Em junho do 2007, com o discurso intitulado:
“Alberto Rangel E As Cartas De Amor Imperiais” assumi a Cadeira nº 1 do
Instituto Histórico e Geográfico do Pará -IHGP, cujo patrono é Rangel. Na
avaliação preliminar sobre as obras escritas pelo autor, havia o mais conhecido
e considerado muito importante no seu percurso de escritor – “Inferno Verde” Cenas
e cenários do Amazonas”, de 1908, com o Prefácio escrito pelo seu grande amigo
Euclides da Cunha. Contudo, devido meus estudos sobre a questão da mulher e as
relações de gênero, optei pela leitura e análise de duas obras históricas desse
autor, em edições diferentes- “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de
cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares), de 1916,
Livraria Francisco Alves; e a terceira Edição, de 1969, da Editora Brasiliense,
com base na 1ª Edição). Outra edição lida e analisada foi “Cartas de Pedro I
à Marquesa de Santos”, edição de 1984, da Ed. Nova Fronteira (organizada
por autor anônimo e publicada pela Tipografia Morais em 1896).
Dessas
leituras escrevi minha saudação de entrada no Silogeu paraense, assumindo a Cadeira
nº 1, cujo patrono é Alberto Rangel.
Neste
blog, publico o texto integral apresentado aos Consócios do IHGP.
ALBERTO RANGEL E AS CARTAS DE AMOR IMPERIAIS
“Não se absolvam os amantes de São Cristóvão, quando se pode
recorrer até à humanizações do Evangelho para indultar os que muito amaram.”
Alberto Rangel
(1871- 1945)
Sumário
Introdução
1. Um “olhar” sobre os outros: o fundador da cadeira e o seu último ocupante.
2.
Os “ossos do ofício”: escavacando a trajetória de Alberto Rangel
3.
Os acessos negados e as permissões do autor
4.
O amor, a História e três paixões
a) a estrutura
das obras; b) como se esboça o amor de Rangel pela História (o ofício do
historiador, a procura das fontes, o confronto entre documentos, o que dizem
esses documentos); c) como ele esboça as “histórias ordinárias” dos dois
amantes imperiais
5.
Uma conclusão possível : As cláusulas de “Rosebud”
Introdução
Não foi fácil chegar ao patrono. As primeiras informações sobre Alberto Rangel, patrono da cadeira no 1 desta casa (IHGP), tinham uma direção clássica: ele fora o autor da expressão “inferno verde” para designar a Amazônia, transformando essa representação em um trabalho consubstancial além desse novo conceito. Deste detalhe, chegar ao “caminho das pedras” não seria tão difícil, pois o acervo bibliográfico sobre a região Amazônica possivelmente incluiria um exemplar do livro de Rangel. Antes, preferi inventariar sua obra. Em meio ao acervo composto de romances, ficção, história, discursos e conferências, produzidos e publicados por ele, encontrei um exemplar que me chamou a atenção pela linha de meus estudos sobre a questão da mulher e as relações de gênero: “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros documentos públicos e particulares). O olhar em detalhes sobre o volume à disposição na condição de “obra rara”, no único lugar onde este foi encontrado (dos inúmeros que foram visitados) – a Biblioteca “Arthur Vianna” (CENTUR) – só me permitia a consulta. Na primeira “folheada”, para a confirmação da proximidade entre Rangel e minha temática preferida, as páginas ainda fechadas do livro deixaram nas minhas mãos resíduos do tempo, fragmentos de papel amarelado. Sem traças, exalando o cheiro do mofo, o velho volume traduzia uma condição com a qual o pesquisador se defronta diariamente com suas fontes. O que fazer para garantir o manuseio e a permanência deste documento para novas consultas?
