ontem para as feministas de hoje?
R. Em séculos pretéritos, a luta pelo direito político das mulheres, ou o direito do voto feminino tornou-se um tema recorrente de discussão. Mas nessa demanda pela cidadania política onde o voto era o elemento de inclusão política, havia outros processos de valorização que se incluíam com o direito do voto, como o direito a educação de qualidade, o direito ao trabalho qualificado e as relações de trabalho condignas e as profissões de um modo geral. Se essa política pública foi conquistada, hoje, muitas demandas ainda estão na agenda das feministas que vão para as ruas em busca de respeito pelo que vestem, pelo que querem, pela forma de transitar livremente nos mais variados espaços. E tal qual essas mulheres, hoje, todos aqueles que se julgam excluídos fazem coro e repercutem as demandas por seus direitos. A luta contra a violência doméstica e sexual contra as mulheres é uma pauta que mexe com a cultura sexista que ainda está presente na sociedade.
9. A sociedade as vê de forma diferente em tempos modernos?
R. Sim, ainda hoje, em todos os espaços, há discriminação contra as feministas que são vistas de forma equivocada como querendo o espaço masculino e/ou intentando igualar-se aos comportamentos desses seus parceiros. Na verdade, a cultura sexista está impregnada socialmente. Meus alunos do curso de ciências sociais relatam casos deprimentes de críticas preconceituosas quando começam a apresentar assuntos sobre a questão da mulher. E olhe que eles estão numa universidade e num curso que supostamente faz a crítica da sociedade...
10. Temos uma presidente mulher, e muitas mulheres hoje ocupam cargos importantes. Nós avançamos, mas ainda há muito que mudar. Cite as principais reivindicações.
R. A luta das mulheres pelo aumento do número delas na representação política é histórica e ainda não acabou com a conquista do direito do voto, cotas partidárias etc. Foi um avanço termos uma mulher na presidência da república, mas nos bastidores, se há bombardeio de críticas a sua política de governo busque o subjacente sobre a questão das “mulheres no poder”. A cultura contra as mulheres nos espaços de decisão política vai “passar para a opinião pública” como se fosse uma luta partidária, mas não é somente isso. Vejam-se as charges e as críticas a Dilma não ter marido, ser gorda, vestir-se desta e não daquela forma e etc, etc. E aos presidentes, fizeram essas mesmas charges?
No momento, as reinvindicações para a ruptura com a sub-representação política feminina, no caso brasileiro, se inscrevem, inicialmente, com demandas específicas na aprovação da mini-reforma da Lei 12.034/2009 a destinar 5% do Fundo Partidário para a formação política das mulheres, tempo de propaganda partidária fora dos anos eleitorais com vistas a difundir a participação das mulheres, alteração no parágrafo terceiro do artigo 10 da Lei 9.504/1997, que estabelece o número de vagas de candidaturas que cada partido ou coligação destina para cada sexo - “lei de cotas para mulheres”. Ao invés de “deverá reservar” 30% das vagas, a reforma estabeleceu o termo “preencherá” o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”, enfatizando o caráter obrigatório do dispositivo. Na reforma política prevista para as discussões deste ano, outros dispositivos devem entrar na pauta como a mudança da lista aberta para a lista fechada com a alternância de nomes de mulheres e homens entre outros pontos.
11. Na festa do Oscar-2015 algumas atrizes presentes protestaram sobre a perguntas que fazem a elas sobre seus vestidos no tapete vermelho, mas esperam tratar de sua carreira, planos, atuação.. Da mesma forma que perguntam aos homens. Qual sua opinião sobre o assunto?
R. Nos anos 1960, na chamada Segunda Onda Feminista, a teórica norte-americana Betty Friedan revolucionou o mundo quando propôs que as mulheres não deveriam ser vistas somente pelo seu sexo, mas por sua inteligência, seu saber. Houve uma crítica ferrenha a esse novo discurso – com o movimento de “queima dos sutiãs” – mas demonstrativo de que também tínhamos ideias inteligentes e deveríamos ser reconhecidas como tal.
Hoje, quem está empenhada nas novas questões de ruptura aos estereótipos culturais ao se sentirem mulheres profissionais da arte, mães, esposas, são as atrizes do cinema que avaliam a forma discriminadora de serem tratadas nos papéis que representam ou nas questões que são apresentadas nas entrevistas a que são submetidas devido ao tipo de perguntas que a mídia lhes faz. Esse não deixa de ser o confronto com o mundo masculino da arte cinematográfica que sempre situou o homem com os principais papéis. Elas estão constatando também que mesmo nessa área não são levadas a serio. É importante a conscientização dessas grandes mulheres que circulam em múltiplos papéis além de seus próprios enquanto seres humanos. Elas merecem respeito.


(Nome: Maria Luzia Miranda Álvares, abaetetubense, doutora em Ciência Política, 75 anos, docente e Pesquisadora universitária (UFPA) e jornalista com trabalho de mais de 40 anos sobre cinema e política). 

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