sábado, 3 de março de 2012

A CULTURA DA FICHA LIMPA


         Lei brasileira originada de um projeto-lei de iniciativa popular reunindo cerca de dois milhões de assinaturas, a Ficha Limpa, foi aprovada por unanimidade em maio de 2010, na Câmara de Deputados e no Senado Federal, sancionada sem vetos pelo Presidente da República Lula da Silva, transformando-se na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Objetivou extirpar, do meio político, com proibição tácita às candidaturas de cidadãos/ãs ditos “políticos” (ou seja, exercendo cargos de representação política) que tivessem condenação em decisões colegiadas de segunda instância. Em sua síntese explicativa, o texto da lei é claro: “Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º do art.14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”. Os cerca de 26 artigos e demais parágrafos dessa lei apontam para todos os casos que serão exigidos a um cidadão ou cidadã interessado/a em incluir-se na polis saindo do demos, demonstrando valores como honestidade e probidade administrativa no exercício da coisa pública.
Desde as eleições de 2010, o povo brasileiro tem convivido com as discussões judiciais nas várias instâncias de tribunais sobre a validade de aplicação dessa lei, culminando, recentemente (23/02), com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que concluiu pela não aplicabilidade da Ficha Limpa naquelas eleições, liberando os candidatos ficha-suja que disputaram cargos e foram eleitos, barrados de assumir seus mandatos. Mas no pleito de 2012 esta lei terá validade.

Não pretendo discutir as nuances da constitucionalidade nas alegações dessas casas da justiça no Brasil (todas elas), mas, levantar uma questão que tem demonstrado, a partir dessas discussões tão presentes no informativo das mídias e das redes sociais em geral, o foro cultural do que representa para o povo brasileiro, não só o eleitorado, a lei da ficha limpa ou, seja, o expurgo de corruptos do meio político. Neste caso, é conveniente lembrar os argumentos de Raimundo Faoro, em “Os Donos do Poder” quando admite, em histórica pesquisa desde o período colonial brasileiro, as origens da corrupção e da burocracia partindo da colonização portuguesa que trouxe para o nosso país a estrutura patrimonialista de um estado absolutista. O que isto representa? Que a organização social se sustenta no patrimônio, ou seja, o conjunto de bens materiais e não materiais mantidos como valor de uso e de troca pertencente a uma pessoa, uma empresa que seja pública ou privada. Assim, “ao cargo patrimonial é desconhecida a divisão entre a “esfera privada” e a “oficial. A administração política é tratada pelo senhor como assunto puramente pessoal, bem como o patrimônio adquirido pelo tesouro senhorial em função de emolumentos e tributos não se diferencia dos bens privados do senhor”. (Silveira, Daniel Barile, s/d).
Com a ficha limpa, pleiteia-se a probidade administrativa que é uma prerrogativa desejada não apenas pelos responsáveis pela lei e ordem em nosso país. Recentemente casos de punições a figuras ilustres de outros governos têm ganhado espaço na mídia internacional. E os povos que hoje acessam meios de comunicação antes inexistentes passaram a exigir honestidade de seus governantes. No caso nacional prolifera uma cultura de crítica que espelha o interesse mesmo que seja revelado o critério subjetivo a lembrar Franz Kafka. Estima-se que, afinal, todos sejam isentos de processos.

A extensão da ”ficha limpa” para quase todos os setores da sociedade é o reflexo de uma síndrome de honestidade. Que esperamos ocorrer em todas as áreas da administração pública e privada. A investigação em torno da probidade de cada um não deixa de ser salutar posto que as pessoas passam a ter mais cuidado com o patrimônio alheio.
O que eu vejo como “cultura da ficha limpa” é o que está sendo dimensionado por vários segmentos sociais no Brasil para reprimir aqueles que fazem uso do dinheiro publico como se fosse o seu próprio e enriquecem com facilidade. A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou, por unanimidade, no dia 29/02, uma proposta “que aplica os critérios da Lei da Ficha Limpa a todas as futuras nomeações para cargos de confiança do Estado”. O presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, oficiou aos 27 dirigentes das Seccionais da entidade considerando a essa Lei às nomeações para cargos comissionados nos Executivos e Legislativos municipais e estaduais, além de secretários dessas instâncias e presidentes de entidades da administração autárquica e de fundações. A Articulação Brasileira contra a Corrupção e a Impunidade (Abracci), com o apoio do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), criou o site http://www.fichalimpa.org.br/  que se propõe a ser “um instrumento de controle social da Lei Ficha Limpa e uma ação de valorização do voto”, como garantia da vontade popular de fazer seu representante apenas candidatos probos.

Creio que nós estamos “passando a limpo” nossa própria idoneidade de pessoas honestas. O servidor público que leva de sua repartição grampos ou papel para impressão para uso próprio, acha que essa atitude não representa um ato de corrupção. Chegou o momento de nos conscientizarmos de que se a coisa pública integra a “minha bolsa” convém admitir a aplicação da ficha limpa também para nós mesmos.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal"/PA, em 02/03/2012) 

 

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