Desde 1890, com o advento da Republica, o Brasil passou a ser um Estado
Laico, ou seja, a religião deixou de ditar normas legais (Const./1824). Foi
facil essa ruptura? Certamente não, mas a perspectiva de exclusões e discriminações
de cidadãos/ãs perdeu a força.
Com a
urbanização crescente e a secularização da cultura, na década de 1920, a influência
do catolicismo tradicional enfraqueceu consideravelmente, sendo criado no Rio
de Janeiro, pelo arcebisbo dom Sebastião Leme, um movimento em defesa aos
ideais cristãos objetivando inserir-se na política nacional. A revista “A
Ordem” (1921) e o Centro Dom Vital (1922) foram instituídos e dirigidos por Jackson de Figueiredo. Esse movimento teve maior expressão quando o intelectual
católico Alceu Amoroso Lima assumiu a direção, no final da década de 1920. Em
1932, objetivando e inserção na política, esse grupo católico, ainda sob a orientação
de Dom Leme, criou a Liga Eleitoral Católica – LEC, ampliando-se pelos estados,
estratégicamente defensora da “segurança da comunidade católica”. Sua atuação
consistia em supervisionar, selecionar e recomendar ao eleitorado católico os
cadidatos que poderiam ser votados.
Em 1964, uma passeata que se chamou “Marcha da Família com Deus
Pela Liberdade” levantou a bandeira contra o que era interpretado como a
expressão do “comunismo ateu”, valendo como uma espécie de “trailer” dos acontecimentos
de dias depois: o golpe militar ocasionando anos de ditadura.
Hoje se fala de uma manifestação pública contra casamento entre pares do
mesmo sexo, contra o aborto, e o mais que a religião condene (e no caso atual não
é apenas a religião católica, mas todas as religiões). Em
11 de abril de 2012, o Ministro Marco Aurélio Mello reiterou, em sessão do STF:
"Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”. Somos
além de um país laico um país democrático, como tal, a liberdade de expressão é
reconhecida. Mas em se tratando de religião, está havendo uma espécie de
“guerra santa” desde que um deputado-pastor foi guinado a um cargo que
orientaria decisões democráticas (presidência do Conselho dos Direitos Humanos
na CD) e agora se anuncia uma nova marcha (“com Deus e pela Liberdade”?) em que
verdadeiras caravanas serão patrocinadas para gritar pelos preceitos religiosos
que punem o que consideram “pecado”.
A idéia dos religiosos não é condenavel legalmente.
A democracia abre espaço para as expressões conflitantes. Mas uma coisa fere
outra, ou seja, a demonstração de força de idéias religiosas é orientada contra
quem pensa de forma diferente. Há quem queira proibir uma cantora de dizer em
público, antes de seu número em um espetaculo publico, que ama outra mulher. E
o pastor-politico continua aplaudindo, pode-se dizer, mortes de ídolos da música
popular, como John Lennon, os brasileiros Mamonas Assassinas, afirmando que
eles foram vitimas da ira divina. Se a sua versão pode ser ampliada nos
sistemas sonoros democráticos ela fere familiares e quem ame a esses musicos,
quem vê poesia nos versos de Lennon e quem vê na irreverencia dos Mamonas uma
forma de expressão que advoga a independência de idéias (ou seja, o sentido
democrático puro e simples).
As pessoas que de alguma forma foram guinadas a
cargos eletivos pelo povo têm obrigação de saber que povo não é só uma falange
de eleitores. Se assim fosse não haveria partido de oposição.
Quem for gritar contra a homofobia, contra as
mulheres que decidem sobre seu corpo, as etnias “diferentes” da branca (que o
“defensor dos direitos humanos” separou interpretando trechos biblicos como ‘castas
amaldiçoadas’) está indo contra o sistema que se lutou para conseguir: a
democracia. Não se deve tentar convencer quem pensa que o sistema heliocentrico
ou a Teoria de Darwin é “coisa de cientista maluco”. A fogueira queimou Giordano
Bruno e só não queimou Galileu porque este aquiesceu aos tiranos retirando
alguns de seus pensamentos para salvar a pele.
O chamado “homo sapiens” não se tem como o último
elo da criação, ou da evolução. Hoje a ciencia aposta mais além, num ser que
pode evoluir na inteligencia como pode, numa fatalidade que estarrece, regridir
aos ancestrais que matavam por se acharem donos da verdade. O recente atentado
em Boston (EUA) faz pensar numa forma de intolerancia que em nada condiz com um
progresso intelectual.
Nas palavras de uma figura que emergia na liderança
ancestral, como Jesus, dando lição aos que tentaram apedrejar a mulher infiel
de que “aquele sem pecado que atire a primeira pedra” há o objetivo de repelir
os intolerantes. Naquele momento, ninguém atirou. Esta lição é onipresente e
não podia ser de outra forma em se tratando do chamado Filho de Deus. Com essa
lembrança de que a violencia como forma de castigo ultrapassa os limites de um
julgamento está presente agora na condenação de tantos em nome de uma lei
distorcida, ou de uma interpretação pessoal de uma lei (que pode ser do ser
humano e/ou divina). E não se vá longe: alguns operadores da justiça
intérpretes da Lei Maria da Penha ainda não se conformam em aplicá-la, como o
juiz de Sete Lagoas que argumentou: "A
vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como
inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem
subjugado.”(...)
É triste pensar que no seculo XXI, com os humanos deixando
suas impressões além da Terra, chegando aos planetas vizinhos, ainda se veja
pessoas nessa luta insana e discriminatória socio-racial sem reconhecer os
principios da diversidade. Os artistas condenados pelos atuais puristas da
tradição cantaram, na época da repressão, que “é proibido proibir”. Ao que
consta, muitos não ouviram a música. A intolerancia é uma forma de surdez. E o
mais grave ainda: um meio de violência exacerbada.
(Texto originalmente publicado em O Liberal/PA, de 19/04/2013)
Luzia,
ResponderExcluirParabéns pelo lúcido, contemporâneo e necessário texto.
Comungo do teu pensamento.
Obrigada, Octávio Pessoa. Estamos nesse compromisso sempre.
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