Viver um “normal” diferente é a voz corrente das pessoas neste 2020, com formas de ser, metas, objetivos articulados em novos formatos. O mesmo ocorreu com o Círio de Nazaré, em Belém (PA). Uma nova maneira de participar, para alguns, reflete a presença na processão que nunca deixou de ser e estar. Como abaetetubense, ainda criança, a cada ano meus pais expressavam vontade de “neste ano vamos pro Círio”. E passava o tempo e a viagem não se concretizava porque teria que ser “a família inteira”. Não havia televisão para admirar as imagens, mas o rádio nos dava as notícias. A voz que ouvíamos (PRC-5) dizia: muita gente, muitos carros de promessas, procissão interminável, fogos, mais fogos... E nós: aonde? Meus irmãos e eu não conhecíamos a cidade de Belém, só meu pai, comerciante, que vinha mensalmente fazer suas compras de produtos nos armazéns, para a revenda aos seus fregueses. E onde é esse lugar por onde a Santa passa? É no Porto do Sal... é na 15 de Agosto... é no Largo da Pólvora... é no Largo de em Nazaré... E por ai íamos acompanhando os relatos de dois ângulos: a narração do rádio e a do meu pai explicando os locais da passagem da Santa.
Em
1953 foi o tempo do meu “novo normal”: a viagem a Belém no motor da linha (o
“Pery”, de Carlos Paes), vislumbrar o ambiente da cidade, o cotidiano do
internato e, finalmente, conhecer e viver o Círio. Com as Irmãs Filhas de
Sant’Ana do Colégio Santa Rosa acompanhávamos a procissão, de uniforme de gala
ou o tradicional do diário. Nesse dia, as normas do internato eram totalmente desconsideradas
porque, cansadas, tínhamos direito a almoço diferente, à sesta, às brincadeiras
que quiséssemos, fuga para os esconderijos que descobríamos, enfim, o final do
dia do Círio era antológico para quem ficava no colégio sem ter parente na
cidade para passar esse dia.
Outro
“novo normal” de presença no Círio foi quando as minhas crianças já estavam no
ponto de acompanhar a procissão. Os preparos, os medos de nos perdermos uma das
outras, a sede, o sol, o cansaço estavam sempre no alerta dos outros, mas a
vontade de acompanhar era tanta que nada disso era empecilho para nós. Felizes,
cada momento parávamos e eu perguntava se queriam retornar para casa. Ninguém
queria.
Assistir a processão
passar era tradição, assim, não entra na história do “novo”. Salvo avaliarmos o
lugar de onde víamos a Nazica e seu cortejo magistral – a casa dos amigos Alexandrino
e Lourdes Moreira que já estão num outro plano de vida.
E
neste momento um “novo normal” quebra as estruturas da tradição de mais de 200
anos de caminhada na procissão do Círio e desloca o estar físico humano da
grande aglomeração do povo paraense para viver outras estratégias com vistas a
desmontar a não-presença no cortejo da Nazica, mas permanecer nela de outra
forma, por meio do ato de Fé. A pandemia desfez promessas, levou para outro
plano milhares de romeiros, afastou a maioria dos familiares do almoço
tradicional, induziu a desconfiança no sagrado, rejeitou planos e programas já
delineados. Mas, este Círio, fortaleceu o poder
do ser humano em si próprio, na estratégia de se manter vivo para saudar, ainda
uma vez, o “carnaval devoto” de Dalcídio Jurandir naquele emblema de fé que
carrega a força do povo paraense na reconfiguração dessa festa cultural, agora
num plano virtual. Este “novo normal” num momento tão grave para o povo
brasileiro reinventa um “novo Jesus” (se é possível dizer assim) aquele que
expulsa os vendilhões do Templo ao dizer: “Minha casa será chamada casa de
oração para todos os povos’? No entanto, vocês fizeram dela um covil de
ladrões.” As chicotadas de Jesus neste momento da homenagem à sua mãe Maria de
Nazaré está aí para quem se propuser a analisar as rupturas, neste tempo do
Círio, com um certo comércio que arrasta a fé para pensar valores
comercializados. Pensar a força interior e se despojar dessas quinquilharias de
uma cultura festiva tradicional, alavancou novos processo de análise sobre um
sistema capitalista dominante neste momento de luz interior. Pensemos nesse
“novo normal” que nos foi dado em função da dor, do sofrimento, da saudade, do
isolamento social (para alguns/as), mas acima de tudo, da consciência sobre a
reconfiguração desse suposto “sentimento religioso” empenhado em outros
ângulos, menos na fé, na esperança, no amor.
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