Uma das cenas de violência do período do golpe militar de 1964
O cinquentenário do golpe militar que levou o Brasil a um
sistema político hibrido, entre a ditadura total e a liberdade vigiada, com
funcionamento das casas parlamentares e eleições estaduais - embora limitando a
escolha dos eleitos num bipartidarismo, um deles representando o governo geral e
outro a oposição consentida (e por isso mesmo vulnerável à censura/leia-se
ARENA e MBD), - dá margem a diversos estudos sobre a situação histórica brasileira
que, no dizer do professor Rodrigo Patto Sá Motta, da UFMG, e organizador do
livro “Autoritarismo e Cultura Politica”/Editora FCV, : “deve mover o historiador (...) a considerar (...) o
caráter simultaneamente moderador e conservador do regime militar, que
conciliou tendências por vezes contraditórias e abrigou agentes com idéias
discrepantes desde liberais a fascistas”. Contrariando essa suposta “democracia
militar” verifica-se que os três poderes da república estavam restritos a um só
poder, apesar da referência a um sistema representativo. Isto ficou claro para
Jarbas Passarinho que, num depoimento para o programa Arquivo N (Rede Globo)
afirmou ter questionado seus colegas de governo, considerando que estávamos sim,
numa ditadura.
Eu vivi o tempo que se chamou depois de “anos de chumbo”. E
aceito a ideia do historiador e professor da UFRJ Carlos Fico que considera o
começo do período bem antes de 1964, quando Janio Quadros renunciou à
presidência em 1961, estando o seu vice, João Goulart, em viagem à China,
unindo conjecturas de que este tinha ido ao encontro a um dos focos de suas
ideias comunistas. Imediatamente surgiu a emenda parlamentarista para impedir a
posse desse político de esquerda. E entra em cena o embaixador norte-americano
Lincoln Gordon alertando o presidente John Kennedy do perigo que estava levando
o Brasil a ser uma nova Cuba.
A atriz Brigitte Bardot em visita ao Rio pouco depois de
abril de 1964 disse que ficou “maravilhada de no Brasil se fazer uma revolução
sem se disparar um só tiro”. Sabe-se que não foi assim, a partir do fato de que,
na realidade, não houve uma revolução no sentido tradicional, mas um golpe.
Havia, nas classes conservadoras, o medo de que o país entrasse num sistema
estatizante que lhes afetasse os bens (o caso dos produtores rurais ameaçados
com a reforma agrária alertada pelo presidente e, ainda, setores da indústria e
do comercio) e, também, na classe média de um modo geral, caracterizado pelo
medo de chegar o “comunismo ateu” propagado por uma ala da igreja (que mais
tarde mudaria de ideia diante da violência contra seus próprios membros) e pela
imprensa que de inicio se manifestava contra Goulart.
Um quadro bem característico da aceitação do golpe por parte
de uma parte expressiva da população foi a “marcha da família com Deus e pela
liberdade”, realizada em todos os estados – e em Belém eu recordo da multidão caminhando
e rezando o terço como se estivesse numa procissão católica. Também houve outra
passeata de apoio aos ideiais golpistas: a marcha denominada “Ouro para o bem
do Brasil”. Pessoas jogavam em lençóis estendidos joias e dinheiro que seriam
aproveitados para pagamento de nossa divida externa e o mais que consolidasse o
regime “democrático ...e cristão” (e hoje se pergunta para onde foi esse ouro?).
Na noite de 31 de março assisti do pátio da minha casa, o
movimento em direção à sede da UAP (União Acadêmica Paraense) onde estavam
reunidos estudantes que manifestavam sua repulsa ao golpe e para onde se
dirigiram os pelotões que invadiram o imóvel e prenderam muita gente. Outro
tanto fugia e se escondia nos quintais das casas vizinhas. No meio dos presos
estavam amigos queridos e depois eu soube das torturas que sofreram com alguns
deles sendo enviados para outros estados em porões de navios a lembrar dos
trágicos navios negreiros do tempo da escravatura (felizmente não houve replay
do Brigue Palhaço).
O período da ditadura trouxe a censura a tudo e a todos. Em
meados de 1970 eu já escrevia neste jornal e, a partir de uma entrevista com o
então presidente do sindicato de jornalistas, João Marques, não achei nada
demais as suas referências aos filmes políticos que não chegavam a Belém com
ele imprimindo criticas ao rigor censório de então. Por isso fui intimada a
comparecer a Policia Federal onde passei uma tarde prestando depoimento e com o
interrogador, o superintendente do órgão, sempre alertando: “Nós não somos
sádicos” e/ ou outra frase com alusões ao episódio que me levou ao tal
interrogatório e assinatura do depoimento a que fui submetida – “Você sabe que
esta situação está incursa nas Leis de Sugurança Nacional ....”. A estratégia a
que me submeteram foi não deixar que o advogado que este jornal mandara me
acompanhar e o meu marido participassem da sessão do inquérito.
Censurava-se toda forma de imprensa e as chamadas “diversões
publicas”. Os filmes chegavam com documentos que indicavam os cortes efetuados
nas cópias. Isso era checado no departamento regional. O não cumprimento de um
desses cortes levava à interdição do programa.
Sabe-se agora da influência norte-americana no processo. John
Kennedy e Lindon Johnson chegaram a mandar navios para nossos limites com ordem
de intervenção se os militares brasileiros não tomassem uma atitude impositiva
contra os considerados “subversivos”.
Como disse o cineasta Camilo Galli Tavares, “o dia durou 21
anos”. Lutamos muito, perdemos inteligências, vimos tantas mudarem de endereço,
e ainda agora há amigos adoecidos por esse tempo de terror e acho abominável
que hoje seja criticado o que conquistamos como se a democracia trouxesse a corrupção,
o desmazelo, o despreparo, o que descontasse a quem em sua maioria não viu e
pouco soube do que foi vivido. Daí ser exemplar o título do programa (seminário,
depoimentos pessoais e filmes) que será realizado no cinema Olympia : “1964: Lembrar
Para Não Esquecer”.
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