A Berlinda com a imagem da Virgem de Nazaré
Nesta interrogação há muitas histórias. O verbo
pode se transformar em conceito e se complexificar no que pretendo tratar sobre
um evento cujos extremos – entre o que se considera sagrado e o que demonstra ser
profano – em meio a vivências pessoais, memórias, práticas acadêmicas e as
sinuosas hipóteses na extração de seu significado tendendo a evidenciar os
muitos lugares em que o Círio possa estar.
A começar pelo termo
originário – Círio – cujo verbete, na Enciclopédia Brasileira define-a da
palavra latina cereus e apesar da
dimensão da linguística mais conhecida – grande vela de cera – também reporta à
rubrica religiosa – “procissão
em que se leva, de uma localidade para outra, uma dessas velas”.
O que tratamos aqui sobre Círio está mais ligado à segunda
dimensão por se constituir em duas posições – uma procissão que transporta uma
imagem representando uma santa católica e as velas que iluminam os caminhos da
passagem dessa procissão, tanto como registro de abrir espaços da caminhada
quanto para reverenciar a imagem santa.
Na verdade, a recorrência histórica dessa festividade em
Belém (PA), sobre o Círio de Nazaré tem sido bastante estudada, apresenta
muitas versões, apreendendo-se de cada uma destas mais um capítulo de
descobertas sobre esse evento, analisando-se
a proximidade com outra festividade europeia. Com
essas argumentações que aportam na história paraense vão sendo incorporadas ricas
visões sobre fatos evidenciando pessoas ilustres e humildes devotos, objetos,
valores, histórias simples e de guerra, costumes, novos atores entre os velhos
da tradição e os novos da devoção.
Das teias de
conhecimentos que procuram sustentar as análises de observações e dados
coletados e sistematizados, o registro sobre o Círio percorre escritas as mais
diversas. A História é então interpenetrada pela Antropologia que se abebera da
Sociologia e adentra a Ciência Política não sem atravessar outras áreas de
conhecimento como a Filosofia, a Geografia, o Turismo, a Economia, a Gastronomia,
a Comunicação e outros roteiros acadêmicos que circulam como propulsores das
pesquisas em torno desse fato social. Das teorias científicas aos procedimentos
metodológicos cada eixo desses leva a várias formas de investigação onde
categorias sociais se tornam os eixos fundantes das interpretações que ajudam a
analisar desde a memória à indústria cultural, dos ritos aos mitos, da
culinária à convivialidade familiar construindo-se laços de sociabilidade e
marcando o processo identitário do povo paraense.
Na minha perspectiva
reconheço alguns lugares em que posso encontrar o Círio. Primeiramente a memória
da descoberta do que essa festa representava e das expectativas sobre ela
enquanto moradora de uma cidade no interior do Estado. Alguns meses antes de
outubro – o mês da festa - minha mãe projetava seu interesse em “passar o Círio
em Belém”. Aquelas alturas nós já tínhamos parentes moradores nessa cidade e
que nos dariam hospedagem. O desejo da celebração esbarrava, a maioria das
vezes, no baixo lucro comercial do meu pai naquele ano. E os planos de minha
mãe não se realizavam. O Círio nos encontrava, então, através do noticiário
radiofônico onde a mesura católica de benzer-se à orientação ouvida no momento
da procissão era registrada. Mas certa vez deu certo e viemos todos, entre cestos
de patos, farinha e mel. Roupa e sapato novos para os filhos também fazia parte
do enxoval. Embora a celebração fosse numa casa da família de meu pai senti
certo constrangimento pela intrusão naquele espaço pouco conhecido para nós.
O próximo lugar de
encontro desse evento, anos depois, eu já fazia parte da “comunidade urbana” de
Belém, adolescente, aluna de um colégio religioso, e a participação na
procissão se tornara um processo regular nos anos de convivência no internato
entre as colegas e as freiras. Aliás, em que pese o tom místico determinante de
nossa presença como caminhantes na procissão, para nós era realmente o momento
da liberdade, deixando as quatro paredes do internato e nos integrando àquele
povo todo que circulava conosco. Era uma grande festa de independência, pode-se
dizer. Suadas nos nossos uniformes de manga comprida, não sentíamos cansaço. Só
a alegria de olhar a cidade e observar os lugares desconhecidos. A geografia do
conhecimento dos espaços se tornava uma espécie de surpresa quando
conciliávamos o que diziam as colegas externas sobre esse ou aquele lugar e o
que constatávamos sobre a cidade de Belém naquele instante de festa religiosa.
Outros tempos, outros
encontros, outros Círios, outras descobertas, outras emoções. Casada, com
filhas, nova família e parentes colaterais, os costumes já repassadas de anos
de vivência e convivência entre a tradição, o ritual, a carreira acadêmica e as
áreas de conhecimento que têm me dado material de análise para avaliar essa
festa religiosa paraense percebi que há muitas outras versões sobre o Círio de
Nazaré. Do lugar onde nos encontramos à forma que sobre ele nos reconhecemos, a
situação da festa que se avoluma em estabelecer os vínculos com o religioso,
mas englobam novos processos. Nossos olhos encontram a diferenciação de classe
social nas normas da organização religiosa do evento que determinam quem vai
estar posicionado num espaço hierárquico da procissão, mas esta situação não
consegue deter o curso dos demais estratos que nem se importam com essa projeção
porque o estar no processo tem o significado afetivo que se faz constitutivo de
tantos quantos participantes estão ali convictos para oferecer sua ternura e o
preço de sua promessa, conscientes de que valeu a pena estar na casa do amigo,
do parente, nos encontrões da turba que vai e vem entre os “rios caudalosos de
gente”. É o “carnaval devoto”, na expressão de Dalcídio Jurandir, que deu a
Isidoro Alves a análise de sua versão como mais um encontro do Círio.
(Texto originalmente publicado em O Liberal (PA) de 09/10/2105 com outro título)
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