domingo, 21 de dezembro de 2014

INCITAR AO ESTUPRO É CRIME



Imagem extraida do blog http://pn7.com.br/


O Código Penal Brasileiro em seu Artigo 213 (segundo a redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) é claro quando define que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena para esse crime resulta em reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Considerado um dos crimes mais violentos, o estupro foi reconhecido pelo Poder Legislativo como crime hediondo, ou seja, aquele que merece reprovação por parte do Estado brasileiro, previsto expressamente na Lei nº 8.072 de 1990.
Se há toda uma legislação criminal caracterizando esse crime de hediondo ao ser definido desde o sentimento de constrangimento a alguém pela ameaça à sua prática até a sua consumação (projetando-se para os atos derivados e específicos), a avaliação desse artigo da lei, mesmo pelos não iniciados nos estudos do Direito tende a demonstrar que ele aponta para dois momentos: a incitação (planejamento para) e a ação (execução) desse ato planejado.
O presente texto tem clara a dimensão de protesto e de denúncia considerando que quem escreve é uma mulher e também uma militante dos direitos humanos que se viu constrangida pela ofensa grave cometida por um suposto representante do povo que teve seu mandato renovado em mais um exercício do cargo na Câmara de Deputados, Jair Bolsonaro (PP/RJ), reconduzido pelos votos do Rio de Janeiro. A ofensa grave foi dirigida a outra parlamentar, a deputada Maria do Rosário (PT/RS) eleita pelo Rio Grande do Sul. O cenário da ofensa considerada incitamento ao crime foi o plenário da Câmara de Deputados, ou seja, o espaço que deve ser usado para as funções parlamentares destes que se consideram eleitos para representarem o povo. O fato se deu no dia 9 deste mês derivado de uma discussão sobre a proposta do deputado de redução da maioridade penal aos infratores, em que Maria do Rosário é contrária contestando com veemência. No que Jair Bolsonaro retrucou não ser estuprador, pois do contrário “se fosse, não estupraria você, porque você não merece”. Essa mesma afirmação foi reproduzida pelo deputado aos jornais que o entrevistaram.
Esse fato levantou uma séria questão sobre o incitamento à violência sexual e alguns órgãos estão se articulando para criar mecanismos de punição ao deputado, a exemplo, a cassação de seu mandato. Na semana passada, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, solicitou à Procuradoria a abertura de uma ação contra Bolsonaro. A justificativa da vice procuradora geral da República, Ela Wiecko, que ofereceu denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF) é que o deputado "abalou a sensação coletiva de segurança e tranquilidade" considerando o estupro como prática possível. Destaca: “Todas as mulheres devem ter a segurança de que não serão vítimas de estupro, já que a prática é crime previsto na legislação penal”. Acrescentou: “Ao dizer que não estupraria a deputada porque ela "não merece", o denunciado instigou, com suas palavras, que um homem pode estuprar uma mulher que escolha e que ele entenda ser merecedora do estupro”.
O PT, PCdoB, PSOL e PSB também entraram com representação contra Bolsonaro no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, solicitando a sua cassação do atual mandato com os mesmos argumentos de incitação ao crime. A sociedade civil através dos Movimentos de Mulheres e grupos feministas também se acha na luta pela punição ao deputado. Há uma petição, na internet, com mais de 270 mil assinaturas (até as 7h30 da quinta feira, 18) que defende a perda do mandato de Bolsonaro, reeleito com 464.418 votos. O interesse é chegar às 500 mil assinaturas.
Até meados da década de setenta, sendo 1975 o Ano Internacional da Mulher declarado pela ONU, havia a ideia de que em um caso de estupro, as mulheres eram responsabilizadas de terem contribuído para que esse ato ocorresse, caso não tivessem tentado resistir. Dessa forma, a mulher violentada, teria que provar na polícia aonde ia dar queixa, que havia tentado resistir. Nessa época, a feminista norte-americana Susan Brownmiller lançou o livro “Against Our Will: Man, Women and Rape” cuja tese principal declarava que "crime de estupro decorre de um processo consciente de intimidação da mulher pelo homem, a qual se mantém, assim, em um permanente estado de medo. Perde, portanto, o caráter de mero crime sexual violento para ganhar conotação política. O estupro se torna uma forma de subordinação da mulher frente ao homem”. O resultado é a formação de uma “ideologia do estupro”, estimulando a perspectiva de que há benefícios a todos os homens devido a uma condição que evidencia a superioridade masculina internalizando-se essas práticas e se transformando em estado de terror. Segundo Susan Brownmiller esse ato de violência tenderia a ser uma forma consciente de manter o medo e a intimidação entre as mulheres. Assim, o estupro não seria desejo sexual, mas formas de violência, poder e opressão. Esse livro, aliás, dá base significativa para entender a tendência de justificar a violência contra as mulheres arraigada nas representações sociais haja vista que a autora denuncia historicamente causas do estupro partindo da história judaica.
Outros aspectos que revelam os discursos sexistas forjados para justificar esse crime é considerar a indumentária feminina como responsável pelo incitamento masculino. Se a roupa feminina for/fosse provocante o agressor vê/via sua pena atenuada, no caso de a ação chegar à justiça.
O caso de Bolsonaro é muito grave. Mesmo instigado a revidar a discussão com sua colega, ele tem um mandato, representa o povo, embora a sua ideologia do estupro seja/esteja muito mais entranhada do que o dever que jurou praticar assumindo uma cadeira parlamentar como defensor dos direitos humanos.


(Texto originalmente publicado em O Liberal, no dia 19/12/2014)

sábado, 1 de novembro de 2014

DESIGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL


Figura extraida do arquivo GELEDÉS.

