domingo, 31 de outubro de 2010

O DESAFIO DA INFORMAÇÃO

Medir a capacidade de o eleitorado estar atento a todas as informações possiveis para decidir seu voto sobre qual candidato/a sufragar neste domingo tem sido revelado, de alguma forma, através dos números das pesquisas de opinião. Os institutos têm apresentado inúmeras variáveis condicionando o processo de decisão dos informantes em cada recorte temporal, fundamentadas em denúncias a fatos, atitudes, personalidade dos candidatos, políticas de governo e/ou ausência destas etc., fatores que têm demonstrado queda ou avanço das intenções de voto.

Há pelo menos três correntes explicativas com argumentação providencial para a decisão do voto. Anthony Downs (1957) baseia-se nas vertentes do individualismo metodológico que explica as intenções das ações dos indivíduos para maximizar seus benefícios e otimizar seus ganhos no mercado político-eleitoral onde há um governo que atua como agente social singular.

A natureza deste governo é democrática, com traços que definem o processo de escolha via eleitoral, regras gerenciando as eleições periódicas; eleitores qualificados em nível territorial; presença de partidos da situação e da oposição, além de outros, no processo competitivo.

Os partidos, no governo democrático, se constituem numa equipe de indivíduos interessados no acesso ao controle do aparato de governar, via eleitoral, e quando é alcançado esse objetivo, procuram formular e executar políticas públicas. A meta dos membros partidários é o interesse pessoal ao acesso à renda, ao prestígio e ao poder. A motivação partidária é ganhar as eleições, e para isso, o governo desloca suas ações canalizando-as para a maximização de votos, e as políticas tornam-se meios para esse fim.

Downs observa que seu modelo não determina comportamentos porque não tem postulados éticos, nem é puramente descritivo visto que ignora as condições não-racionais, mas considera, como primeira relevância desse modelo, a proposição de uma única hipótese explicativa de tomada de decisão política e para o comportamento partidário em geral.

O axioma desse modelo considera que os cidadãos agem racionalmente em política e votam no partido que eles julgam que pode lhes render maiores benefícios. Teríamos, então, uma renda de utilidade num sentido amplo que inclui não só os benefícios que o cidadão recebe não sendo percebidos por ele, desconhecendo a fonte exata de onde vem, mas aqueles os quais ele não percebe que está recebendo. Contudo, os governos estrategicamente propagam suas ações para que os beneficiários reconheçam o que recebem e isso é um meio de influir na decisão do voto, pois os eleitores só se darão conta de seus ganhos se tiverem consciência dos benefícios recebidos.

O olhar comparativo do cidadão racional num mundo onde este recebe informações completas e sem custos incide no diferencial entre o fluxo de renda de utilidade que provém da ação presente do governo e os fluxos que supõe teriam recebido dos partidos opositores se estivessem no governo. Nesses diferenciais partidários atuais, o eleitor vai estabelecer suas preferências intrapartidárias.

Assim como a tendência da escolha do eleitor se processa numa lógica racional de maximizar benefícios, a tomada de decisão do governo se dá para maximizar votos e dessa forma este vai considerar o aumento de gastos para a maior aquisição de votos dos partidos que estão fora do governo ou dos partidos de oposição. O partido no governo elabora um plano de ação com vistas no ganho marginal de votos até que estes custos (do financiamento) sejam igualados à perda marginal de votos, gerando as rendas de utilidade dos eleitores de um modo geral e das estratégias da oposição.

O nível de racionalidade de um tomador de decisão na arena política passa, necessariamente, pela quantidade de informação que este recebe e os custos para obtê-la num mundo de incerteza.

Como o eleitor precisa estar bem informado dos recursos existentes na cena política e partidária e os níveis de incerteza limitam a capacidade dele, a ideologia torna-se um atalho de informações reduzindo os custos, tanto para os eleitores quanto para os partidos políticos.

Se para a maximização do voto um partido adequar sua ideologia com as demandas dos grupos, torna-se vulnerável à perda de integridade e da responsabilidade. Isso é visto como irracionalidade política, embora o conflito se instale quando forjarem-se duas expectativas: ideologia como finalidade e o cargo como instrumento.

O modelo de Downs espera ajustar a hipótese da racionalidade (desejo ao cargo), às estratégias finais (ideologia como maximização de voto por redução de custos de informação). Considera que haja conflitos entre a manutenção do purismo ideológico e a expectativa de vitória nas eleições. O primeiro aspecto tende a preceder ocasionalmente o segundo, mas a validez do formato se dá pela pugna permanente entre os partidos: a vitória eleitoral.


(Texto publicado em "O Liberal", Belém-PA, em 28/10/2010)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

DILMA, A PRIMEIRA PRESIDENTA DO BRASIL?

A Revista Carta Maior (on line) publicou como matéria da Editoria Política de 29/10/2010,o texto abaixo assinado por duas universitárias da UFF e da UFRJ. A argumentação que elas evidenciam se coaduna as mesmas que tenho tratado em artigos e palestras sobre a difícil relação mulher & política como relações sociais de poder em que as mulheres procusamos mostrar nossa força acima do possivel para sermos aceitas socialmente devido às dicotomias recorrentes das discriminações sobre este gênero. Tenho uma correção ao texto: as cláusulas seletivas ao voto feminino foram afastadas definitivamente, através do Código Eleitoral de 1965. Em 1988 outras conquistas políticas e sociais foram incorporadas, sem dúvida.(LMA)



Por Katarina Pitasse Fragoso e Nathália Sanglard


A construção das relações sociais é configurada por uma dialética entre opostos – alter e ego, senhor e escravo, homem e mulher – que, no entanto, não implica na supremacia de um lado sobre o outro, já que a definição é dada pela composição das forças a partir de diálogos.
Todavia, historicamente, o homem se (im)pôs como senhor, edificando o projeto de reinar sobre o instante e construir o futuro. Nesse cenário, a mulher estava submetida à restrição dada pelos padrões opressores consagrados pela cultura patriarcal.

Durante séculos, a mulher suportou seu destino social de se ater ao zelo da esfera doméstica. O preparo desse locus inicia-se já na infância, pois até mesmo os brinquedos dedicados às meninas fazem alusão ao papel que a sociedade relegava a elas, que não variavam entre panelas e bonecas.

Contudo, a mulher identificou o mal-estar de que algo estava errado e lançou-se para adquirir sua liberdade, seu direito de ir e vir. Esta consciência de transcender as tarefas domésticas ganha força, no século XIX e início do XX, com a reivindicação dos movimentos feministas que visavam, sobretudo, a igualdade de tratamento entre os gêneros. Esse era o início de um embate entre as mulheres e os valores construídos pela sociedade dominada pelos homens.