Considerada
a conjunção entre a minha tarefa – produzir um texto sobre o patrono – e meu
prazer – gostar do tema da pesquisa, incluindo-o entre os de minha preferência
– foi possível fazer a escolha dessa obra para ser tratada, e da questão a ser
problematizada. Configurou-se uma outra situação: das mais de 600 páginas do
livro – entre narrativa, fotografias e apensos – só me era possível ler, com
mais profundidade, umas 40 páginas, diariamente. Falta de tempo, outras
atividades, as condições gerais do lugar e tudo o que se expressa como
impugnações à elaboração de um trabalho com limites para o seu término – o dia
da posse – fizeram-me dividir com outras pessoas a pesquisa. Eunice Santos
responsabilizou-se pela avaliação do estilo e a elaboração de uma síntese da
“obra rara”, enquanto Matilde Cabeça seria a escrevente dos apensos (cerca de
200 páginas). A estas duas amigas eu devo o meu apreço carinhoso.
Novas
descobertas estavam a caminho. Quando a situação ainda
se encontrava crítica, encontrei, no acervo de diversos de Pedro Veriano, um
exemplar das “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”(1984), assinado
por Emanuel Araújo. O manuseio das 633 páginas identificou a análise em notas
de Alberto Rangel. Já nos estertores da busca por fatos históricos sobre o
império no Brasil, a professora Maria de Nazaré Sarges descobriu, em sua
biblioteca, um exemplar da “obra rara” dando-me por empréstimo. Com isso foi
possível desenhar os amores entre duas pessoas num tempo político e conturbado
da história do Brasil, através da ótica do patrono.
Dividi
este texto em cinco partes. Na primeira - Um “olhar” sobre os
outros - quem foi o fundador da cadeira e o seu último ocupante – trato de
Aylton Quintiliano e Antonio Vizeu; na segunda – “Os “ossos do ofício”:
escavacando a trajetória de Alberto Rangel” - registro parte da biografia do
patrono; no terceiro item – “Os acessos negados e as permissões do autor” -
identifico alguns problemas em manusear as obras raras, que negam acesso ao
público e considero a função do pesquisador ao escavacar os documentos e chegar
à permissão do autor, isto é, ler suas obras e socializar suas informações; no
quarto item – “O amor, a História e três paixões”- analiso a obra de Rangel,
seu amor à História, às histórias e o seu debruçar sobre as paixões de D. Pedro
I e D. Domitila de Castro contido por sentimento apaixonado pelo ofício de
historiador, pela história privada e amorosa dos dois amantes. Para a
conclusão, fiz uma referência ao cinema (uma das minhas áreas), considerando
“as cláusulas de “Rosebud”. Esse item ficará, em princípio, sem explicações.
1. Um “olhar” sobre os outros: o fundador da cadeira e o seu último ocupante
Na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Pará , vol. XV, 1968, pág. 60, há transcrição da ata de posse de
Quintiliano (de 26/01/1968) e a síntese de seu discurso de improviso segundo
ele porque não queria tomar muito tempo dos presentes e dele próprio, pois o
“dever o esperava na “Folha do Norte”. Explorou a dimensão cosmopolita do
patrono que sem ser da região teria traduzido seu amor pela Amazônia, através
de seu livro “Inferno Verde” que “é o retrato do mundo amazônico, é a crueza, o
mistério e o terrível na selva cheia de contrastes” [1].
O último item desta ata, nas
“observações”, há o seguinte registro: “O consócio Aylton Quintiliano,
empossado nesta sessão, faleceu dia 13 de abril de 1968 em conseqüência
de um desastre automobilístico[2].”
Foi
nessa mesma revista que encontrei – nas páginas que contêm os elementos
pré-textuais do periódico – a referência a Antonio Vizeu da Costa Lima, como o
posterior ocupante. Embora tenha levantado os dados relativos a todas as revistas
do IHGP existentes na Biblioteca Arthur Vianna, não encontrei registros da
posse de Antonio Vizeu. Também não localizei qualquer outro material relativo à
presença dele nesse instituto. Vali-me do acervo de seus familiares para compor
esse registro.