O Relatório Índice Global da Diferença de Gênero, do Fórum Econômico Mundial divulgado esta semana demonstra que houve uma queda no ranking da igualdade entre homens e mulheres no Brasil, com o país deixando a 62º posição de 2013 para assumir a 71º entre as 142 nações analisadas em 2014, calculando-se as diferenças de gênero em quatro indicadores: economia, participação política, saúde e educação. Embora se reporte numa perspectiva global há, contudo, resultados ótimos nessa análise e que não foram evidenciados nas notícias que circularam no Brasil. Li partes desse documento para avaliar os ganhos que poderiam estar menos evidentes no noticiário.
Em 395 páginas, o Global Gender Gap Report – 2014 apresenta todo o referencial metodológico que apoiou a equipe de elaboração do documento, cujo índice foi construído para classificar os países em suas diferenças de gênero, não no seu nível de desenvolvimento. Sua concentração se valeu de três evidências conceituais: primeiro em medir as lacunas ao invés dos níveis; segundo, as lacunas captadas são das variáveis de resultado, não das variáveis de entrada; e terceiro, a classificação dos países se dá de acordo com a igualdade de gênero em vez do empoderamento das mulheres. Diz: “Nosso objetivo é fornecer um instantâneo de onde homens e mulheres estão em relação a algumas variáveis de resultados fundamentais relativos a direitos básicos como saúde, educação, participação econômica e poder político” (p. 3-4). A construção dos índices para a extração dessas diferenças considera que quanto maior aproximação a 1, maior a igualdade entre os gêneros, sendo que a nota zero indica desigualdade total. Esse diferencial vem sendo utilizado desde 2006.
Nesses índices, o Brasil apresentou-se bem nas áreas de educação e saúde. No primeiro caso, “o Índice penaliza ou recompensa países com base no tamanho da diferença entre as taxas de matrícula masculinas e femininas, mas não para os níveis gerais de educação no país.” (p. 3-4). Nesse caso, o Brasil, ao lado de mais sete países – Bahamas, Belize, França, Guiana, Letónia, Namíbia, e as Filipinas – fechou totalmente a distância no sub-índice de educação. Ou seja, sua nota, foi 1 (totalizou o índice) e sua posição foi 1ª ou empate com os países que apresentaram maior igualdade de gênero nessa área.
No caso da saúde, foram utilizadas duas variáveis: a proporção de nascimentos entre os sexos, e a expectativa de vida entre homens e mulheres considerando as boas condições de saúde. Neste item o país levou 0,98 mantendo-se na posição 1ª conforme o que havia recebido no índice de educação.
Os índices que se tornam problemáticos para a queda do Brasil no ranking global de igualdade de gênero foram: o de participação e oportunidade econômica – cuja nota foi de 0,694, que lhe deu a 81ª posição (diz que houve uma "ligeira queda na igualdade salarial e renda média estimada para mulheres no Brasil.”) – e a de empoderamento político – com a nota 0,148, ficando na 74ª posição. Esses dois indicadores levaram o país à queda no nível de igualdade entre os gêneros que de 62º baixou para 71º.
Diz o relatório que o Brasil conseguiu fechar 70% da lacuna entre os gêneros: “A queda do Brasil em nove colocações, ficando em 71º, aconteceu mesmo tendo fechado com sucesso ambas as lacunas entre gêneros no nível educacional e de saúde e sobrevivência. Sua prioridade agora deve ser de garantir retornos em seus investimentos através do aumento da participação feminina na área de trabalho” (p. 23).
A Ministra Eleonora Menicucci da Secretaria de Política para as Mulheres, com base na leitura do relatório considerou: “É necessário que a sociedade e os organismos reconheçam a discriminação presente no mundo do trabalho e que não reflete os esforços das mulheres e o avanço das políticas públicas. Discriminação que opera diuturnamente na direção de manter os ganhos das mulheres menores do que os dos homens quando na mesma função. Igualmente inegável, à luz de qualquer métrica, é que as políticas públicas de fortalecimento do salário mínimo nos últimos 12 anos – reconhecidas até pelos críticos – também favoreceram as brasileiras, uma vez que são elas que compõem o maior contingente nesse segmento de renda”.
Os dados extraidos da RAIS 2013, diz a Ministra, tendem a demonstrar que o nivel de emprego cresceu em 3,14% em 2012 e que entre as mulheres elevou-se para 3,91%, percentual maior do que o crescimento entre os homens (2,57%). Houve também um aumento no rendimento médio delas que se elevou para 3,34%, em relação ao deles que foi de 3,18%.
O outro grande vilão do gap comprometendo a igualdade de gênero no Brasil foi o empoderamento político feminino. Aos 82 anos de acesso ao sufrágio (1932), em 125 anos de República (1889), as mulheres brasileiras ainda têm presença reduzida nos espaços de decisão política.
Somente em 2010 foi eleita uma mulher para o cargo máximo do país – presidência da república. E sistematicamente as/os estudiosos/as do comportamento político enfatizam o processo de sub-representação feminina nos parlamentos mundiais, com o Brasil sendo um dos casos mais evidentes. Veja-se nestas eleições 2014: a bancada feminina da Câmara dos Deputados vai estar representada com 51 deputadas eleitas das 513 cadeiras, ou seja, 9,94%. Na legislatura passada eram 45 ou 8,77% e como se vê, crescendo muito pouco. No Senado, 11 mulheres representarão 13,6% dos 81 senadores. E nas Assembléias Legislativas houve o maior número de mulheres candidatas em eleições gerais, mas somente 11,33 % ou 120 parlamentares eleitas. O número de deputadas estaduais e distritais diminuiu 14,89% ao compará-los à bancada de 2010.
No documento do Fórum Econômico Mundial há evidências de que mundiamente as rupturas ao gap da igualdade de gênero foram pequenos. A lacuna entre homens e mulheres foi avaliada em 60%, embora em 2006 fosse de 56%. Para a BBC (http://www.bbc.co.uk/ ) “Nesse ritmo, levará 81 anos para o mundo fechar essa brecha completamente”.


 (Texto originalmente publicado em "O Liberal"/PA de 28/10/2014)