Ao longo dos últimos anos, a mulher foi, gradativamente, ocupando espaços sociais. Um passo histórico para o reconhecimento dos direitos das mulheres, bem como das demais supostas “minorias”, foi conquistado com o surgimento da ONU, em 1945. Tal cenário possibilitou um novo ponto de vista: o respeito das diferenças.

No Brasil, a referida conjuntura também foi experimentada. Tivemos momentos os quais foram importantes para o avanço das lutas das mulheres brasileiras, como a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, que buscou, especialmente, incentivar o progresso no campo cultural a partir de mudanças dos costumes sociais. Dentro desse quadro, a Semana atribuiu grande projeção a figuras femininas da época, como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti.

Uma demanda que sempre esteve na pauta das mulheres foi adquirir direitos políticos plenos, ou seja, votar e ser votada. O esforço das mulheres para atingir o sufrágio significava, sobretudo, a independência ideológica, o ingresso nas participações públicas para decidir, assim como os homens, sobre as questões sociais relevantes (1).

O direito ao voto das brasileiras foi assegurado em 1932, mas ele ainda continha diversas reservas, pois apenas as mulheres casadas com autorização dos maridos e algumas solteiras e viúvas com posses detinham tal direito. Em 1934, o modelo anterior foi eliminado e o voto feminino passou a ser obrigatório para as mulheres que ocupassem cargos públicos. Só com a Constituição de 1946 o voto feminino ganhou amplitude (2).

Entretanto, mesmo com o direito ao voto, a mulher só ganha plenamente seu direito político em 1988, ano em que mulheres foram eleitas para legislar na Câmara dos Deputados. Em 1990, tivemos a primeira senadora e, em 1994, a primeira governadora (3).

Em 2010, temos uma eleição importantíssima, já que, pela primeira vez, presenciamos uma candidata no segundo turno com chance de ocupar o cargo da presidência brasileira. Mas, para que isto aconteça, o homem deve encarar a mulher como seu semelhante, como igual. Pois, em sendo a mulher vista como sujeito, como parte, então é possível a reciprocidade, em virtude de a relação ser pautada por sujeitos iguais (4). As mulheres devem, portanto, identificar essa potencialidade e se unir para conquistar mais esse espaço que tradicionalmente não possuem.

A práxis é de negar papeis de mando às mulheres, mas Dilma ocupou esses cargos, tipicamente exercidos por homens. Ela é uma representante preparada, em virtude de haver construído sua história com esforços contínuos diante dos embates diários, não apenas humanos, mas, sobretudo, femininos.

A dedicação apaixonada a uma causa é o que distingue a pessoa que tem vocação daquela que possui um emprego, vive da política, como os políticos profissionais. Dilma não é uma política profissional, militou desde a ditadura por vocação, imprimindo um significado pessoal (5) para sua vida: acabar com as formas de discriminação e desigualdades que muitas vezes, por interesses velados, a sociedade não quer equacionar.

Hoje, apesar das diversas contribuições sociais, a verificação de dificuldades urgentes exige transformações institucionais e esforços da comunidade. É necessária a dialética entre o alter e o ego, entre o homem e a mulher, entre a sociedade e o cidadão. Mulheres e homens brasileiros, devemos nos unir para conquistar mais um marco histórico: Dilma presidenta.



NOTAS

(1) Uma causa legitimamente feminista.

(2) CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

(3) Idem.

(4) BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

(5) Para Weber somente tem vocação aquele que serve a uma causa e torna sua a causa a que serve, que lhe dá significado pessoal e dedica-se apaixonadamente a ela. (WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cutrix, 2004)

(*) Katarina Pitasse Fragoso é graduanda do curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e do curso de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: katepitasse@hotmail.com

(**) Nathália Sanglard é graduanda do curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: nathaliasanglard@gmail.com

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O SIGNIFICADO DOS VOTOS NULOS

Jairo Nicolau

Os estudiosos das eleições têm por hábito somar os votos nulos e em brancos. Afinal, eles não tem serventia para eleições proporcionais (eles são excluídos para o cálculo do quociente eleitoral) e das majoritárias (elas são desconsideradas para saber se haverá ou não o segundo turno).

Pelo menos na disputa para presidente deste ano, os votos nulos e brancos mostraram padrões muito diferenciados.

O gráfico abaixo separa o percentual de brancos e nulos por região e população dos municípios (quatro faixas) para presidente em 2010.

A taxa de votos em branco é em média de 3% e praticamente não varia quando observamos as regiões e o tamanho dos municípios.
Os votos nulos também quase não variam em quatro das cinco regiões do país. O que chama a atenção é a alta taxa de votos nulos nas pequenas cidades do Nordeste (até 100 mil habitantes).

Uma hipótese é que os eleitores de baixa renda e escolaridade teriam mais dificuldade de votar na urna eletrônica. Assim, o voto nulo seria fruto do erro na hora de votar e não da ação deliberada do eleitor (nulo por protesto).
É bom lembrar que os eleitores de baixa escolaridade estão concentrados justamente nas pequenas cidades do Nordeste.





O cientista político Vitor Peixoto me enviou um gráfico que reforça a hipótese de associação entre situação social do município e votos nulos. O gráfico correlaciona o percentual de votos nulos com a taxa de analfabetismo de pessoas com mais de 15 anos (2006). A associação é forte, aliás ela apresenta valores que não são facilmente encontrados nas pesquisas de ciências sociais. Observe abaixo:

























Publicado em 24/10/2010

http://eleicoesemdados.blogspot.com/

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A HORA DAS URNAS

A dez dias para o segundo turno das eleições majoritárias, o eleitorado brasileiro está perplexo diante da forma que o “fazer política” partidária se entrecruza com o aviltamento do voto de cidadãos/ãs. De acusações a partir de fatos que nem sempre se inserem no contexto, a boatos infundados sobre atitudes e/ ou frases soltas e deslocadas da situação que ao serem pronunciadas pelos candidatos se transformam em libelo usado contra eles, o processo de capitalizar votos nessa dimensão tem feito mais estragos do que tem ajudado a definir a opção do/a eleitor/a pela competência de governar sob a orientação de um programa em discussão nesse momento. Se a liberdade de expressão de uma sociedade democrática se define pelo direito de os cidadãos e cidadãs manifestarem de forma livre suas opiniões e idéias sobre qualquer assunto, não é verdade que esse direito deva resvalar para a maledicência e o vilipêndio à honra das pessoas que estão no jogo eleitoral.

A garantia da liberdade de expressão no Brasil foi preservada desde a constituição do Império até a de 1937. No Estado Novo, o governo de Getulio Vargas imprimiu uma forma própria de censura com impedimento à formação de associações e a publicação ou reprodução de certas informações desfavoráveis ao governo. Com o ordenamento jurídico inscrito na Constituição de 1946 ficou restabelecida a livre manifestação das idéias.

