Aprende-se, quando criança, que no dia
7 de setembro o Brasil se tornou independente de Portugal. Sabe-se depois, ao
consultar não só os livros didáticos de História, mas as diversas publicações
de pesquisas em torno do assunto, que o tom épico deixado, ou seja, o grito “Independência
ou Morte” foi moldado para enfatizar, com o garbo requerido em épocas passadas,
o fato marcante. Fato que a tela de Pedro Americo tão bem sintetizou.
A independência brasileira é rara a considerar
que foi proclamada pelo colonizador (um português deixado aqui pelo soberano de
Portugal) e sem a carnificina que cerca as campanhas por emancipação de
diversas nações.
Quando assumi a cadeira nº 1, do Instituto
Histórico e Geográfico do Pará, cujo patrono é o escritor pernambucano Alberto
Rangel (anteriormente ocupada por Aylton Quintiliano e Antonio Vizeu da Costa
Lima) dissertei, na posse, sobre a obra que ele escreveu em torno do caso de
amor entre D. Pedro I e Domitila de Castro: “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros
documentos públicos e particulares)”, 1ª edição de 1916 (Livraria
Francisco Alves). A estrutura dos 15 capítulos mantém um estilo de crônica
histórica e biográfica, com narrador na 3a pessoa, num tempo linear
embora dialogando com os fatos históricos e com as nuances da vida pessoal de
D. Pedro I e da Marquesa de Santos. Paralelamente, cria interlocução entre as
várias histórias, explora a historiografia existente sobre os fatos narrados e
apõe outros documentos para serem analisados e repensados pelo leitor. Explora
o momento do encontro entre os dois, a origem familiar da Marquesa, a sua
condição de “teúda e manteúda”, as dimensões políticas da presença íntima da
amada e sua condição de matrona, sempre chamando, para cada caso, os efeitos
nacionais e internacionais dessa história particular. As cartas subjazem na
esfera narrativa, sendo o meio de onde é extraído o subsídio do livro. Partes
fragmentadas desses documentos servem de testemunhos para a impressão
analítica.
No livro há 154 cartas dos amantes que
Rangel vê como “uma literatura de pouca culminância e toda de ocasião” porque
ela só “vale e representa para os que as escreveram ou receberam”. Mas
reconhece a importância histórica que as acompanha. À vista disso, a narrativa
do autor analisa, em forma de nótulas, cada carta escrita pelo Imperador à sua
amada, desenvolvendo, a partir das referências que este faz a nomes, assuntos,
termos específicos e particulares ou a própria assinatura, uma História
paralela, seja de uma situação, seja da situação política luso-brasileira
passada, ou daquele momento quando a independência transita como o “novo” no
processo de poder político, mas que ainda é motivo de dúvida entre os
brasileiros e a Corte. Há, também, a partir dessas nótulas, a construção de uma
genealogia familiar dos dois personagens centrais e o perfil de um “homem”
convivendo num cotidiano da “vida ordinária” onde se expressa enquanto marido,
amante e pai carinhoso. Os termos usados por D. Pedro, para acarinhar a amada,
também são repassados pelo olho observador de Rangel, que nessa condição assume
múltiplos papéis, quer seja enquanto historiador (o peso maior das observações
e comentários, enfim, de toda narrativa), enquanto psicólogo (das relações de
gênero e da situação política nacional, internacional e pessoal criadas por
essas relações) e enquanto um crítico (de uma certa História) que procura
esclarecer o tom escabroso do acontecimento, na versão de outros historiadores
e de uma literatura que omitira os fatos. Apresenta então outros documentos que
rompem com as nebulosidades do “dito” e do “não dito”.
Os laços amorosos que mantiveram
Domitila de Castro enredada ao Imperador durante sete anos (1822 a 1829) são o
mote histórico de Rangel. As cartas de D. Pedro à sua súdita brasileira são
declarações de amor que referendam, a meu ver, três fases desse envolvimento: a
inicial romântica, a da rotina cotidiana e a da separação provocada pelas
pressões para um novo casamento de Estado, do Imperador, após o falecimento da
imperatriz D. Leopoldina.
Outra fonte de análise foi “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”,
edição de 1984 (Nova Fronteira), um conjunto de cartas de D. Pedro I a Domitila
de Castro organizada por autor anônimo e publicada pela Tipografia Morais em
1896, com nótulas de Alberto Rangel. Este livro contém: 98 cartas datadas,
escritas entre os anos de 1822 e 1829; 33 não datadas; e 23 que foram
acrescentadas sem comentários de Alberto Rangel.
As cartas esclarecem o perfil dos
amantes:
“Cara Titilia.
Foi inexplicável o
prazer que tive com as suas duas cartas. Tive arte de fazer saber a seu pai que
estava pejada de mim (mas não lhe fale nisto) e assim persuadi-lo que a fosse
buscar e a sua familia que não há de cá morrer de fome, mui especialmente o meu
amor, por quem estou pronto a fazer sacrificios. Aceite abraços e beijos e
fo... Deste seu amante que suspira pela ver cá o quanto antes.
O Demonão.
(Santa Cruz, 17 de
novembro de 1822.)
“Titilia.
Ontem mesmo fiz amor
de matrimônio para que hoje, se mecê estiver melhor e com disposição, fazer o
nosso amor por devoção. Aceite, meu benzinho, meu amor, meu encanto e meu tudo,
o coração constante.
Deste seu fiel amante.
O Demonão”. (1824).
Convindo ao meu decoro que mecê
sempre apareça diferente no teatro todos estes tres dias, ai vai o colar de ametistas
para hoje levar e amanhã leve o outro que eu lhe dei antes do que levou ontem.
(...) Seu amante .
O Fogo Foguinho
(s/d, Cartas, 1974, p. 605)
E a última carta dos amantes:
“Marquesa.
Não repare que eu, a bem do meu
negócio do casamento, lhe torne a escrever. Minha filha infalivelmente sai até
dois de julho, e por isso eu muito desejo que a Marquesa saia pelo menos seis
dias antes, o que vem a ser 26, porque muito convém que os que vão possam dizer
“a Marquesa ja saiu” e não “está para sair”. Todos acreditarão o que aconteceu
e não o que está para ser, que pode não ser, e o negócio é grave e muito grave”
(...).de 22 de maio de 1828: (de 22 de maio de 1828. Cartas, 1974, p. 458).
Senhor meu senhor,
Eu parto esta madrugada e seja-me permitido ainda esta vez
beijar as mãos de V. Majestade por meio desta, já que os meus infortúnios, e a
minha má estrela, me roubaram o prazer de fazer pessoalmente. Pedirei
constantemente ao céu que prospere e faça venturoso ao meu Imperador enquanto a
Marquesa de Santos, Senhor, pede por último a V. M. que, esquecendo como ela
tantos desgostos, se lembre só mesmo, a despeito das intrigas, que ela em
qualquer parte que esteja saberá conservar dignamente o lugar a que V. M. a
elevou assim como ela só se lembrará do muito que deve a V. M. Que Deus vigie e
proteja como todos precisamos.”
Marquesa de Santos
Última
carta da Marquesa para o Imperador. Na madrugada de 26 de 27 agosto de 1829,
ela partiu, definitivamente, para o Rio de Janeiro.
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