domingo, 26 de outubro de 2014

MULHERES NA POLÍTICA E A MISOGINIA




A onda de estereótipos instalada sobre as mulheres que se candidatam e concorrem em eleições, seja em âmbito formal ou não, tem sido devastadora.
Nos estudos que tenho feito sobre este assunto, as autoras que se dedicam a essas matérias mostram o tom censor dos que não aceitam a presença feminina no cenário político e apontam reflexões formuladas em torno dessas versões. O aspecto mais evidente é o de certos vocábulos aplicados para criticar representantes deste gênero que se apresentam para competir, principalmente em cargos dificilmente reconhecidos como de competência feminina. E os termos são lançados para desqualificá-las, são vistos, pela maioria das pessoas, da população ou do eleitorado, como fazendo parte do jogo político-partidário que se estabelece nesses pleitos, na escolha formal mais enfaticamente para um cargo majoritário, ou num posto informal, para o desempenho de uma coordenação ou presidência de um determinado órgão ou associação.  
Há alguns anos participei da formação de um movimento de mulheres pescadoras em certa cidade paraense em que havia uma Colônia e regularidade de comando masculino nas eleições dessa categoria. Já organizadas e filiadas ao seu órgão de classe, as pescadoras apresentaram o nome de uma de suas associadas para competir ao cargo de presidente da Colônia, em certa eleição deste órgão. Os obstáculos foram intensos para que elas não participassem do evento. Primeiramente houve tentativa de exclusão do nome apresentado considerando que a associação não tinha os requisitos necessários para a competição. A apresentação dos estatutos e toda a formalidade exigida para a ocasião venceu a pretensão dos líderes da colônia e as mulheres inscreveram sua chapa. A argumentação de que não sabiam administrar selava o veredicto. A chapa encabeçada pela associada não foi exitosa. Sistematicamente elas têm apresentado candidatas a esse cargo, mas somente agora, segundo relato de uma das associadas, devem vencer a eleição.
As candidatas à presidência da república, nesta eleição, não foram poupadas de constrangimentos pelo tom de críticas ofensivas e emblemas de misoginia que são revelados no embate público. Antes mesmo, na abertura da Copa do Mundo, em junho deste ano, uma ala de torcedores levantou a voz numa locução marcada com palavras de sentido pejorativo para agredir a Presidente da República. Nessa agressão não estava somente a visibilidade da ofensiva de seus opositores partidários pelo cargo ocupado, mas infiltrado notam-se acepções que desvirtuam a dignidade da pessoa que está no poder pelo voto. Neste caso, a crítica a essa agressão, levou em conta mais a ofensa à autoridade da representante do país, entretanto, subjacente, se encontrava a aversão ao feminino. À consideração da primeira mulher a assumir o poder máximo de um país em cuja competição se observam mais duas ou três outras mulheres, a demanda por esse tipo de cargo será cada vez mais evitado e o acúmulo de interesse deste gênero, por ele, tenderá a encolher. Kunovich & Paxton (2005) observam: “Enquanto as mulheres fizeram progressos notáveis no domínio da educação superior e de profissões tradicionalmente masculinas, a esfera política continua a ser uma arena em que elas ainda não obtiveram comparativamente visível status. Atitudes preconceituosas são custos eleitorais pensados pelas mulheres bem mais do que qualquer outro recurso necessário.
Os epítetos misóginos contra as candidatas têm sido recorrentes neste período de campanha. A avaliação dessa aversão tem estado presente nas redes sociais, mas nem sempre os/as que estão submetidos ao calor competitivo partidário se tocam da aplicação subjacente que fazem sobre a desvalorização feminina. A naturalização clássica sobre os chamados “papéis” femininos e masculinos subjaz no imaginário social e nesses momentos repercutem num tom vazado de “partidário”. Mas a representação desses papéis sempre foi uma demanda pública pelo comportamento “certo” e “errado” entre os gêneros e em especial, das mulheres. E àquelas que fogem à regra são culpabilizadas.
Para a historiadora Joan Scott, “o gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido das relações de poder” expresso na hierarquia que transita secularmente entre os sexos fazendo com que emirja a “compreensão sobre as relações complexas entre diversas formas de interação humana” (Scott, p.23). Essa interação é contributiva da argumentação da autora ao tratar das representações de poder. Diz Scott (idem, ibidem): “As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um sentido único”.
Por que a centralidade dessa historiadora no conceito de gênero? Trata-se de considera-lo em uma dimensão decisiva na organização hierárquica da sociedade que está baseada na naturalização da incapacidade feminina para a vida pública e política.
Trazendo esse conceito para a cena atual da competição política, com as evidências de que o tom pejorativo às candidatas se serve de versões já instituídas nas representações sociais considerando que esta ocorrência nada mais é do que um embate político-partidário não se percebe que são referenciais de cunho altamente misógino assumidos por homens e mulheres que têm determinada preferência partidária.
Contudo, há visões que apontam para a identificação dessa ambiguidade. Posts & outras referencias circulando em blogs e em redes sociais mostram, de forma mais coloquial, o que propus nesta avaliação reconhecendo que não estou só.
De um  email de Yone M. Kegler à jornalista Hildegarde Angel (http://www.hildegardangel.com.br/) extrai somente um parágrafo: (...) : “Debocham de Dilma, como “gorda ridícula”, o tempo todo, mas dizem ao amigo (a) importante, na mesma situação, que ele (a) está só um “pouquinho acima do peso”.  
Luanna Tomaz (docente da UFPA) em seu post (FB), diz: “Independente de qualquer partido ganhar as eleições, sei que a misoginia saiu vitoriosa. A Dilma foi chamada de gorda, insinuaram que era lésbica porque é divorciada (...), riram da queda de pressão dela (...). Dilma e Luciana foram chamadas de levianas, o coque de Marina ganhou mais atenção do que as propostas dela. (...) Tantos obstáculos que as mulheres precisam superar para chegar ao poder que não estranha termos baixo percentual de vagas da câmara, por exemplo”.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal"/PA, em 24/10/2014)


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

SER OU NÃO SER PROFESSORA?





