No final dos anos 80, eu pesquisava os jornais paraenses para extrair dados para um trabalho acadêmico sobre a questão da mulher & participação política. A tangência de temas diversos enriquecia a pesquisa e dava suporte para outras incursões no campo da construção da imagem feminina, no âmbito social. E foi por esta razão que me envolvi com os depoimentos sobre a presença do Olímpia na vida cultural paraense e também sobre os freqüentadores do grande cinema da cidade. Em 1997, quando esse cinema completou 85 anos, fiz da minha página “Foro Íntimo”, no caderno dominical Mulher de “O Liberal”, um espaço de lembranças de mulheres de três épocas, sobre o envolvimento delas com aquele cinema. Em seu artigo, a jornalista Regina Pesce lembrou as toilletes usadas pelas mulheres do seu tempo, nas matinês; Clemilde Correa Pinto de Castro considerou as roupas e os hábitos dos freqüentadores, da década de 50, enquanto Neuza Paiva de Castro deu um depoimento sobre os modos e as modas daquela época, ela que nasceu no mesmo ano em que era inaugurado o Olímpia.
Das versões extraídas da imprensa e dos depoimentos dos especatdores de diversas fases do tradicional cinema, escrevi um texto sobre essas imagens e os códigos femininos que permeavam o imaginário dessas pessoas, texto que transcrevo, agora, com algumas alterações.
EM TEMPO DE CRIAÇÃO
O ano de inauguração do Cine Olímpia – 1912 – prenuncia-se de crises, uma delas deflagrada em agosto: os conflitos que levaram à queda da oligarquia lemista. Era o cinema da elite e o lugar em que as mulheres “da alta” exibiam seus vestidos e jóias, enquanto as mais pobres ficavam no “sereno” para ver o desfile. Havia um modelo de mulher construído culturalmente nos estilhaços dos observados no século XIX. As pequeno-burguesas ainda se determinavam por suas heranças culturais de classe. Segundo revelam os depoimentos de algumas mulheres dessa época, a saída para o cinema se dava geralmente em companhia de alguma tia ou pessoa mais velha. Mulher casada não saía sem o marido, salvo quando o acompanhamento era de uma pessoa de muita responsabilidade. Mas certas transgressões aconteciam, como os encontros com o namorado “mal visto” pela família da jovem.
O depoimento do Dr. Adriano Guimarães (já falecido) revela uma parte desses hábitos:
“O cinema era muito freqüentado. Em especial a soiré das sextas-feiras, porque
era o dia das exibições dos vestidos das grandes “cocottes” de Belém. Elas eram
umas quatro ou cinco e disputavam entre si a apresentação do vestido. (...)
Ainda me lembro do nome de algumas: a Panchita, a Raito de Sol, eram espanholas;
a Maria José Pequena, a Margot, esta era francesa. Os “donos” delas mandavam
buscar os vestidos em Paris. Elas eram conhecidas assim: a “Panchita de fulano”,
a “Margot de sicrano”. Elas iam também de chapéu, como iam as senhoras,
ostentando as suas jóias, riquíssimas, que chamavam a atenção das famílias.(...)
À saída [do cinema] é que era interessante: elas chegavam sempre no intervalo do
cine-jornal. Quando este terminava, havia um intervalo de uns três a quatro
minutos. Elas sabiam. Então elas entravam. Era o desfile delas. Depois, quando
terminava a sessão, as famílias saiam e iam pro terraço do Grande Hotel para
tomar sorvete. Enquanto terminava a repetição do cine-jornal, elas saiam uma a
uma. Eram o comentário das famílias. Elas andavam sozinhas, nunca se
apresentavam com homem ao lado.(...) Geralmente esses grande “donos” dessas
“donas” não iam ao cinema. Eram industriais, comerciantes, proprietários... têm
descendentes ainda. (...)”