Entre aberturas e fechamentos do direito de livre expressão dos cidadãos e cidadãs, tanto legais e públicas quanto privadas e ideológicas, o sistema político brasileiro transitou em uma grande maré de efeitos a cada época levando alguns/as a se tornarem vítimas de confrontos de idéias deixando entre nós as marcas insepultas de suas convicções pelo que disseram e cantaram.

O que se observa nesta época eleitoral tem extrapolado essa maneira de livre expressão. Não me convence o fato de instituições trazerem ao cenário de discussão, apelos discriminatórios contra as mulheres que há séculos estão intentando demonstrar que não são apenas útero, mas têm inteligência e discernimento sobre assuntos diversos que povoam sua existência. Basta terem acesso a eles. Se não, vejamos: por que, no período imperial, as familias internavam as mocinhas nos conventos religiosos e por lá estas permaneciam até a idade do casamento para aceitarem o “par perfeito” escolhido pelo pai, para constituir familia? Esta atitude refletia o medo de estas jovens fugirem com seus namorados e/ou namorarem rapazes de fora do status social, no caso das familias abastadas, um sintoma de que a censura interna grassava sobre o sentimento e as opiniões dessas meninas. E as mágoas secretas dessa repressão eram repassadas aos seus diários, hoje um documento importante de estudos sobre a vida privada feminina.

Por que os costumes decidiram que “mulher e política se excluem” deixando-as por séculos sem o direito do voto, sem a educação, sem acesso às profissões ditas masculinas? E às que ousavam avançar nessas áreas restritas havia sempre formas repressoras para “ensinar” às demais congêneres, de que elas sofreriam sansões caso seguissem os “maus exemplos”. Interesante um artigo escrito por Vilhena Alves, em 1887, para um jornal da Vigia, “A Borboleta” (depois reproduzido em 1993, em “A República”, jornal belemense) no qual ele questiona o saber das “mulheres doutoras” se para esse gênero outras áreas a dignificavam. Mas o professor se redime com a Ciência : “Não simpatizamos nada com as mulheres doutoras apesar de sermos idólatras da ciência”. Em outro parágrafo o autor continua, agora tratando da questão de classe: “De que serve, com efeito, a uma moça pobre, o estudo das ciências e das belas artes, se desconhece os princípios rudimentares da economia doméstica?” É uma época? Hoje as mulheres são doutoras, mas ainda se acham presas as imagens dessa “economia”.

Como se vê, as afinidades entre o pensar discriminador que detona qualquer livre expressão de ser outra pessoa fora do modelo feminino, para as mulheres, no final do século XIX, ainda resistem às bases das insinuações atuais do modelo de representação social a que este gênero deve seguir. Lembro Eneida de Moraes que em 1930, ao deixar marido e dois filhos em Belém para seguir suas convicções ao partido comunista que se organizava no Brasil, foi por muito tempo execrada pelas familias paraenses que assistiam aos seus “vicios” de fumar, beber publicamente, conviver em roda de homens intelectuais e nem sequer avaliavam a potencialidade intelectual da mulher que tinha o direito de seguir livremente suas idéias.

Nesses modelos que catapultam as mulheres que aspiram trajetorias supostamente acima do que devem ser, vige o que Margareth Rago (UNICAMP) trata como o “útero nômade” que constroi os estereótipos femininos e contrai-lhes o desejo para um só indicador social responsavel pelo vilipendio e a maledicencia da honra das mulheres que ousam sair da velha tradição.



Bertha Lutz, a sufragista brasileira histórica


(Publicado em "O Liberal" em 21/10/2010)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O SUICÍDIO DE GÊNERO

Reproduzo este texto muito interessante da jornalista Marisa Meliani que reflete uma campanha a qual tenho me dedicado que é desmontar o vazio dos estereótipos sobre as mulheres e que se tornou tão forte nas campanhas partidárias destas eleições de 2010. (LMA)

Por Marisa Meliani, jornalista e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA-USP






Não basta desqualificar o voto do pobre, é preciso também desmerecer a capacidade da mulher na política e no exercício do poder.

A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida do jornal O Estado de São Paulo por ter escrito um artigo no qual procura desmistificar essa onda na internet que prega a desqualificação do voto dos eleitores das camadas mais pobres do país, especialmente aqueles que dependem do Bolsa Família para se alimentar.
No fundo, o pensamento dessa onda, que reclama da falta de profissionais no mercado para exercer os cargos de porteiro de edifício ou de empregada doméstica, por culpa das políticas sociais do governo Lula, resume a visão tosca que se propaga e contamina até jovens que deveriam desenvolver uma postura mais idealista e tolerante, como seria a ordem natural das coisas. E o pior: essa aberração é apoiada por pseudointelectuais, artistas vaidosos e outras matracas movidas pela ânsia de manter uma imagem up to date diante dos amigos da turma.

Tudo bem. Trata-se de questão de classe, cuja disseminação é garantida pela repartição ilegítima do controle dos grandes meios de comunicação ou do acesso à internet – lembrando que é esta mesma visão classista que aponta o dedo ao presidente Lula e desconsidera o direito de um operário ter se tornado presidente da República.

Mas, ao lado dessa arrogância, que pretende manter os mais pobres na lotação e não dentro do seu próprio automóvel, uma outra onda, muito mais capciosa, toma conta dos discursos nas redes sociais nesta eleição. É a questão de gênero.

O que mais se vê nessas novas mídias são adjetivos do tipo: gorda, feia, velha, cara de fuinha, bruxa, bruaca, baranga, terrorista e por aí vai. Fico pensando no que sente Dilma Rousseff, enxergando-a como qualquer outra mulher diante de tantas ofensas. Contudo, esta mulher, em particular, é candidata ao mais alto cargo do país, acabou de sair de um tratamento contra o câncer, está com o pé emoldurado por uma tala e percorre o Brasil em busca da manutenção de um projeto que insere, em fatos e números, as camadas mais pobres da população no espaço que chamamos de cidadania.

Não quero discutir aqui as questões de corrupção, amplamente identificadas nos dois governos FHC e Lula, ou no governo estadual paulista capitaneado pelo Sr. José Serra. A ética é uma condição que se firma, essencialmente, na consciência humana individual, antes de obter ressonância nos espaços públicos. E embora ela não seja a virtude mais cultivada por nossos políticos, é da ética pessoal que quero tratar aqui, como um protesto contra o retrocesso e um chamamento contra a obscuridade do pensamento retrógrado, atrasado e machista por excelência.

Os jovens que não viveram a ditadura militar em nosso país não têm ideia de como a militância de Dilma Rousseff nos grupos de esquerda foi importante para que eles vivam hoje em plena democracia. Rotular a candidata de “terrorista” e dar anuência para que a imprensa use esse argumento para detratá-la é uma ofensa a todos que sofreram ou morreram nos porões da ditadura. Uma pessoa, qualquer delas, que arriscou a própria vida para livrar o país dos horrores da verdadeira falta de liberdade – principalmente a de imprensa, da qual tanto se fala – merece respeito. E deve orgulhar-se de sua coragem.