Em 15 de outubro de 1827, um decreto imperial de D. Pedro I, então imperador do Brasil (rubricado, também, pelo Visconde de São Leopoldo) criou o Ensino Elementar no país. Nos 17 artigos que compunham esse decreto (cf. http://www.pedagogiaemfoco.pro.br ), o Art. 1o determinava: “Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, haverão (sic) as escolas de primeiras letras que forem necessárias”. Nos demais artigos, esse documento registra uma série de itens, sendo que o 2º artigo determina que o Conselho dos presidentes das provincias, com audiência das Câmaras enquanto Conselhos Gerais “marcarão o número e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em lugares pouco populosos e remover os Professores delas para as que se criarem, onde mais aproveitem, dando conta a Assembléia Geral para final resolução”. Outros itens são nomeados nesse decreto como o salário e a forma de contratação dos professores, as disciplinas que serão ministradas ( Art. 6º: “...ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana ,...”).
Três artigos são interessantes conhecer, haja vista referenciar as diferenças do ensino e da atividade de magistério para homens e mulheres: “Art. 11: Haverão (sic) escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas, em que os Presidentes em Conselho, julgarem necessário este estabelecimento. Art. 12: As Mestras, além do declarado no Art. 6º, com exclusão das noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames feitos na forma do Art. 7º. Art. 13: As Mestras vencerão os mesmos ordenados e gratificações concedidas aos Mestres.”
Desde o inicio da colonização educavam-se nas escolas apenas os meninos, com os mestres sendo homens, também. E como se vê, no Decreto Imperial de 1927, há evidência de uma escola formal para meninas em cidades mais populosas, há diferencial do curriculo extinguindo-se algumas matérias (possivelmente por serem consideradas supérfluas ao “destino matrimonial” previsto para elas) e há inclusão de outras como as prendas e a economia doméstica. Nesse decreto já se observa referência às mestras, ou seja, nomeação de professoras que sejam “brasileiras e de reconhecida honestidade” e que demonstrem bom proveito de conhecimento nos exames que prestem para a atividade de magistério, conforme outro artigo (o 7º). Embora naquele momento sejam ratificados salários iguais para os professores e as professoras essa situação ainda hoje é uma questão problemática, em todas as profissões a que as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho.
Analfabetas, no império, com as damas da corte tendo pouco contato com a leitura salvo os seus livros de rezas, a oportunidade que as mulheres brasileiras tinham de estudar era o ingresso em conventos. A sociedade não via com bons olhos o alcance do saber intelectual por parte desse gênero, haja vista a previsão determinista para lar, além do que, o conhecimento adquirido lhes daria poder e sendo instruídas avaliariam sua condição e pleiteariam outro tratamento. Dessa forma, seria mais fácil afastá-las do “perigo” da instrução pública embora com direito de obter a educação formal. Alguns escritos na imprensa são reveladores dessa tensão. Veja-se, por exemplo, o que escreveu o professor paraense Vilhena Alves no periódico literário "A Borboleta" que circulava na cidade da Vigia, num longo texto intitulado “A Mulher”, publicado em 1887 dissecando a condição feminina. Sobre a instrução a esse gênero ele comenta:
“(....) - Não simpatizamos nada com as mulheres doutoras apesar de sermos idólatras da ciência. Não queremos com isto que se deva conservar a mulher na ignorância; e sim que o seu grau de instrução seja adequado ao meio em que vive, às necessidades do seu viver social. De que serve, com efeito, a uma moça pobre o estudo das ciências e das belas artes, se desconhece os princípios rudimentares da economia doméstica?” (...) Em vez dessa instrução de luxo que só serve para satisfazer a vaidade de pais mal avisados, não seria melhor que estes ensinassem às suas filhas aquelas regras comezinhas do bom amanho da casa, aqueles princípios de economia que operam na família o milagre bíblico da multiplicação dos pães, fazendo que, - com pouco dinheiro - se obtenha muito e se passe bem? (...)”
Se nesse período os ideólogos conservadores detinham essa preocupação sobre a convivência das mulheres determinando seu lugar, seus saberes, sua forma de ser na sociedade, sem dúvida, houve uma retração da atividade intelectual formal feminina que avançou algumas dezenas de anos, mas não fortaleceu a idéia de que estas teriam somente uma maneira de saber das coisas restritas ao lar. Assim, as conquistas foram muitas, o período republicano trouxe novos decretos que facilitaram a entrada deste gênero em muitas profissões entre as quais a de professoras, hoje visto como feminização da educação.
E enquanto professora, o ingresso das mulheres no âmbito escolar, se visto como uma situação ligada às suas funções no lar e na maternidade, permeado de estereótipos, presentemente foge desses chichês. Entretanto há outros. Num estudo do INEP/2002, entre as disciplinas ministradas, na de Língua Portuguesa, independentemente da série avaliada, há maioria da proporção de professores do sexo feminino, enquanto na Matemática, nas mesmas condições, o sexo masculino prevalece. Somos hoje a maioria (97%) na força de trabalho na educação infantil, mas apenas 45,6% no Ensino Superior.
E por ai vai a nossa história. Sabemos que temos valor, sabemos que as noites e os dias de trabalho extrapolam domingos e feriados. Nossas palavras são fortes para criar a mudança. Nós nos reconhecemos. E isso é o que importa.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal" (PA), de 1710/2014)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

ELEIÇÕES 2014 E A REPRESENTAÇÃO FEMININA

A presidenta Dilma Rousseff, na abertura da 3a. Conferência de Política para as Mulheres.


O tema da sub-representação das mulheres na política atravessa os processos eleitorais internacionais. E não é de hoje. Nas modernas democracias a ausência da cidadania feminina instituiu uma luta acirrada para incluir esse gênero no direito do voto e, à medida que a visibilidade de novos direitos demonstrava que as mulheres ficavam de fora, estas iam à luta em busca de alcançá-los e, somente dessa forma conseguiram espaços que antes eram de exclusividade masculina.
Se as eleições fizeram a história do Brasil diferenciar-se de muitas outras experiências democráticas, desde o período colonial, as mulheres sempre ficaram de fora, nos primórdios dessa história. Não votar, no império, por exemplo, não era só uma exclusão desse gênero, mas de uma categoria de homens pobres que não alcançava o nível mínimo de renda como uma qualificação para a votação e garantia de sua entrada no censo eleitoral. A exclusão atingia, também, os ex-escravos, embora seus filhos e netos e, também, os analfabetos (estes, até a Lei Saraiva, 1881) se constituíssem votantes. Construindo a história do processo de participação política (ativa e passiva) do brasileiro, essa “trajetória do voto” criou legitimidade aos governantes, antes conselheiros que administravam as cidades e hoje, no Estado republicano, se acham nas representações dos cargos principais do poder executivo e legislativo.
Avaliando as configurações da cidadania política brasileira atual com o olhar na presença feminina tanto na categoria de eleitorado quanto na de demandantes e de eleitas em cargos majoritários e proporcionais, vê-se, a partir dos dados do TSE (acesso em 07/10/2014) que houve crescimento. Por exemplo, na distribuição do eleitorado por gênero, em âmbito comparativo, o percentual de mulheres teve um crescimento significativo no século XXI: 2002 – 50,85%; 2004: 51,21%; 2006: 51,53%; 2008: 51,73%; 2010: 51,82%; 2014: 52,13%. Um fator determinante nesse crescimento sem dúvida foi o aumento da população. É de supor, também, que a idade mínima para se tornar eleitor/a construiu esse crescimento, contudo, ao apresentar as estatísticas de 2014, do IBGE, sobre esse eleitorado na categoria faixa etária, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Dias Toffoli, fez um comentário sobre a queda no número de eleitores jovens de 16 e 17 anos, para os quais o voto é facultativo. Segundo os dados, o número diminuiu de 2.391.352, em 2010, para 1.638.751, em 2014. Outro detalhe para esse recuo, segundo Dias Toffoli: “Há um aumento da faixa etária geral da população brasileira e os dados do IBGE, que também fizemos consulta, indicam isso. Uma baixa do crescimento da natalidade e a perspectiva, em consulta que formulamos, é que a cada eleição diminuirá o número de eleitores em faixas etárias mais baixas, relativamente as mais altas”.
Se considerarmos esse eleitorado na faixa etária por gênero vê-se que as jovens de 16 anos contribuem com 52,79% e as de 17, com 51,5%. Este dado reforça o que foi tratado em termos do aumento das mulheres eleitoras, mesmo nessas faixas que estão diminuindo.
Quanto ao Pará, o eleitorado feminino é de 50,21%, aumentando em relação às eleições de 2010 que era 49,92%. Nesse ano, as faixas etárias de 16 anos (51,03%) e 17 anos (50,35%) estavam acima da apresentada pelo eleitorado masculino.
Em termos de candidaturas, no quantitativo sexo vs. cargo, as mulheres se apresentaram da seguinte forma: 3 candidatas concorreram à presidência da República (27,27%, num total de 11 candidatos); para governador/a 20 ou seja, 12,05% (87,95%, homens); senador/a 19,77% (80,23% homens); deputado federal 29,07% (70,93% homens); deputado estadual/distrital, 29,11% (70,89% homens).
No Pará, considerando apenas as candidaturas de representação parlamentar, vê-se que de um total de 170 candidatos para a câmara federal, 31,76% eram mulheres. Para deputado estadual, de 637, havia 182 candidatas ou 28,57% do total.
Sem fazer um esboço comparativo de outras eleições, mas considerando que para esses cargos parlamentares há a cota eleitoral de gênero alterada pela minirreforma eleitoral de 2009 (Lei 12.034/09) que substituiu, no caso, a expressão anterior “reservar” por “preencher”, significou que a distribuição dos percentuais entre os sexos passou a ser obrigatória e não mais facultativa. Isto quer dizer punição para os partidos que não preencherem os 30%, a garantia de uma maior participação das mulheres na vida política e partidária brasileira.
Embora haja todas as evidências de que houve aumento no número de candidaturas nestas eleições gerais, a situação que está sendo discutida é se o número de eleitas aumentou. Em um gráfico elaborado pelo jornal CFEMEA (http://www.cfemea.org.br/) este cria uma geografia espacial da nova bancada feminina por estado, por partido e o percentual de representação na câmara de deputados numa série histórica desde 2006. Nesse ano, 47 mulheres foram eleitas equivalendo a 9,16% de um total de 512 cadeiras. Em 2010, houve 45 eleitas ou 8,77% e este ano, 51 eleitas perfazem um total de 9,94% deputadas federais, com renovação de 29 e reeleição de 22, sendo estas dos seguintes partidos: PT (9), PMDB (7), PSDB e PSB (5, cada) PP, PTB, PRB, PPS, PTN e PSC (2, cada) e PDT, PTC, PMN, PV e DEM (1, cada). Entre os estados, os que mais elegeram mulheres foram RJ e SP (6, cada), MG (5), e Bahia, Tocantins, Amapá e Pará (3, cada). Nesse caso, este estado que apresentava 5,9% proporcional ao número de cadeiras (17) cresceu para 17,64%, uma vez que elegeu três mulheres, sendo uma reeleita e duas novas.
Quanto às deputadas estaduais, foi uma lástima. Tínhamos 7 mulheres eleitas em 2010 e neste pleito reduziu-se para 3.
Números e percentuais de mulheres eleitas não podem ser vistos como algo insignificante. O fato de três mulheres posarem competitivamente ao cargo máximo do país demonstra avanços nas conquistas, mas ainda assim, a sub-representação política ainda é um fato para este gênero.