Às imagens femininas construídas por Adriano Guimarães somam-se às do homem feito para constituir família, apresentando um comportamento de dupla moral sexual: a do chefe de família e a do “dono das cocottes”(prostitutas da época). As mulheres também assumiam essa dupla moral: as feitas para o casamento, mantendo um compromisso ingênuo e as “cocottes”, mais ousadas. A distinção social entre as duas era de classe, embora estas últimas freqüentassem os mesmos espaços públicos das “madames”, usando vestidos de Paris, jóias caríssimas e chapéus, na mesma linha das “mulheres de família”. Esse detalhe, para Adriano, expressava um aspecto da não-discriminação social, embora se observe que as “cocottes” não sentassem no “terrace” do Grande Hotel como as outras.
Outro exemplo dos modelos femininos da época da inauguração do Olímpia vem através do poeta Rocha Moreira, que em 1921 criou o “Olympia Jornal”, veículo de divulgação da Empresa Teixeira, Martins & Cia., proprietária da casa. Em forma de tablóide, o jornalzinho geralmente expunha em crônicas leves, a importância do cinema enquanto lazer e o compromisso da empresa em trazer sempre novos e bons programas da “arte norte americana”. Procurava versejar usando termos elogiosos ao desempenho das atrizes principais dos filmes. Estes versos eram dedicados às freqüentadoras do cinema. Da leitura de um destes, percebe-se o modelo feminino na cabeça do poeta.
CINE JORNAL
Do Olympia, a freqüentadora
Que hoje, formosa se alegra,
Vamos ter a Pola Negri
Conjugando o verbo amar...
Faz-se a fita encantadora,
Há lances que são portentos
Pola Negri por momentos
Faz a gente delirar.
Pode a leitora formosa
Amar, sofrer, ter tristeza,
Empanar sua beleza
Com lágrimas de cristal;
Pode virgem dolorosa
Retratar o sofrimento
Mas, pesar do fingimento,
Pola Negri é sem igual.
De outra não sei que na fita
Seja mais terna e tão boa;
Muitas vezes é leoa,
Tem garras para ferir...
Guapa, soberba, bonita,
Faz-se às vezes delirante
E como soberba amante
Sabe torturar lenir.
Do Olímpia no fim lindo
Hoje, ela excelsa aparece;
Seu olhar lembra uma prece,
Pois é doce e encantador;
Há nele mistério infindo,
Distila a dor que apunhala,
Olhar magoado que fala
Dos sofrimentos do amor.
Amar os outros é fácil;
Não amar, ter amizade,
É acordar a saudade
De que deriva a paixão...
Pode ser a virgem grácil,
Ter encantos tentadores,
Mas por falar de amores
Precisa ter coração.
Leitoras, eu não garanto,
Mas Pola Negri, acredito,
Faz-se amando quase um mito,
Sabe amar como ninguém;
Vê-la banhada de pranto
È sentir que a dor existe,
Pois, ela saber ser triste,
E tristonha encantos tem.
Ora é volúvel e é bela
Nessa volubilidade;
Sabe ter a majestade
Que sempre um “astro” requer;
É sempre excelsa na tela;
Em cenas encantadoras;
Enfim, formosas leitoras,
Pola Negri é uma mulher.
Pola Negri, a atriz que interpretava a personagem central dos filmes em exibição, no Olympia, representa a imagem que Rocha Moreira extrai para sintetizar sua perspectiva sobre o feminino. Nesse perfil, se mesclam a meiguice tradicional e a ferocidade da luta pelos desejos realizados. Misto de beleza e charme, tristeza e alegria, bondade e maldade, amor e ódio, volubilidade e constância, expressam valores integrados nas atitudes da atriz, confirmados como parte integrante da imagem do feminino que o jornalista faz, como se vê na afirmação final: “Pola Negri é uma mulher”.