Parte da imprensa, cooptada e venal, na afobação de garantir a vitória de seu candidato também dá ampla repercussão a questões de foro íntimo, como o direito ao aborto, à união civil entre homossexuais, de crenças religiosas e outras que deveriam ser tratadas em plebiscitos ou no âmbito dos grupos diretamente interessados, na forma de pressão sobre o Legislativo. Jogo sujo, claro. E ganhar assim não é bom para ninguém, muito menos para a democracia.

Estamos a poucos dias do segundo turno. Confesso que, desiludida com a política, preguei o voto nulo no primeiro turno, mas, felizmente, mudei de posição assim que detectei essa onda de intolerância que toma corpo e invade a mente dos mais ingênuos. Desejo profundamente que o debate suba alguns degraus e aborde os temas que realmente interessam ao nosso país e à população. Que se compare realizações, com números e estatísticas, dos dois grupos postulantes ao poder. Que se apresente os projetos para a continuidade de um processo de desenvolvimento sustentável em plena ascensão. Que se insira a questão ambiental dentro do tripé em que ela deve estar, ou seja, de forma integrada ao progresso econômico e socialmente justo.

Independentemente dos resultados no segundo turno, Dilma Rousseff merece o respeito e a admiração de todos que lutam contra a opressão e a intolerância. A possível primeira mulher presidente do Brasil é dona da beleza que todas as mulheres e homens possuem, que é a da vida examinada, com tentativas, erros e acertos. Vamos dar um basta às ofensas que, endereçadas à candidata, atingem a própria essência da condição humana.

Dedico este texto a todas as mulheres, mães, arrimos de família, trabalhadoras, de todas as idades, dos grandes centros urbanos ou dos rincões mais miseráveis do país. Lembro que a verdadeira vitória que comemoraremos juntas será a derrubada dos estereótipos que tentam nos impingir para nos humilhar, diminuir a nossa força e nos convencer de que somos incapazes de exercer o poder.

domingo, 17 de outubro de 2010

PARTIDOS E TEORIAS

A teoria política tem estudos clássicos sobre partidos com definições amplas e restritas repassadas aos alunos de Ciências Sociais, ênfase da Ciência Política.

O sociológo francês Maurice Duverger, desde a década de 1950/60 explora uma teoria geral dos partidos centrada nas regras de funcionamento dos sistemas partidários. Com base no sistema europeu, classifica os partidos entre os de quadros e os de massa, apontando para a estrutura, forma, organização e modelos partidários p.d. explorando as variáveis dependentes desse sistema. Sua enfase maior é para o principio da “Lei de Bronze da Política” ou como chamada a “lei de Duverger” afirmando que o sistema eleitoral majoritário conduz a um sistema bipartidário. E que a eleição majoritária em dois turnos tende ao multipartidarismo, convencionando-se também a chamar de efeitos mecânicos e psicológicos. Embora muitos cientistas novos considerem que essas idéias já se encontram superadas pelas mudanças no cenário político-partidário, inegável avaliar que Duverger continue a ser estudado e citado por suas contribuições, principalmente nas análises sobre disputa eleitoral.

Giovani Sartori (1976) trata desde a história das idéias à semântica de partido, procurando diferençar partido de facção. Deve-se a ele a revisão das leis de Duverger, condensando as conclusões em considerar que “o número de partidos indica imediatamente, ainda que de modo apenas aproximado, uma característica importante do sistema político: a medida em que o poder político está ou não fragmentado, disperso ou concentrado. Analogamente, só ao saber quantos partidos existem, somos alertados para o possível número de ‘correntes de interação’ que intervêm em cada sistema”. Essas correntes, diz ele, ocorrem em pelo menos três níveis: eleitoral, parlamentar e governamental, indicando, com isso, que o maior número de partidos (efetivos ou com voz) levará à maior complexidade do sistema. Sartori desafia a contagem dos partidos em cada sistema considerando a relevância do desempenho eleitoral destes, embora considere as distorções. Um partido com 3% a 4% de votos pode ter maior utilidade numa coalizão de governo, diz ele, do que outro com o dobro da votação, deixando de coligar-se por motivos ideologicos ou outro qualquer. Isso representaria a relevância eleitoral do partido, mas irrelavância política para a formação de governo, função do sistema partidário. As regras para a contagem dos partidos relevantes incidem, em primeiro lugar, no que o autor define como força eleitoral, medida que ele adota para apreciar o critério numérico dos partidos.

Muitos outros autores têm contribuido com suas análises nessa trama, sendo do meu interesse, ainda, a teoria do economista Robert Michels (1876-1936), que em 1914, escreveu “Sociologia dos Partidos Políticos”. Ao tratar da relação entre democracia e organização evidenciou a “lei de ferro da oligarquia” teorizando sobre a burocratização da organização partidária ao analisar o Partido Social-Democrata Alemão (SPD).

O politólogo italiano Angelo Panebianco (2005) trata sobre partido enquanto organização opondo-se aos vários modelos, mas evidenciando o modelo racional que admite o “paradigma dos fins”. Avalia que: a) uma organização jamais determina seus objetivos reais ‘a priori’, considerando que uma empresa espera maximizar seus lucros em qualquer situação; b) o partido tem uma pluralidade de objetivos “as vezes tantos quantos são os agentes que compõem a organização”, ou seja, metas variadas explicam a organização; c) a necessidade da “manutenção da própria organização, a sobrevivência organizativa ( e com ela a salvaguarda das próprias posições de poder”) demonstram muito mais o verdadeiro alvo dos dirigentes das organizações (p.13).

No estudo sobre os partidos brasileiros, temos muitos brasilianistas e cientistas políticos nacionais que apresentam enfoques divergentes ao avaliar o nosso sistema político. Scott Mainwainring (2001) ao compará-lo aos de outras democracias, examina a não institucionalidade e fragilidade desse sistema considerando o excessivo número de partidos, sem raizes sociais e alto índice de fragmentação, causando com isso a indiciplina e a baixa coesão pelo atendimento aos objetivos pessoais de seus líderes. Este não é o ponto de vista de Jairo Nicolau (1996; 2002) que considera o sistema representativo brasileiro com suas nuances típicas e diferenciadas do conjunto de democracias que são tratadas comparativamente com o Brasil.

Sigo o enfoque de Jairo Nicolau (1996) que embora questione a incipiência dos “partidos de cidadãos anônimos” ou a “sopa de letras” que emerge nos períodos eleitorais revela-se convencido de que “...o processo de institucionalização dos partidos é lento, sobretudo em tempos em que os partidos sofrem a concorrência dos meios de comunicação e de novas formas de participação política”.