(Texto originalmente publicado em O Liberal, em 10/10/2014)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

NAS FIMBRIAS DA ESCRAVIDÃO


Zumbi dos Palmares :lutou pelo seu povo e trouxe as leis contra a escravidão 

Recentemente, em uma das minhas jornadas para a UFPA, o condutor do taxi já meu conhecido por esse percurso quase diário, me pergunta sobre as efemérides e as formas comemorativas de datas marcantes da historia do Pará nos dias de hoje. Nesse “papo” fui rememorando com ele o formato do calendário escolar quando alunos/as ao chegarem aos seus estabelecimentos de ensino, eram conduzidos perfilados ao local de um mastro onde seria hasteada a bandeira brasileira, cantava-se o hino nacional e/ou hino à Bandeira para então seguir o rumo da sala de aula. Nas turmas da tarde, o processo se invertia, ou seja, como a bandeira não poderia ficar ao relento noturno, os alunos desse turno cantavam o hino e faziam descer esse símbolo da pátria. Talvez alguns dos/as leitores/as deste texto, da minha geração, tenham vivido essa experiência. A questão do taxista se prendia ao fato de constatar que seus filhos não conheciam as datas históricas e nem as simbologias nacionais, hoje perdidas pelo reforço das mídias sociais a uma recorrente versão sobre um tipo de política mais partidária e menos integrada a propostas de reconhecimento do conceito de ser brasileiro a partir desses símbolos.
A minha geração conviveu com a data de 13 de maio como comemorativa da abolição da escravatura no Brasil, pela Lei Áurea, assinada pela Princesa Izabel (outras leis haviam sido aplicadas culminando com essa). Faziam-se celebrações ostensivas nos colégios públicos e privados para dar visibilidade à situação do escravismo e a uma história cujos fatos da liberdade do povo de etnia negra ter vindo de cima (o poder público e dominante) para baixo (a liberdade dedicada aos escravos e escravas). Sem dúvida que essa visão era a versão do que hoje se conhece como a “história dos vencidos contada pelos vencedores”. Assim como os estudos sobre o descobrimento do Brasil foi retomado pelos historiadores para demonstrarem que houvecausalidade nesse fato (intenção de chegar ao novo continente para fins de vender e extrair novos produtos expandindo o comércio) e não casualidade (de repente, sem intenção, chegam às terras e se estabelecem) como havíamos aprendido, aos poucos, a história da situação de rainha & políticos no poder assinarem as leis da abolição e os negros e negras se sentirem “libertos por concessão” também foi se reavaliando e invertendo. Porque passou a ser “revirada” de ponta cabeça essa versão, também por historiadores e militantes da causa para mostrar que os escravos, ao tomarem consciência da tirania em que viviam, iniciaram a reação contra o trabalho forçado, as sevicias, a exploração humana deles, de seus filhos e filhas e abuso sexual de suas mulheres, além de discriminarem sua religião e cultura. E a militância política composta de estudiosos e pessoas comprometidas com a causa trouxe as evidências das lutas, das mortes, das fugas de líderes negros em busca de leis que demonstrassem respeito pelos seus direitos como humanos. Foi constituído, então, o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, que é o aniversário de Zumbi dos Palmares, um dos principais lutadores pela causa antiescravista. Dessa forma, houve uma sistemática reordenação temática e política em torno da causa afro brasileira. Movimentos étnicos e movimentos sociais hoje reavaliam o percurso de perdas que esse povo sofreu no Brasil ao tempo em que as portas do comércio escravo pendiam para a preocupação com o aumento da mão de obra cativa para a exploração da matéria prima com fins de fortalecer o progresso e o desenvolvimento da então colônia brasileira e depois império. Nesse caso, não só os africanos eram trazidos à força, mas muito antes a escravização era aplicada aos povos indígenas, os primeiros habitantes do Brasil.
“O escravos negros, raptados de sua terra natal (principalmente da África Setentrional, onde hoje estão, por exemplo, Angola, Moçambique e a República Democrática do Congo) e levados a um lugar estranho, eram controlados com mão de ferro pelos senhores de engenho, que delegavam aos feitores e outros agregados a fiscalização dos cativos. Os castigos físicos, como o açoitamento, estavam entre os métodos de intimidação que garantiam o trabalho, a obediência e a manutenção dos servos e se prolongaram pelos mais de 300 anos de escravidão no Brasil” (Biblioteca Virtual do Governo do Estado de São Paulo)
Outro eixo de imposição da cultura branca aos povos africanos refere-se ao poder da igreja que considerava “necessária” a salvação da alma do negro a cuja etnia culpava pelo “paganismo” em que era convertida a cultura trazida por esse povo sequestrado e vendido aos senhores de engenho e aos fazendeiros. Por esse aspecto pode-se avaliar a forma preconceituosa como se transfere à sociedade brasileira de um modo geral a cultura afro, visceralmente entranhada no jeito de ser e fonte de viver desse povo nos seus locais de origem. A partir da tentativa de “cristianização” transforma em símbolo pagão toda essa vivência nativa e, consequentemente, converte os símbolos culturais afro em lixo cultural estabelecendo as bases de um processo discriminatório.
Associando ao inicio deste texto, à falta de ensinamentos e de conhecimento de temas da nossa história vejo dois aspectos a serem tratados apontando a oficialização de uma data para tratar da abolição da escravatura. Num primeiro, demonstrar que apesar das boas intenções dos governantes portugueses, a Lei Áurea vem demonstrar que não foi o poder dominante que concedeu a abolição, mas uma conquista dos negros escravos no Brasil que iniciaram a luta pelos seus direitos. E o segundo ponto, segue-se a este, é a desmistificação de uma liberdade concedida, mas sim conquistada desde que se estabeleceu a consciência negra a partir dos líderes em luta, a exemplo, Zumbi dos Palmares.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal-PA" em 09/05/2014)