O salto no tempo – 1912 a 2011 - refaz imagens de mulher, de costumes, de valores da freqüentadora do Olímpia, nos seus 99 anos. Hoje o público feminino que freqüenta aquela casa não se dimensiona pelos limites impostos pela situação de classe, pois o elitismo perdeu força e os costumes tornaram-se democratizados. Não há “sereno” das mulheres pobres para ver as “mulheres da alta” chegarem em seus coches engalanados porque dificilmente as representantes femininas das duas classes principais freqüentam o cinema: as (do “sereno”) primeiras, oprimidas pela falta de tempo e pelo preço do ingresso e as segundas, porque criaram seus próprios “home theatres” e assistem o que bem entendem no tempo residual que acomodam entre outras tarefas sociais e de trabalho. Os dois tipos hoje transitam sem os grandes marcos diferenciais que apontavam para a carência de informações. Têm ao seu favor outras tecnologias que ajudam a dimensionar a falta de conhecimento. Das mulheres palestinas que se vêem afastadas da cultura globalizada, pela burka, às mulheres da floresta que sentem na pele os limites de seu processo de inclusão, pela falta de tempo e pelas condições objetivas em que vivem hoje (que ainda não privilegia a cultura), o imaginário feminino retratado pelo cinema criou variações e multiplicou as informações mostrando práticas que não arrolam o essencialismo de considerar Pola Negri “a mulher”, nem as “cocottes” as permissivas. O Olímpia do século XXI está aberto para receber “todas as mulheres do mundo” e continuar a divulgar a diversidade dos tipos como fazia há 99 anos. Os cegos é que não querem ver.
“O cinema era muito freqüentado. Em especial a soiré das sextas-feiras, porque
era o dia das exibições dos vestidos das grandes “cocottes” de Belém. Elas eram
umas quatro ou cinco e disputavam entre si a apresentação do vestido. (...)
Ainda me lembro do nome de algumas: a Panchita, a Raito de Sol, eram espanholas;
a Maria José Pequena, a Margot, esta era francesa. Os “donos” delas mandavam
buscar os vestidos em Paris. Elas eram conhecidas assim: a “Panchita de fulano”,
a “Margot de sicrano”. Elas iam também de chapéu, como iam as senhoras,
ostentando as suas jóias, riquíssimas, que chamavam a atenção das famílias.(...)
À saída [do cinema] é que era interessante: elas chegavam sempre no intervalo do
cine-jornal. Quando este terminava, havia um intervalo de uns três a quatro
minutos. Elas sabiam. Então elas entravam. Era o desfile delas. Depois, quando
terminava a sessão, as famílias saiam e iam pro terraço do Grande Hotel para
tomar sorvete. Enquanto terminava a repetição do cine-jornal, elas saiam uma a
uma. Eram o comentário das famílias. Elas andavam sozinhas, nunca se
apresentavam com homem ao lado.(...) Geralmente esses grande “donos” dessas
“donas” não iam ao cinema. Eram industriais, comerciantes, proprietários... têm
descendentes ainda. (...)”
Às imagens femininas construídas por Adriano Guimarães somam-se às do homem feito para constituir família, apresentando um comportamento de dupla moral sexual: a do chefe de família e a do “dono das cocottes”(prostitutas da época). As mulheres também assumiam essa dupla moral: as feitas para o casamento, mantendo um compromisso ingênuo e as “cocottes”, mais ousadas. A distinção social entre as duas era de classe, embora estas últimas freqüentassem os mesmos espaços públicos das “madames”, usando vestidos de Paris, jóias caríssimas e chapéus, na mesma linha das “mulheres de família”. Esse detalhe, para Adriano, expressava um aspecto da não-discriminação social, embora se observe que as “cocottes” não sentassem no “terrace” do Grande Hotel como as outras.
Outro exemplo dos modelos femininos da época da inauguração do Olímpia vem através do poeta Rocha Moreira, que em 1921 criou o “Olympia Jornal”, veículo de divulgação da Empresa Teixeira, Martins & Cia., proprietária da casa. Em forma de tablóide, o jornalzinho geralmente expunha em crônicas leves, a importância do cinema enquanto lazer e o compromisso da empresa em trazer sempre novos e bons programas da “arte norte americana”. Procurava versejar usando termos elogiosos ao desempenho das atrizes principais dos filmes. Estes versos eram dedicados às freqüentadoras do cinema. Da leitura de um destes, percebe-se o modelo feminino na cabeça do poeta.
