"Familia de Saltimbanco" de Pablo Picasso
A sociedade civil e organizada
brasileira há duas semanas está se mobilizando na articulação do Movimento “Por
Todas As Famílias” contra o Estatuto da Família, o PL 6583/13, apresentado pelo
deputado Anderson Ferreira (PR-PE) que define o conceito de família como “a
união entre um homem e uma mulher” e restringe o núcleo familiar aos padrões
heteronormativos. O parecer do relator, Deputado Diego Garcia/PHS, foi aprovado
em 24/09/2015, por 17 votos a 5, na Comissão Especial, com o trâmite previsto
para apresentação ao Senado.
A comunidade acadêmica que tem se
debruçado desde longa data para estudar, pesquisar e refletir sobre as mudanças
historicamente construídas da realidade global e da brasileira em particular
iniciou e fortaleceu essa mobilização apresentando notas de repúdio, análises
de experts das várias áreas inclusive da área jurídica como a da Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), com demonstrativos da
inconstitucionalidade de vários artigos e da grave violação de direitos fundamentais de
cidadãos e cidadãs brasileiros. Em sua nota diz:
“A Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão (PFDC/MPF) vem a público manifestar sua discordância acerca do PL
6.583/2013, que dispõe sobre o Estatuto da Família, por entender que o
Congresso não pode legislar sobre direitos já garantidos pela Constituição
Federal (CF) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), notadamente:
Art. 3º Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I -
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição
(...)”
Em outra parte do documento a PFDC/MPF afirma: “O
PL 6583/2013 ao definir, em seu Art. 2º, “entidade familiar como o núcleo
social formado a partir da união entre um
homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, restringe
direitos já conquistados por uniões civis de pessoas do mesmo sexo e que não
correspondem à definição proposta.”(...) O documento segue demonstrando quais
direitos são cerceados a/ao cidadã/ao brasileiro e que constam na Constituição de
1988.
Sobre o conceito de família
homoafetiva, o documento capta o entendimento da Professora Dóris de Cássia
Alessi (2011, p. 45): “Amparada pelos princípios constitucionais, às uniões
homoafetivas ganharam relevo a partir do momento em que o obsoleto modelo
patriarcal e hierarquizado de família cedeu lugar a um novo modelo fundado no
afeto. A propósito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas pelo amor,
respeito e comunhão de vida preenchem os requisitos previstos na Constituição
Federal em vigor, quanto ao reconhecimento da entidade familiar, na medida em
que consagrou a efetividade como valor jurídico”.
Neste texto considero, também, como
retrocesso as alterações sociais provindas do Estatuto da Família. A Dra.
Simone Barbosa Villa (FAUeD/Universidade Federal de Uberlândia) ao estudar a dinâmica
urbana no Brasil contemporâneo observa “as significativas mudanças pelas quais
têm passado os arranjos familiares da população (...)” constituindo-se em “nova
dimensão nesse início do século XXI onde a velocidade das mudanças é grande”.
Além da ordem demográfica como a diminuição da fecundidade e o envelhecimento
da população ela destaca outros componentes integrados às transformações
sociais e culturais como “o menor número de matrimônios, aumento das separações
e atraso das uniões, conjuntamente com o novo papel da mulher na família e no
trabalho, as quais tiveram importantes implicações nas relações de gênero.”
Neste último aspecto são percebíveis as conquistas históricas que as mulheres
alcançaram na luta por sua emancipação construindo um processo de
conscientização sobre as seculares perdas de direitos no âmbito da cidadania
política, social, cultural e econômica.
Esse processo de mudanças que nas
últimas cinco décadas revolucionaram o mundo tende a afetar as estruturas
familiares e sociais a exemplo: “(i) revolução contraceptiva na qual ocorre
dissociação da sexualidade da reprodução; (ii) revolução sexual,
principalmente, para as mulheres que passam a distinguir a sexualidade do
casamento e; (iii) revolução no papel social da mulher e nas relações de gênero
tradicionais, onde a figura do “homem provedor” duela com o consolidado papel
da “mulher cuidadora” (apud LESTHAGUE, 1995).
A autora evidencia, então, que esses
processos transformadores favorecem a consolidação de novos formatos de grupos
domésticos com ativa participação nas estatísticas onde havia o predomínio da
família nuclear. “Famílias monoparentais, casais DINC (Duplo Ingresso e Nenhum
Filho), uniões livres – incluindo casais homossexuais -, grupos coabitando sem
laços conjugais ou de parentesco entre seus membros e a família nuclear
renovada.” Neste caso, essa renovação da antiga família nuclear trouxe maior
autonomia aos seus membros com declínio da autoridade dos pais. Simone Villa
cita Perucchi e Beirão (2007 p. 66): “O modelo patriarcal de família,
caracterizado pelo arranjo composto por pai, mãe e filhos que convivem sob a
égide da autoridade do primeiro sobre os demais, está em crise”.
Neste aspecto, a presença feminina se
destaca em meio à nova ordem que tem disseminado ao entrar no mercado de
trabalho antes restrito a algumas funções e hoje ampliado e inclusivo para as
mulheres. No Censo Demográfico do IBGE, os dados de 2010 apontam para 66,2% de
famílias “nucleares” (definidas como um casal com ou sem filhos, ou uma mulher
ou um homem com filhos); 19% são estendidas (mesmo arranjo anterior, mas inclui
convivência com parente(s)); 2,5% são compostas (inclui convivência com quem
não é parente) e os demais 12,3% são pessoas que moram sozinhas. Há ainda 60
mil casais de outra orientação sexual e quanto às uniões homoafetivas, o IGBE
aponta, em 2013, para 3.701 casamentos registrados no país, 52% (1926) ocorrem
entre mulheres e 48% (1775) com homens.
Meu Estatuto é em defesa dos
direitos e da pluralidade.
(Texto publicado originalmente em “O Liberal”/Pa, em
02/10/2015)
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