sexta-feira, 28 de março de 2014

LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER


Uma das cenas de violência do período do golpe militar de 1964
O cinquentenário do golpe militar que levou o Brasil a um sistema político hibrido, entre a ditadura total e a liberdade vigiada, com funcionamento das casas parlamentares e eleições estaduais - embora limitando a escolha dos eleitos num bipartidarismo, um deles representando o governo geral e outro a oposição consentida (e por isso mesmo vulnerável à censura/leia-se ARENA e MBD), - dá margem a diversos estudos sobre a situação histórica brasileira que, no dizer do professor Rodrigo Patto Sá Motta, da UFMG, e organizador do livro “Autoritarismo e Cultura Politica”/Editora FCV, : “deve mover o historiador (...) a considerar (...) o caráter simultaneamente moderador e conservador do regime militar, que conciliou tendências por vezes contraditórias e abrigou agentes com idéias discrepantes desde liberais a fascistas”. Contrariando essa suposta “democracia militar” verifica-se que os três poderes da república estavam restritos a um só poder, apesar da referência a um sistema representativo. Isto ficou claro para Jarbas Passarinho que, num depoimento para o programa Arquivo N (Rede Globo) afirmou ter questionado seus colegas de governo, considerando que estávamos sim, numa ditadura.
Eu vivi o tempo que se chamou depois de “anos de chumbo”. E aceito a ideia do historiador e professor da UFRJ Carlos Fico que considera o começo do período bem antes de 1964, quando Janio Quadros renunciou à presidência em 1961, estando o seu vice, João Goulart, em viagem à China, unindo conjecturas de que este tinha ido ao encontro a um dos focos de suas ideias comunistas. Imediatamente surgiu a emenda parlamentarista para impedir a posse desse político de esquerda. E entra em cena o embaixador norte-americano Lincoln Gordon alertando o presidente John Kennedy do perigo que estava levando o Brasil a ser uma nova Cuba.
A atriz Brigitte Bardot em visita ao Rio pouco depois de abril de 1964 disse que ficou “maravilhada de no Brasil se fazer uma revolução sem se disparar um só tiro”. Sabe-se que não foi assim, a partir do fato de que, na realidade, não houve uma revolução no sentido tradicional, mas um golpe. Havia, nas classes conservadoras, o medo de que o país entrasse num sistema estatizante que lhes afetasse os bens (o caso dos produtores rurais ameaçados com a reforma agrária alertada pelo presidente e, ainda, setores da indústria e do comercio) e, também, na classe média de um modo geral, caracterizado pelo medo de chegar o “comunismo ateu” propagado por uma ala da igreja (que mais tarde mudaria de ideia diante da violência contra seus próprios membros) e pela imprensa que de inicio se manifestava contra Goulart.
Um quadro bem característico da aceitação do golpe por parte de uma parte expressiva da população foi a “marcha da família com Deus e pela liberdade”, realizada em todos os estados – e em Belém eu recordo da multidão caminhando e rezando o terço como se estivesse numa procissão católica. Também houve outra passeata de apoio aos ideiais golpistas: a marcha denominada “Ouro para o bem do Brasil”. Pessoas jogavam em lençóis estendidos joias e dinheiro que seriam aproveitados para pagamento de nossa divida externa e o mais que consolidasse o regime “democrático ...e cristão” (e hoje se pergunta para onde foi esse ouro?).
Na noite de 31 de março assisti do pátio da minha casa, o movimento em direção à sede da UAP (União Acadêmica Paraense) onde estavam reunidos estudantes que manifestavam sua repulsa ao golpe e para onde se dirigiram os pelotões que invadiram o imóvel e prenderam muita gente. Outro tanto fugia e se escondia nos quintais das casas vizinhas. No meio dos presos estavam amigos queridos e depois eu soube das torturas que sofreram com alguns deles sendo enviados para outros estados em porões de navios a lembrar dos trágicos navios negreiros do tempo da escravatura (felizmente não houve replay do Brigue Palhaço).
O período da ditadura trouxe a censura a tudo e a todos. Em meados de 1970 eu já escrevia neste jornal e, a partir de uma entrevista com o então presidente do sindicato de jornalistas, João Marques, não achei nada demais as suas referências aos filmes políticos que não chegavam a Belém com ele imprimindo criticas ao rigor censório de então. Por isso fui intimada a comparecer a Policia Federal onde passei uma tarde prestando depoimento e com o interrogador, o superintendente do órgão, sempre alertando: “Nós não somos sádicos” e/ ou outra frase com alusões ao episódio que me levou ao tal interrogatório e assinatura do depoimento a que fui submetida – “Você sabe que esta situação está incursa nas Leis de Sugurança Nacional ....”. A estratégia a que me submeteram foi não deixar que o advogado que este jornal mandara me acompanhar e o meu marido participassem da sessão do inquérito.
Censurava-se toda forma de imprensa e as chamadas “diversões publicas”. Os filmes chegavam com documentos que indicavam os cortes efetuados nas cópias. Isso era checado no departamento regional. O não cumprimento de um desses cortes levava à interdição do programa.
Sabe-se agora da influência norte-americana no processo. John Kennedy e Lindon Johnson chegaram a mandar navios para nossos limites com ordem de intervenção se os militares brasileiros não tomassem uma atitude impositiva contra os considerados “subversivos”.
Como disse o cineasta Camilo Galli Tavares, “o dia durou 21 anos”. Lutamos muito, perdemos inteligências, vimos tantas mudarem de endereço, e ainda agora há amigos adoecidos por esse tempo de terror e acho abominável que hoje seja criticado o que conquistamos como se a democracia trouxesse a corrupção, o desmazelo, o despreparo, o que descontasse a quem em sua maioria não viu e pouco soube do que foi vivido. Daí ser exemplar o título do programa (seminário, depoimentos pessoais e filmes) que será realizado no cinema Olympia : “1964: Lembrar Para Não Esquecer”.



