sexta-feira, 9 de outubro de 2015

ONDE ENCONTRAR O CÍRIO?

A Berlinda com a imagem da Virgem de Nazaré 

Nesta interrogação há muitas histórias. O verbo pode se transformar em conceito e se complexificar no que pretendo tratar sobre um evento cujos extremos – entre o que se considera sagrado e o que demonstra ser profano – em meio a vivências pessoais, memórias, práticas acadêmicas e as sinuosas hipóteses na extração de seu significado tendendo a evidenciar os muitos lugares em que o Círio possa estar.
A começar pelo termo originário – Círio – cujo verbete, na Enciclopédia Brasileira define-a da palavra latina cereus e apesar da dimensão da linguística mais conhecida – grande vela de cera – também reporta à rubrica religiosa – “procissão em que se leva, de uma localidade para outra, uma dessas velas”.
O que tratamos aqui sobre Círio está mais ligado à segunda dimensão por se constituir em duas posições – uma procissão que transporta uma imagem representando uma santa católica e as velas que iluminam os caminhos da passagem dessa procissão, tanto como registro de abrir espaços da caminhada quanto para reverenciar a imagem santa.
Na verdade, a recorrência histórica dessa festividade em Belém (PA), sobre o Círio de Nazaré tem sido bastante estudada, apresenta muitas versões, apreendendo-se de cada uma destas mais um capítulo de descobertas sobre esse evento, analisando-se a proximidade com outra festividade europeia. Com essas argumentações que aportam na história paraense vão sendo incorporadas ricas visões sobre fatos evidenciando pessoas ilustres e humildes devotos, objetos, valores, histórias simples e de guerra, costumes, novos atores entre os velhos da tradição e os novos da devoção.
Das teias de conhecimentos que procuram sustentar as análises de observações e dados coletados e sistematizados, o registro sobre o Círio percorre escritas as mais diversas. A História é então interpenetrada pela Antropologia que se abebera da Sociologia e adentra a Ciência Política não sem atravessar outras áreas de conhecimento como a Filosofia, a Geografia, o Turismo, a Economia, a Gastronomia, a Comunicação e outros roteiros acadêmicos que circulam como propulsores das pesquisas em torno desse fato social. Das teorias científicas aos procedimentos metodológicos cada eixo desses leva a várias formas de investigação onde categorias sociais se tornam os eixos fundantes das interpretações que ajudam a analisar desde a memória à indústria cultural, dos ritos aos mitos, da culinária à convivialidade familiar construindo-se laços de sociabilidade e marcando o processo identitário do povo paraense.
Na minha perspectiva reconheço alguns lugares em que posso encontrar o Círio. Primeiramente a memória da descoberta do que essa festa representava e das expectativas sobre ela enquanto moradora de uma cidade no interior do Estado. Alguns meses antes de outubro – o mês da festa - minha mãe projetava seu interesse em “passar o Círio em Belém”. Aquelas alturas nós já tínhamos parentes moradores nessa cidade e que nos dariam hospedagem. O desejo da celebração esbarrava, a maioria das vezes, no baixo lucro comercial do meu pai naquele ano. E os planos de minha mãe não se realizavam. O Círio nos encontrava, então, através do noticiário radiofônico onde a mesura católica de benzer-se à orientação ouvida no momento da procissão era registrada. Mas certa vez deu certo e viemos todos, entre cestos de patos, farinha e mel. Roupa e sapato novos para os filhos também fazia parte do enxoval. Embora a celebração fosse numa casa da família de meu pai senti certo constrangimento pela intrusão naquele espaço pouco conhecido para nós.
O próximo lugar de encontro desse evento, anos depois, eu já fazia parte da “comunidade urbana” de Belém, adolescente, aluna de um colégio religioso, e a participação na procissão se tornara um processo regular nos anos de convivência no internato entre as colegas e as freiras. Aliás, em que pese o tom místico determinante de nossa presença como caminhantes na procissão, para nós era realmente o momento da liberdade, deixando as quatro paredes do internato e nos integrando àquele povo todo que circulava conosco. Era uma grande festa de independência, pode-se dizer. Suadas nos nossos uniformes de manga comprida, não sentíamos cansaço. Só a alegria de olhar a cidade e observar os lugares desconhecidos. A geografia do conhecimento dos espaços se tornava uma espécie de surpresa quando conciliávamos o que diziam as colegas externas sobre esse ou aquele lugar e o que constatávamos sobre a cidade de Belém naquele instante de festa religiosa.
Outros tempos, outros encontros, outros Círios, outras descobertas, outras emoções. Casada, com filhas, nova família e parentes colaterais, os costumes já repassadas de anos de vivência e convivência entre a tradição, o ritual, a carreira acadêmica e as áreas de conhecimento que têm me dado material de análise para avaliar essa festa religiosa paraense percebi que há muitas outras versões sobre o Círio de Nazaré. Do lugar onde nos encontramos à forma que sobre ele nos reconhecemos, a situação da festa que se avoluma em estabelecer os vínculos com o religioso, mas englobam novos processos. Nossos olhos encontram a diferenciação de classe social nas normas da organização religiosa do evento que determinam quem vai estar posicionado num espaço hierárquico da procissão, mas esta situação não consegue deter o curso dos demais estratos que nem se importam com essa projeção porque o estar no processo tem o significado afetivo que se faz constitutivo de tantos quantos participantes estão ali convictos para oferecer sua ternura e o preço de sua promessa, conscientes de que valeu a pena estar na casa do amigo, do parente, nos encontrões da turba que vai e vem entre os “rios caudalosos de gente”. É o “carnaval devoto”, na expressão de Dalcídio Jurandir, que deu a Isidoro Alves a análise de sua versão como mais um encontro do Círio.

(Texto originalmente publicado em O Liberal (PA) de 09/10/2105 com outro título) 

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