O centenário do cinema Olympia tem causado “frisson” (para usar
um termo que li e ouvi de muitos dos entrevistados/as da década de 1910) na
sociedade belenense atual, ao menos entre aqueles/as que buscam informação
sobre o evento.
Na verdade, também senti esse interesse anos atrás quando levantava
dados para uma pesquisa sobre mulher e política que se tornou o tema da minha
dissertação de mestrado (NAEA/UFPA). Havia dois eixos de evocações nas
respostas recolhidas de meus depoentes e que pontuaram alguns capítulos do
trabalho, tanto pela exposição sobre a política local no auge de duas crises -
na Primeira e na Segunda República - referencial recolhido em várias fontes
(depoimentos, imprensa e literatura regional) como pela construção das imagens
de homens e mulheres que transitavam nos espaços sociais e políticos (classe
social média alta). Demonstrava-se, com isso, uma parte da formação social
dominante e disseminadora de valores e atitudes da geração que se dispunha a
avaliar a composição de sua classe revelando os meios de convivência e as
formas de circulação do capital social e político dessa geração.
Deslocar esses quadros construídos de arranjos nas relações sociais para
toda a sociedade paraense é um viés que não deve ser usado, haja vista a não
uniformidade no modo de vida entre as classes diversas. Mas se tornava
importante reconhecer de que forma se construía o olhar dos depoentes da classe
alta sobre si e os conviventes e as demais pessoas da sociedade. Eram versões
que mostravam os privilégios “da alta” e o reconhecimento das “sobras” que eram
lançadas aos de menos posses. Se havia dominação de valores havia também a
reação a esses em forma de recusa a aceitar essas sobras como algo natural. E
não foi à toa a reação através do levante contra a oligarquia construída por
Antonio Lemos e seus adeptos, embora, lideranças partidárias opositoras ao seu
mando, estivessem na liderança dos acontecimentos que levaram, em agosto de
1912 à sua queda do poder local. Seria ingenuidade e ausência do teor
científico se não houvesse, no meu estudo, indicações fortes sobre o assédio
moral e partidário laurista (Lauro Sodré e seus adeptos do Partido Republicado
Federal – PRF) agregando trabalhadores desempregados que sofriam na carne a
falta de emprego naquele momento, com a queda da goma elástica, nas
comercializações paraenses.
E o que tem a ver esse momento de crise política com o tempo de
inauguração e a frequência dessa classe social alta aos programas do cinema
Olympia?
Um dos depoimentos mais indicativos dessa afluência e as consequências
que poderiam advir com a ausência/presença deste ou daquele empresário da
borracha e/ou de outro ramo comercial ao Olympia acompanhado de sua esposa
& familiares, é do médico ginecologista A.G. (83 anos, em 1987) já
falecido, pertencente à família tradicional dos Lobos e Guimarães que recebera
do governo franquias de terrenos para comercializar, recolhendo o foro da
extensão territorial de sua competência, pelo uso e moradia de outras famílias.
Disse o médico: “O cinema era muito frequentado . Era especial o soirée
das sextas feiras, porque era o dia das exibições dos vestidos das grandes
“cocotes” de Belém. Elas eram umas quatro ou cinco e disputavam entre si a
apresentação do vestido(...) Ainda me lembro do nome de algumas delas : a
Panchita, a Raio de Sol, eram espanholas; a Maria José Pequena, a Margot, esta
era francesa. Eram as mais famosas. Os “donos” delas mandavam buscar os
vestidos em Paris. Elas eram conhecidas assim: “Panchita de fulano”, a “Margo
de sicrano”. Elas iam também de chapéu, como iam as senhoras, ostentando as
suas joias, riquíssimas, que chamavam a atenção das famílias. (...) A saída do
cinema é que era interessante. Elas chegavam sempre no intervalo, no
cine-jornal. Quando este terminava, havia um intervalo de uns três a quatro
minutos. Elas sabiam. Então elas entravam. Era o desfile delas. Depois, quando
terminava a sessão, as famílias iam para o terrace do Grande Hotel para
tomar sorvete. Enquanto terminava a repetição do cine-jornal, elas saiam uma a
uma, eram o comentário das famílias. Elas andavam sozinhas, nunca se
apresentavam com homem ao lado. (...) Geralmente esses grandes “donos” dessas
“donas” iam ao cinema. Eram industriais, comerciantes, proprietários... não
digo o nome .....têm descendentes, ainda”. Um ponto valorizado por A.G. era a importância da presença desses senhores levando ao Olympia suas esposas e sendo vistos pelo esplendor de riqueza tanto destas quanto das “donas” que sustentavam no luxo parisiense. Essa presença pública administrava a circulação da riqueza, pois estabelecia alto cacife aos que necessitavam de investir em grandes negócios e precisavam de empréstimos bancários.
O Olympia, portanto, serviu de espaço avaliador do lastro exigido aos
grupos econômicos ao circularem espectadores qualificados do tipo banqueiros,
investidores, comerciantes em seus programas de cinema. Essa é a outra história
que este cinema testemunhou.
(Texto originalmente publicado em "O Liberal"/PA em 20/04/2012)
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