[1] Luzia Álvares é doutora em Ciência Política. 

sexta-feira, 14 de março de 2014

ÀS/AOS POETAS, COM CARINHO



No Dia Nacional da Poesia homenageio a nossa grande Eneida.

Na linha de escrever poesia, quase todo mundo já “cometeu” a sua. Para qualquer ocasião e em qualquer estado de espírito. Sem ser poeta (ou como diz o dicionário, poetisa) eu também já “cometi” alguns versos que na época, o saudoso editor geral deste jornal, Dr. Claudio Sá Leal publicou em uma página criada por ele, aos domingos, sendo posteriormente administrada pelo colega João Carlos Pereira. Mas sempre amei a poesia e principalmente aquelas que tocam mais o sentimento, com rima ou não. Sim, porque a rima define para muitos o sentido do poético, haja vista ser um dos elementos mais conhecidos da poesia. Trata-se “da repetição de sons iguais ou similares ao final dos versos que compõem um poema”. Não sou versada nos estudos dos tipos ou na composição da poesia. Mas sem dúvida considero-a, como refere a história desse gênero de escrita, uma das artes tradicionais que utilizam a linguagem humana de forma estética, revelando o interior e o exterior do seu criador, projetando isso a/ao leitor/a. O termo poesia vem do grego e significa criação ou fabricação, mas o usual é o reconhecimento de que ela constitui a arte de escrever em versos. Na contemporaneidade outras definições são registradas, mas me atenho ao que espero abordar.
No dia de hoje, 14 de março, registra-se o Dia Nacional da Poesia homenageando o nascimento de um dos maiores poetas românticos brasileiros, o baiano de Curralinho (hoje cidade Castro Alves), Antonio Frederico de Castro Alves (1847-1861), falecido aos 24 anos, autor de outros poemas, sendo o mais conhecido “O Navio Negreiro” (1869) onde tematiza a escravidão negra, destarte, um grande defensor do abolicionismo.
É possivel que outros leitores/as conheçam mais o 21 de março como o Dia Internacional da Poesia, instituída pela UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – cujo objetivo é a difusão e valorização da arte poética, querendo ou não alguns uma área que já foi muito mais prestigiada socialmente em tempos pretéritos (é só lembrar os saraus promovidos por intelectuais de uma classe social onde estavam sempre inscritas na programação, as declamações e o lançamento em récitas de poemas dos autores dessa arte).
Da pesquisa para registrar este tema, lembrei-me das mulheres poetas haja vista que a história evidencia o fato de que muitas jovens se escondiam em pseudônimos para publicar suas criações nessa área registrando seus sentimentos dedicados muitas vezes a alguém que não poderia ser reconhecido pelas famílias.
Examinando a imprensa local da última década do século XIX e início do XX (1890, 1900), observei, em alguns jornais (“A República” e “O Democrata”) que as paraenses não se furtavam a publicar suas criações poéticas. Uma destas achei fantástica, assinada por Francelina Gomes (Diário de Notícias, Belém, 19 ago. 1897, p. 1- pseudônimo?), demonstrando que a exposição dos sentimentos femininos estáva deixando o espaço íntimo dos "diários", das memórias, do "dizer entre as paredes das alcovas" e alcançando a rua. Intitula-se “Rimas Velha”(sic): “Neste retiro em que vivo/sonhando com coisas mansas/da vida sempre me esquivo/como da escola as crianças./Gozo mais neste degredo/ nesta vivenda escondida/onde não tenho segredo/nenhuma queixa sentida. Nestes bosques verdejantes/ alcatifados de flores,/só moram ternos amantes/que vivem rimando amores. Há ninhos pelo arvoredo,/que se balançam frementes/onde os plumosos a medo/ entoam canções dolentes (...)
Outra referência poética como identificação de registro amoroso subjaz nas entrelinhas de um diminuto texto, com a ausência do nome por extenso, do par: "Ao jovem A.F.R. - Ao primeiro sorriso da alvorada de hoje sentirás sobre a tua fronte o estalido suavíssimo de um beijo. Traduz esse ósculo sincero a mais acrisolada saudação do teu feliz aniversário natalício. É tudo quanto pode oferecer-te neste dia repleta de prazer a alma de tua afetuosa. C.M." (A República, Belém, 1º mar. 1894, p. 1).
São mulheres de ontem que se fizeram poetas e publicaram suas criações. Talvez não sejam tratadas e/ou consideradas nos padrões clássicos das métricas exigidas pelo cânone, mas estavam presentes com sua emotividade e sua linguagem própria dessa arte.
 No Brasil, nomes como Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de AndradeCecília Meireles, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes, além de outros mais próximos deste tempo de poesia “cíbrida” (híbrido e cibernético, segundo o professor Jorge Luis Antonio) já se inscreveram no pódio e de lá não saem, mantendo sua obra perene. Temos os nossos paraenses já imortalizados no solo amazônico como: Eneida, Adalcinda Camarão, Olga Savary, Antônio Juraci Siqueira, Antônio Távernard, Benedicto Monteiro, Bruno de Menezes, Edyr de Paiva Proença, João de Jesus Paes Loureiro, José Ildone Soeiro, Max Martins, Rodrigues Pinagé, Age de Carvalho, Ruy e Paulo André Barata etc.
Na história da poesia brasileira, se não há o registro de muitas mulheres, há muitos motivos entre os quais a valorização maior de pesquisas sobre os poetas. Por isso, lembro hoje as nossas pioneiras, como a inconfidente Barbara Heliodora (1759-1819), a primeira mulher poeta do Brasil; a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira poeta negra e a primeira a aventurar-se pelos domínios da ficção literária; Auta de Souza (1876-1901) ombreia-se ao pioneirismo de Maria Firmina. A potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) e Patrícia Galvão, a Pagu entre tantas.
A colega Eunice Ferreira dos Santos sentindo a necessidade de visibilizar nossas poetas e escritoras criou, em agosto de 2007, a Casa da Escritora Paraense – CASAEPA, um projeto cultural do GEPEM/UFPA. Há um acervo de 2.340 exemplares fac-similados e 6.095 em CD. Um passo que espera demonstrar a celebração da arte poética das paraenses.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 14/03/2014)