(Texto publicado em "O Liberal", em 14/10/2010)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

JOGO DE PALAVRAS & OS OVÁRIOS DAS MULHERES

O ” jogo de palavras” dos “acertos” sobre os pontos da moralidade publica para deixar em dúvida o eleitorado quanto à formação religiosa de Dilma Rousseff está adentrando por principios da representação social fundamentalista e hipócrita em torno da posição da candidata sobre a questão do aborto. Esse “espírito das coisas” levou a médica e escritora feminista (além de um rol de outras qualidades) Fátima Oliveira a se pronunciar sobre a democracia brasileira e as exigências ao estado laico que assumimos há muito tempo. Independente da religião que assumo, sou adepta da liberdade de as mulheres decidirem sobre seu próprio corpo. Esse é o motivo que me leva a re-publicar o texto abaixo. (LMA)


ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS 2010: EM LEILÃO, OS OVÁRIOS DAS MULHERES!

FÁTIMA OLIVEIRA*


“Isso aqui”, o Brasil, não é um colônia religiosa, não é um Reino e nem um Império, é uma República! Dado o clima do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, parece que as urnas vão parir uma Rainha ou um Rei de Sabá, uma Imperatriz ou um Imperador, que tudo pode, manda em tudo e que suas vontades e ideias, automática e obrigatoriamente, viram lei! Não é bem assim…

Bastam dois neurônios íntegros para nos darmos conta que o macabro leilão de ovários (com os ovários de todas as brasileiras!), em que o aborto virou cortina de fumaça, objetiva encobrir o discurso necessário para o povo brasileiro do que significa, timtim por timtim, eleger Dilma ou Serra.

No tema do aborto a tendência mundial é, no mínimo, o aumento dos permissivos legais, que no Brasil são dois, desde 1940: gravidez resultante de estupro e risco de vida da gestante. Pontuando que legalização do aborto ou o acesso a um permissivo legal existente não significa jamais a obrigatoriedade de abortar, apenas que a cidadã que dele necessitar não precisa fazê-lo de modo clandestino, praticando desobediência civil e nem arriscando a sua saúde e a sua vida, cabe ao Estado laico e democrático colocar à disposição de suas cidadãs também os meios de acessar um procedimento médico seguro, como o abortamento.

Negá-lo, como tem feito o Brasil, que se gaba de possuir um dos sistemas de saúde mais badalados do mundo que garante acesso universal a TODOS os procedimentos médicos que não estão em fase de experimentação, é imoral, pois quebra o princípio do acesso universal do direito à saúde! Eis os termos éticos para o debate sobre o aborto numa campanha eleitoral. Nem mais e nem menos!

Então, o que estamos assistindo nas discussões do atual processo eleitoral é uma disputa para ver quem é a candidatura mais CAPAZ de desrespeitar os princípios do SUS, pasmem, em nome de Deus, num Estado laico! Ora, quem ocupa a presidência da República pode até ser carola de carteirinha, mas para consumo pessoal e não para impor seus valores para o conjunto da sociedade, pois a República não é sua propriedade privada!

Repito, não podemos esquecer que isso aqui, o Brasil, é uma República que se pauta por valores republicanos a quem todos nós devemos respeito, em decorrência, não custa nada dizer às candidaturas que limitem as demonstrações exacerbadas de carolice ao campo do privado, no recesso dos seus lares e de suas igrejas, pois não estão concorrendo ao governo de um Estado teocrático, como parece que acreditam. Como cidadã, sinto-me desrespeitada com tal postura.

As opções religiosas são direitos pétreos e questões do fórum íntimo das pessoas numa democracia. Jamais o norte legislativo de uma Nação laica, democrática e plural. Para professor uma fé e defendê-la é preciso liberdade de religião, só possível sob a égide do Estado laico, onde o eixo das eleições presidenciais é a escolha de quem a maioria do povo considera mais confiável para trilhar rumo a um país menos miserável, de bem-estar social, uma pátria-mátria para o seu povo.
Ou há pastores/as e padres que insistem em ignorar a realidade? “Chefe religioso” ignorante de que a sua religião necessita das liberdades democráticas como do ar que respiramos, não merece o lugar que ocupa, cabendo aos seus fiéis destituí-los do cargo, aí sim em nome de Deus, amém!

O leilão de ovários em curso resulta de vigarices e pastorices deslavadas, de má-fé e falta de escrúpulos que manipulam crenças religiosas de gente de boa-fé para enganá-las, como a uma manada de vaquinhas de presépio, vaquejadas por uma Madre Não Sei das Quantas, cristã caridosa e reacionária disfarçada de santa, exemplar perfeito de que pessoas desse naipe só a miséria gera. Num mundo sem miséria, madres lobas em pele de cordeiro são desnecessárias e dispensáveis. É pra lá que queremos ir e o leilão de ovários quer impedir!

Quem porta uma gota de lucidez tem o dever, moral e político, de não permitir que a escória fundamentalista de qualquer religião, que faz da religião um balcão de negociatas que vende Deus, pratica pedofilia e fica impune e ainda tem a cara de pau de defender a impunidade para pedófilos e os acoberta desde os tempos mais remotos, nos engabele e ande por aí com uma bandeja de ovários transformando a escolha de quem presidirá a República num plebiscito pra definir quem tem mais mão de ferro pra mandar mais no território do corpo feminino!

Cadê a moral dessa gente desregrada para querer ditar normas de comportamento segundo a sua fé religiosa para o conjunto da sociedade, como se o Brasil fosse a sua “comunidade religiosa”? Ora, qualquer denominação religiosa em terras brasileiras está também obrigada ao cumprimento das leis nacionais, ou não? Logo o que certas multinacionais da religião fizeram no processo eleitoral 2010 tem nome, chama-se ingerência estrangeira na soberania nacional. E vamos permitir sem dar um pio?

Diante dessa juquira (brotação da mata pós-desmatamento), onde só medrou urtiga e cansanção, cito Brizola, que estava coberto de razão quando disse: “O Brasil é um país sem sorte”, pois em pleno Século 21 conta com candidaturas presidenciais (não sobra uma, minha gente!) reféns dos setores mais arcaicos e feudais de algumas religiões mercantilistas de Deus.

É hora de dar um trato ecológico na juquira que empana os ideais e princípios republicanos, fora dos ditames da “moderna” agenda verde financeira neoliberal da “nova política”, que no Brasil é infectada de carcomidas figuras, que bem sabemos de onde vieram e pra onde vão, se o sonho é fazer do Brasil um jardim de cidadania, similar ao que Cecília Meireles tão lindamente poetou.