CINE JORNAL
Do Olympia, a freqüentadora
Que hoje, formosa se alegra,
Vamos ter a Pola Negri
Conjugando o verbo amar...
Faz-se a fita encantadora,
Há lances que são portentos
Pola Negri por momentos
Faz a gente delirar.
Pode a leitora formosa
Amar, sofrer, ter tristeza,
Empanar sua beleza
Com lágrimas de cristal;
Pode virgem dolorosa
Retratar o sofrimento
Mas, pesar do fingimento,
Pola Negri é sem igual.
De outra não sei que na fita
Seja mais terna e tão boa;
Muitas vezes é leoa,
Tem garras para ferir...
Guapa, soberba, bonita,
Faz-se às vezes delirante
E como soberba amante
Sabe torturar lenir.
Do Olímpia no fim lindo
Hoje, ela excelsa aparece;
Seu olhar lembra uma prece,
Pois é doce e encantador;
Há nele mistério infindo,
Distila a dor que apunhala,
Olhar magoado que fala
Dos sofrimentos do amor.
Amar os outros é fácil;
Não amar, ter amizade,
É acordar a saudade
De que deriva a paixão...
Pode ser a virgem grácil,
Ter encantos tentadores,
Mas por falar de amores
Precisa ter coração.
Leitoras, eu não garanto,
Mas Pola Negri, acredito,
Faz-se amando quase um mito,
Sabe amar como ninguém;
Vê-la banhada de pranto
È sentir que a dor existe,
Pois, ela saber ser triste,
E tristonha encantos tem.
Ora é volúvel e é bela
Nessa volubilidade;
Sabe ter a majestade
Que sempre um “astro” requer;
É sempre excelsa na tela;
Em cenas encantadoras;
Enfim, formosas leitoras,
Pola Negri é uma mulher.
Pola Negri, a atriz que interpretava a personagem central dos filmes em exibição, no Olympia, representa a imagem que Rocha Moreira extrai para sintetizar sua perspectiva sobre o feminino. Nesse perfil, se mesclam a meiguice tradicional e a ferocidade da luta pelos desejos realizados. Misto de beleza e charme, tristeza e alegria, bondade e maldade, amor e ódio, volubilidade e constância, expressam valores integrados nas atitudes da atriz, confirmados como parte integrante da imagem do feminino que o jornalista faz, como se vê na afirmação final: “Pola Negri é uma mulher”.
O salto no tempo – 1912 a 2011 - refaz imagens de mulher, de costumes, de valores da freqüentadora do Olímpia, nos seus 99 anos. Hoje o público feminino que freqüenta aquela casa não se dimensiona pelos limites impostos pela situação de classe, pois o elitismo perdeu força e os costumes tornaram-se democratizados. Não há “sereno” das mulheres pobres para ver as “mulheres da alta” chegarem em seus coches engalanados porque dificilmente as representantes femininas das duas classes principais freqüentam o cinema: as (do “sereno”) primeiras, oprimidas pela falta de tempo e pelo preço do ingresso e as segundas, porque criaram seus próprios “home theatres” e assistem o que bem entendem no tempo residual que acomodam entre outras tarefas sociais e de trabalho. Os dois tipos hoje transitam sem os grandes marcos diferenciais que apontavam para a carência de informações. Têm ao seu favor outras tecnologias que ajudam a dimensionar a falta de conhecimento. Das mulheres palestinas que se vêem afastadas da cultura globalizada, pela burka, às mulheres da floresta que sentem na pele os limites de seu processo de inclusão, pela falta de tempo e pelas condições objetivas em que vivem hoje (que ainda não privilegia a cultura), o imaginário feminino retratado pelo cinema criou variações e multiplicou as informações mostrando práticas que não arrolam o essencialismo de considerar Pola Negri “a mulher”, nem as “cocottes” as permissivas. O Olímpia do século XXI está aberto para receber “todas as mulheres do mundo” e continuar a divulgar a diversidade dos tipos como fazia há 99 anos. Os cegos é que não querem ver.