sábado, 8 de março de 2014

AS MULHERES, NO SEU DIA


Mulheres em luta contra a ditadura 


Nas datas especiais há sempre um motivo para centrar as idéias e discorrer sobre elas dando ênfase a este ou aquele ponto mais identificado com quem escreve. As áreas de conhecimento, âmbito acadêmico, revelam-se prolíficas em estabelecer teorias e meios de investigação para este ou aquele enfoque tornando ainda mais especifico o sentido da abordagem. Criam-se especialistas sobre os assuntos e por ai vai a maneira apropriada de tratar as coisas.
Neste sábado, 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher, portanto, um tema que me levou a evidenciar alguns aspectos neste texto. Há mais de 30 anos assumi a questão da mulher como uma especialidade do meu interesse para estudos e pesquisas acadêmicas. Dizer que sou expert nesse tema é ter muita ousadia para essa afirmação. A cada dia paradigmas são quebrados nas ciências humanas e sociais e entre estes se tem a situação da mulher como um eixo que vai subvertendo a onda das descobertas de estudos sobre a metade universal dos seres humanos.
Na visão de alguns, anteriormente, englobar no termo homens era a maneira universal de tratar dos humanos. Naturalizado pelo convencionalismo não era questionado porque entrava ai desde a questão da linguagem e termos que deveriam ser corretamente absorvidos e subsequentemente escritos. Aos poucos esse olhar criou uma maneira de ver a questão biológica afetando a política de tratamento dessa categoria social incluindo então o conceito gênero e suas intercorrências em outras línguas. No Brasil, vai-se nos dicionários e estes definem gênero como “conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma origem ou que se acham ligados pela similitude de uma ou mais particularidades”. Derivados dele como “generificar” não existem nesses compêndios, mas no inglês sim, ou seja, gendered – que numa perspectiva inovadora, é um termo que define uma ação marcada pelo gênero. Da biologia à cultura um passo agigantado marcou as mudanças mundiais sobre o tratamento concedido aos humanos vistos com o sentido da divisão sexual no âmbito da ciência biológica, marcador anatômico da condição entre os sexos. Mas a cultura deu outra dimensão a essa categoria do ser homem e do ser mulher. E assim, as maneiras de identificá-los foram desmontando o tratamento único embora diverso e incorporando os vários modos de ser da cada uma dessas categorias. Entretanto, a convenção marcando a representação social tornou seriamente irredutível tanto o tratamento formal da lingua quanto de atitudes reconhecidas como coladas à situação de homens e mulheres e inconcebíveis de serem assumidas por um dos dois sexos não fosse aquela definida para cada um deles, sob pena de serem vistos como subvertendo a ordem humana do gênero de nascença. Da indumentária ao gestual a diferença se dava pela dimensão do sexo. E assim foi sendo convertido o espectro humano exigido pela sociedade e, subsequentemente, aqueles/as que fugiam à imagem configurada pela tradição sofriam penalizações e se tornavam desviantes da cultura de seu sexo.
Tentando avaliar desde o momento em que pessoalmente me identifiquei como mulher, evidencio a corrente tradicional sempre ganhando valor ao definir usos, hábitos, ações e comportamentos próprios ao sexo feminino. As garotas que fugiam ao padrão, na minha cidade, eram sempre discriminadas devido a não se portarem como “meninas”. Atividades do tipo jogar futebol deveriam ser declinadas por esse gênero por seu pertencimento aos valores masculinos. Brincar de boneca, saber cozinhar, lavar & as demais atividades “do lar” tendiam a ser da minha alçada, enquanto ajudar meu pai no comércio, carregar mantimentos para casa, eram da alçada dos meus irmãos. Minhas roupas diferiam das deles, porque meus vestidos embora da mesma cor tinham rendas e bordados, enquanto os chamados fatos que eles vestiam eram isentos desses enfeites. Na escola, as meninas sentavam junto com as colegas e eles com os garotos. E assim, se tornavam hábitos cunhados como fortes valores que eram exigidos de nós desde criança, sendo, por isso mesmo, considerados, naturalmente, uma atitude ipso fato (me desculpem os juristas o uso deste termo latino aqui), ou seja, efeito consequente direto de uma ação em causa. E na torrente de acúmulos de hábitos e costumes sociais determinando os nossos comportamentos, a questão do namoro, do noivado, do casamento seguia uma linha clássica fortalecendo a categoria do “homem provedor” e da “mulher do lar” em que as predestinadas a este espaço eram as “santas” enquanto “as outras” eram vistas como “p....”, ou seja, “mulheres da vida”.
Forjam-se corações e mentes nesse clássico modelo e assim se tornam determinantes para as exigências. As que não seguem esse padrão são penalizadas e “malvistas” por todas as cabeças, mesmo as pensantes, ou seja, os donos do saber, os doutos que escorregam para os seus livros as facetas tradicionais como destidos determinantes das mulheres. Além do mais, porque a religião é uma instituição que forja suas regras para essas predestinações, a carga de des-valores para as mulheres se torna ainda mais exigente.
Hoje, ao avaliar as mudanças do novo momento em que a questão da mulher e as relações de gênero passaram a ser ponto de estudos e avaliações de todos os seculares costumes que as submetia às grandes violências porque não seguiam o padrão instituido, vejo que muitas conquistas nos fazem ir para as ruas e mostrar ainda mais pesares sobre aquelas que ainda morrem pelas armas de homens hostis que exigem delas um tipo feminino forjado pela patriarcalismo. Estou nessa marcha assumindo a postura de uma militante que acredita que os direitos das mulheres são também direitos humanos. (imagem de http://www.docentesfsd.com.br/ )

(Texto originalmente publicado em "O Liberal", de 07/03/2014)