“Quem me compra um jardim com flores?/ borboletas de muitas cores,/ lavadeiras e passarinhos,/ ovos verdes e azuis nos ninhos?/ Quem me compra este caracol?/ Quem me compra um raio de sol?/ Um lagarto entre o muro e a hera,/ uma estátua da Primavera?/ Quem me compra este formigueiro?/ E este sapo, que é jardineiro?/ E a cigarra e a sua canção?/ E o grilinho dentro do chão?/ (Este é meu leilão!)” [Leilão de Jardim, Cecília Meireles].

Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético, logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres, independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as mãos dos nossos ovários!

Publicado: 13/10/2010 por Revista Espaço Acadêmico em colaborador(a), gênero, política, religiões


* FÁTIMA OLIVEIRA é médica e escritora. Feminista. Integra o Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e o Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). Escreve uma coluna semanal no jornal O Tempo (BH, MG), desde 3 de abril de 2002. Uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz 2005, pelo projeto 1000 Mulheres para o Nobel da Paz 2005. Autora dos seguintes livros de divulgação e popularização da ciência: Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995 – 14a. impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997 – 8a. impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2000); O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002). Autora dos seguintes romances: A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005); Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008); e Então, deixa chover (no prelo). E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br Texto publicado como ESPECIAL PARA O VIOMUNDO, em http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/fatima-oliveira-comeca-a-reacao-das-mulheres-contra-o-aiatola-serra.html

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ABORTAR A HIPOCRISIA

Paulo Moreira Leite, jornalista e ex-diretor da revista Época e do Diário de S. Paulo, ex- redator chefe da Veja e correspondente em Paris e em Washington publicou em seu site VIOMUNDO, na quarta feira, 6/10/2010, o texto abaixo agora republicado neste blog (LMA).


QUE TAL ABORTAR A HIPOCRISIA?

Paulo Moreira Leite

A discussão sobre a discriminalização do aborto foi um tema da reta final do primeiro turno e deve permanecer na segunda fase da campanha presidencial.
Há um lado peculiar nessa discussão. Ninguém falou de aborto nos últimos anos. Os vários projetos sobre o assunto, no Congresso jamais mereceram atenção da imprensa nem dos partidos políticos. Ficaram adormecidos e eram lembrados, como bandeira feminista, nos festejos de 8 de março ou outras datas semelhantes.

Na última semana da campanha, o debate surgiu.
Por que? Honestamente, só há uma explicação política: era uma forma de prejudicar a candidatura de Dilma Rouseff e tentar impedir sua vitória no primeiro turno.
Não é uma conspiração. É uma intervenção política, nos subterrâneos da campanha. É dificil imaginar que o aborto tenha surgido de forma espontânea. Foi um assunto provocado, de fora para dentro. Todos os grandes candidatos têm suas conexões religiosas e seus aliados neste universo.

Da mesma forma que um partido pode mobilizar sindicatos para defender uma candidatura ou um grupo de empresários para conseguir apoio, outra legenda pode mobilizar uma liderança religiosa para prejudicar um adversário.
Os adversários de Dilma descobriram um ponto sensível, onde seria possível atingir a candidata e colocaram o assunto na internet, produzindo o estrago que se conhece.

Não é um ataque sem base.

A posição de Dilma e do PT modificou-se ao longo do tempo. O PT decidiu não colocar o assunto em discussão na campanha eleitoral, ainda que ele tivesse surgido na primeira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos, sendo extirpado por decisão do presidente Lula, que não teve receio de desautorizar seus próprios auxiliares. O eleitor tem o direito de saber que a liderança religiosa que condena um concorrente em função dessa questão tem vínculos com determinada candidatura e trabalha para ela.

Quem acha necessário levantar a discusssão deve fazer isso de modo transparente, e não na forma de insinuações e acusações pela internet. O esforço para criar um debate sem origem é revelador de uma operação eleitoral, de quem quer cativar o eleitor religioso sem perder apoio junto a setores da classe média urbana que tem outra visão sobre o assunto e pode achar esse comportamento reacionário e inaceitável.

A falta de interesse que o aborto costuma provocar na vida cotidiana do país só ressalta o caráter artificial dessa discussão agora.

Por exemplo: lendo a Folha de hoje descobri que o PV é a favor da legalização do aborto desde 2005. É espantoso, quando se recorda que é justamente o partido de Marina Silva.
(O PV também é a favor da legalização da maconha, diz o jornal. Não duvido que uma pesquisa aprofundada descubra uma resolução de algum encontro verde a favor de casamentos de homossexuais…)
Não acho essa revelação sobre a posição do PV sobre a legalização do aborto escandalosa. É sintomática.

A sociedade brasileira convive há muitos anos com o aborto, que é tolerado em todas as famílias com uma única diferença. Quando a pessoa tem posses, pode submeter-se a uma cirurgia como tantas outras. Caso contrário, é submetida a intervenções de risco. O debate é uma questão de saúde pública, acima de tudo.

Não conheço ninguém que seja a favor do aborto. Mas conheço muitas mulheres que realizaram um aborto porque não se sentiam capazes de criar um filho sob determinadas condições — o que me parece uma atitude tão respeitável como a daquela que não realiza o aborto por uma postura ética de não atentar contra a aquela forma de vida humana.

Acredito nos políticos que dizem que são contrários ao aborto. Não conheço nenhuma pessoa que, em pleno gozo de sua saúde mental, seja a favor de interromper o desenvolvimento de um feto, de modo gratuito, em vez de utilizar métodos anticoncepcionais.

Na vida pública, nossos políticos se comportam da mesma forma, independente de cor, filiação partidária ou origem religiosa: toleram o aborto. Por essa razão as clínicas que realizam esse tipo de cirurgia funcionam de forma discreta e jamais são incomodadas pelas autoridades. A partir de uma certa idade, toda mulher brasileira sabe onde pode encontrar o nome de um médico que pode interromper sua gravidez. Marie Claire, uma das grandes revistas do país, tem posição editorial firmada a favor da discriminalização do aborto.

Periodicamente, os jornais e revistas entrevistam celebridades que já fizeram aborto — e nada lhes acontece, ao contrário do que ocorreu com o galã Dado Dolabella, que será processado porque recentemente foi apanhado com algumas gramas de maconha.

Na prática, o país caminha em direção à discriminalização — mesmo que nem sempre seja conveniente admitir isso. Essa discussão envolve um debate necessário e será lamentável se o assunto for transformado em troféu de uma guerra eleitoral.
Estamos num desses casos em que raramente se diz aquilo que se faz. Concorda?

sábado, 9 de outubro de 2010

ORDENS DA "VELHA ORDEM"

A psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl, muito conhecida e amada por muitas feminstas e a quem tive o prazer de conhecer nos idos dos anos 90, foi demitida do Estadão, por "delito de opinião". O fato se deve ao artigo que escreveu e publicou no jornal "O Estado de São Paulo". Tomo posição ao publicar o texto neste espaço, nem que seja para leitura de meus "sete", no dizer do velho companheiro Joaquim Antunes. (LMA)




DOIS PESOS

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo


Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos.

Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia". Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

Quinta, 7 de outubro de 2010, 11h25

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

FORMAS DE PROTESTO

No século XIX, quando o estatuto do voto foi celebrado pela corrente liberal como o vínculo mais expressivo da democracia representativa moderna na formação da cidadania, esse arranjo não contemplou as mulheres e alguns homens sem a feição exigida pelas regras institucionais. Foram necessários anos de luta para que a conquista desse direito passasse a ser uma instrução fundamental à entrada das mulheres na polis revalidando o sistema democrático. Herdeiras do protesto como mecanismo de pressão social para mostrar que além das “panelas e mingaus” também tinham consciência dos direitos e deveres exigidos aos “bons” cidadãos, as mulheres precisavam demonstrar que seu voto era consciente e não seguiam a idéia da tradição de que seriam eleitoras dos candidatos do marido. Às vezes fizeram greves, foram presas, torturadas e humilhadas, mas defenderam e conquistaram a democratização da política.

Se algumas vezes o protesto foi silencioso, nem por isso deixou de se evidenciar esse fato, no Brasil. Em Mossoró (RN), em 1928, o governador Juvenal Lamartine autorizou o voto das mulheres em eleições. A potiguar Celina Guimarães Viana foi a primeira mulher a conseguir o alistamento eleitoral, agregando-se a um movimento nacional em que suas congêneres de nove estados pertencentes à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, conseguiram o estatuto, embora institucionalmente somente em 1932 se efetivasse esse direito. Foram anulados os votos que as eleitoras desse período deram aos candidatos.

O voto de protesto tem sido um meio de reclamar sobre não-direitos, mas tem levado muitos eleitores/as a considerar esse mecanismo de pressão de forma crítica contra os que praticam a política. Esse tipo de voto designa situações diferenciadas: ou o/a eleitor/a se abstem, anula ou vota em branco, ou sufraga candidatos considerados excêntricos ou bizarros, manifestando, com isso, a sua indignação à política vigente no país e, principalmente, aos que atuam na política. No primeiro e segundo casos, os percentuais aumentaram no Brasil em relação a 2006, enquanto o voto nulo vem caindo desde 2002 (TSE).

Quanto aos candidatos bizarros, não se pode dizer que apenas os que agregam o humor nacional ganham campo na hora de serem escolhidos como candidatos para um cargo eletivo. No passado, ainda no período das cédulas de papel, o rinoceronte Cacareco (em São Paulo) e o macaco Tião (no Rio de Janeiro) apresentaram expressiva votação suficiente para se elegerem, sendo, contudo, os “votos” considerados nulos.

Já na fase da urna eletrônica, o cardiologista Enéas Carneiro, um nome respeitado no ramo médico, ganhou muitos votos arrastando consigo algumas outras candidaturas à Câmara de Deputados, simplesmente por usar o seu minuto na programação obrigatória da TV dizendo apenas “Meu nome é Eneas”. Nesse caso, além da máscara, a bizarrice se deu em nome da campanha que usou para se projetar e ao seu partido, o PRONA. Em 2006, o estilista e apresentador de TV Clodovil Hernandes também foi eleito deputado federal pelo PTC, com expressiva votação.

Outra especie de protesto é a escolha de votar em candidatos que usam nomes que lhes pareçam pitorescos e que chamam a atenção na campanha. Muitas vezes esses nomes nada têm a ver com o de batismo ou mesmo seja um apelido do postulante. Há certa consciência de que o bizarro é benquisto – ou leva ao ridículo, o que alguns vêem como forma de protesto e simplesmente por achar jocosa a pretensão de certas figuras se infiltrarem no cenário político.

Nessas eleições, o fato mais evidente foi a vitória ao cargo de deputado federal pelo PR, de Francisco Everardo Oliveira Silva, o palhaço profissional Tiririca, incriminado em 2005 como racista ao compor e cantar a música “Veja os Cabelos Dela” (com divulgação da Sony Music). Neste caso, pergunta-se qual a responsabilidade do partido que indicou esse cidadão como candidato? Se o eleitorado protestou sufragando-o, o critério de escolha pela composição da lista foi das lideranças partidárias.

As candidaturas ou vitórias que inspiram galhofas representam uma forma de protesto contra uma série de escândalos praticados pelos que representam a democracia. O eleitor pode achar insatisfatório votar em branco ou simplesmente anular seu voto. Mas se antes, nas velhas cédulas, podia se escrever o protesto, agora o automatismo leva a buscar esse protesto em formas estabelecidas – ou consentidas (TSE). A galhofa é uma forma de demonstrar a desaprovação ao status quo do sistema. Noutras palavras, o humor traduz melhor o que pensa o votante. Contudo, somente a utilização responsável da preciosa arma do voto que serve ao povo confirma a igualdade democrática, contrariando o dito do General Ignácio José Veríssimo, em 1953, de que “O voto de um general é melhor do que o de uma lavadeira”.

MARINA... VOCÊ SE PINTOU?

Maurício Abdalla [1]
[1] Professor de filosofia da UFES

“Marina, morena Marina, você se pintou” – diz a canção de Caymmi. Mas é provável, Marina, que pintaram você. Era a candidata ideal: mulher, militante, ecológica e socialmente comprometida com o “grito da Terra e o grito dos pobres”, como diz Leonardo Boff.

Dizem que escolheu o partido errado. Pode ser. Mas, por outro lado, o que é certo neste confuso tempo de partidos gelatinosos, de alianças surreais e de pragmatismo hiperbólico? Quem pode atirar a primeira pedra no que diz respeito a escolhas partidárias?

Mas ainda assim, Marina, sua candidatura estava fadada a não decolar. Não pela causa que defende, não pela grandeza de sua figura. Mas pelo fato de que as verdadeiras causas que afetam a população do Brasil não interessam aos financiadores de campanha, às elites e aos seus meios de comunicação. A batalha não era para ser sua.

Era de Dilma contra Serra. Do governo Lula contra o governo do PSDB/DEM. Assim decidiram as “famiglias” que controlam a informação no país. E elas não só decidiram quem iria duelar, mas também quiseram definir o vencedor. O Estadão dixit: Serra deve ser eleito.

Mas a estratégia de reconduzir ao poder a velha aliança PSDB/DEM estava fazendo água. O povo insistia em confirmar não a sua preferência por Dilma, mas seu apreço pelo Lula. O que, é claro, se revertia em intenção de voto em sua candidata. Mas “os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz”. Sacaram da manga um ás escondido. Usar a Marina como trampolim para levar o tucano para o segundo turno e ganhar tempo para a guerra suja.

Marina, você, cujo coração é vermelho e verde, foi pintada de azul. “Azul tucano”. Deram-lhe o espaço que sua causa nunca teve, que sua luta junto aos seringueiros e contra as elites rurais jamais alcançaria nos grandes meios de comunicação. A Globo nunca esteve ao seu lado. A Veja, a FSP, o Estadão jamais se preocuparam com a ecologia profunda. Eles sempre foram, e ainda são, seus e nossos inimigos viscerais.

Mas a estratégia deu certo. Serra foi para o segundo turno, e a mídia não cansa de propagar a “vitória da Marina”. Não aceite esse presente de grego. Hão de descartá-la assim que você falar qual é exatamente a sua luta e contra quem ela se dirige.

“Marina, você faça tudo, mas faça o favor”: não deixe que a pintem de azul tucano. Sua história não permite isso. E não deixe que seus eleitores se iludam acreditando que você está mais perto de Serra do que de Dilma. Que não pensem que sua luta pode torná-la neutra ou que pensem que para você “tanto faz”. Que os percalços e dificuldades que você teve no Governo Lula não a façam esquecer os 8 anos de FHC e os 500 anos de domínio absoluto da Casagrande no país cuja maioria vive na senzala.

Não deixe que pintem “esse rosto que o povo gosta, que gosta e é só dele”.

Dilma, admitamos, não é a candidata de nossos sonhos. Mas Serra o é de nossos mais terríveis pesadelos. Ajude-nos a enfrentá-lo. Você não precisa dos paparicos da elite brasileira e de seus meios de comunicação.

“Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu”.


[1] Professor de filosofia da UFES, autor de Iara e a Arca da Filosofia (Mercuryo Jovem), dentre outros.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

ELEIÇÕES NA HISTÓRIA

A três dias das eleições gerais, a população brasileira se prepara para mais uma vez sufragar candidatos/as aos cargos majoritários e proporcionais.
A experiência brasileira de democracia representativa está classificada entre os países democráticos da “terceira onda” pela forma da evolução do seu sistema político, centrado no sistema partidário e eleitoral, em decorrência do processo institucional progressivamente estabelecido ao longo da história. Pesa nessa classificação o lugar ocupado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em relação às demais nações (70º lugar em 2007-PNUD).
Eleições fizeram a história do Brasil diversa de muitas outras experiências democráticas. No período colonial, os representantes dos Conselhos Municipais eram eleitos pela população das vilas e cidades (1532).
O que se pode chamar de o primeiro “código eleitoral” iniciando a organização política e administrativa do Brasil, tem base no Código Filipino ou Ordenações Manuelinas (1603) cujos livros registravam tanto os cargos ocupados na Colônia quanto as demais ações do reino sobre os territórios conquistados. Ele trouxe modificações à organização das câmaras municipais acentuando o seu caráter administrativo e reduzindo as funções judiciárias.
Como a vila era “a base da pirâmide do poder, na ordem vertical que parte do rei (...)” ela será administrada pela Câmara ou Senado da Câmara. Salvo alguns cargos nomeados pelo rei, como o de presidente da província, há prevalência das eleições para os juizes ordinários, os vereadores (em número de três, mas em algumas vilas eram quatro), o procurador, o tesoureiro e o escrivão, tendo cada um deles suas atribuições constantes nas Ordenações.
Quem compõe o colégio eleitoral responsável por este arranjo são os “homens bons e povo chamado ao Conselho”, segundo o registro do Código Filipino no Livro I, Título LXVII. Estes “homens-bons” são “indivíduos não nobres que possuem hereditariamente a propriedade livre”. Podem votar e presidir eleições: os corregedores e juizes, qualificados através da identificação de quem sejam conforme exigências das leis forais e costumes. Os não qualificados eram “os mecânicos operários, degredados, judeus e outros que pertenciam à classe dos peões” (Costa Porto, 2002).
Numa fase em que há eleições locais, não há referências às mulheres, como parte dessa estrutura de poder. As Ordenações Filipinas, no Livro 5, reduzem a menção a esse gênero aos costumes e proibições de comportamento e punições às transgressoras. Walter Costa Porto (2002) considera que o eleitorado restrito excluía as mulheres. Oliveira Viana (1955), ao elaborar um substancioso estudo sobre a importância dos clãs parentais e o “complexo da família senhorial”, para explicar os fundamentos sociais do Estado brasileiro, evidencia quem faz parte desse grupo responsável pela influência política eleitoral e na administração pública; anota os nomes das grandes famílias, mas ignora o papel das mulheres nessa dinâmica, salvo ao considerar a presença de um tipo delas: as “mulheres públicas” entre os que povoam as cidades nos dias de semana.
Embora o imaginário social reforçasse a submissão aos costumes e normas emitidas pelas Ordenações Filipinas, em vigor, as mulheres eram parte ativa, tanto no trabalho de chefia das propriedades (mesmo sem serem viúvas), quanto entre os grupos políticos insurretos ao regime que marca o período. Algumas, por suposto, sabiam ler; outras eram analfabetas, como muitos proprietários de terras e comerciantes que eram eleitores.
No império, em 1821, ocorrem as primeiras eleições gerais para a escolha de representantes à Corte de Lisboa. A primeira lei eleitoral foi promulgada em 1822 para regular as eleições dos representanes da Constituinte de 1823. Ao todo, desde a primeira eleição pós-independência (1824), são 53 legislaturas na Câmara de Deputados, tendo sido suspensas somente entre 1937-45, durante o Estado Novo (Nicolau, 2002).
Essa “trajetória do voto” no Brasil construiu a história do processo de participação política (ativa e passiva) do individuo, que antes emergia de um estado imperial e criava o arcabouço da legitimidade aos governantes, constando de conselheiros que administravam as cidades.
Hoje, o Estado republicano está representado através de eleições aos cargos principais do poder executivo e legislativo. Das fraudes mais vulgares à verificação de poderes, como o coronelismo exacerbado do “voto de cabresto”, o acesso ao poder foi parcialmente saneado, criando-se legitimidade competitiva também para as minorias afastadas e gradualmente incluídas pela proporcionalidade representativa e o sufrágio universal. Da eliminação gradual dos impedimentos ao voto, e ampliação desse direito nas democracias contemporâneas (renda, gênero, geração e etnia) às medidas de controle do equilíbrio do poder entre nações de clivagens exacerbadas, mudou-se o rumo na participação eleitoral com a entrada de novos atores e a consolidação democrática.
Ao longo das mudanças das leis e códigos eleitorais, a democracia brasileira mostra-se como um sistema estável, inclusivo e bem mais responsivo. Nas atuais eleições, duas mulheres dividem os votos do eleitorado ao maior cargo da Nação riscando, das configurações pejorativas e esteriotipadas, o jargão de “mulheres públicas”. Enfrentando discursos marcados por ideologias partidárias exploram o acúmulo de conhecimentos que amealharam por se tornarem ousadas em aceitarem as regras de um jogo que antes tinha sexo definido.

(Texto publicado em "O Liberal" em 30/09/2010)