Em
meio às descobertas do “cantinho do Vizeu”, sua viúva Célia procurou
introduzir-me num “tempo foi” do velho professor. Da fixidez de um currículo
escrito com os dados de uma vida dedicada à Universidade Federal do Pará,
fizemos uma bela manhã de lembranças, onde as lágrimas de saudade pelo velho
companheiro não pouparam os olhos da apaixonada Célia. Aos poucos fui
descobrindo um farto material de consulta que possibilitou delinear um perfil
mais do educador e de sua presença para além do meio amazônico. Antonio Vizeu
da Costa Lima, nascido em 1o de novembro de 1925 e falecido em 1992,
tinha ascendência portuguesa. Casado com d. Célia Vizeu teve cinco filhos. Sua
formação elementar e complementar foi feita entre o Colégio do Carmo e o CEPC
(Colégio Estadual Paes de Carvalho). O curso superior de bacharel em Direito e
de Geografia foi realizado na UFPA. Das inúmeras especializações, destacam-se
as que cursou em todas as áreas da Geografia e da Educação, tornando-se
professor titular da cadeira de Geografia Econômica tanto na UFPA quanto no
CESEP. Destacou-se nas funções da Administração Superior da UFPA, sendo Diretor
do CFCH, Pró-Reitor de Ensino, de Administração e de Extensão em vários
períodos.
Os
cargos são muitos, no currículo de Antonio Vizeu. Difícil enumerá-los nesta oportunidade. Chamo
a atenção para a sua produção científica – obra que está necessitando de ser
coligida para publicação, pois traçará um perfil da época em que a preeminência
dos assuntos ainda era para a Educação. E também servirá para as gerações futuras
reconhecerem, na obra deste consócio, uma parte da História que teima em não
ser escrita.
Com
trabalhos elaborados para os inúmeros congressos de Geografia e de Educação que
ele organizava e criava o intercâmbio inter-regional, nacional e internacional,
chamo a atenção para quatro, visando a exemplificar sua produção: “Estudos da
emigração portuguesa”, 1o Volume do “Livro de Homenagem a Orlando
Ribeiro”, mestre da geografia portuguesa, publicado pelo Centro de Estudos
Geográficos de Lisboa, em 1984 (onde escrevem geógrafos do mundo todo), em que
o autor discorre sobre a expansão portuguesa no mundo, delineando quadros da
emigração continental legal e/ou clandestina em alguns períodos recentes, entre
um movimento legal e também clandestino. O trabalho “Complexos Interescolares e
Intercomplementaridade no Ensino da Amazônia” foi publicado nos anais do II
Encontro de Educadores da Amazônia, defendido em forma de tese; “Um Plano
Educacional para a Amazônia Brasileira” elaborado para o Encontro Interamericano
de Educação Católica no México; e “A História da Educação Brasileira e o
Momento Atual”, palestra proferida na Assembléia Legislativa do Estado do Pará.
No
currículo de Antonio Vizeu, não consta a particularidade que nos aproximou: a
assinatura do convênio entre o Centro de Estudos Cinematográficos e o Cine
Clube da APPC, para a efetivação regular das exibições cinematográficas no
auditório do teatro “Martins Penna”. O respeito com que Antonio Vizeu tratava
este convênio e, , consequentemente, o cinema, entre as atividades de extensão
da UFPA, perdeu-se no tempo. Nesta lembrança, registro seu esforço em não tratar
como “sobremesa” as exibições cinematográficas – como bem disse Benedito Nunes
– mas como um lauto banquete.
Se
houve/ não houve a posse solene ou o elogio ao patrono, vale o que foi
produzido por Antonio Vizeu e que seus pares consideraram, ao propô-lo consócio
do IHGP (carta de 19/08/1968) e membro da Comissão de Geografia e Etnografia
deste Instituto (Of. 20/04/1978).
2. Os “ossos do ofício”: escavacando a trajetória historiográfica de Alberto Rangel
Não se trata de uma biografia no sentido que tem este termo – história da vida de uma pessoa – mas de um desenho traçado a partir de outras versões sobre o patrono[3], com base em suas obras publicadas.
Alberto
Rangel nasceu em Recife (29 de maio de 1871),
fazendo seus estudos primários nessa cidade e depois se transferindo para Itu,
São Paulo, e em seguida para o Rio de Janeiro, cursando aí a escola Militar da
Praia Vermelha, graduando-se como engenheiro militar na arma de Artilharia.
Auxiliar do Presidente Marechal Floriano Peixoto lutou contra os rebeldes ao
lado do governo. Desligou-se do Exército por ter sido ferido duas vezes,
publicando, em 1900, um panfleto com o título “Fora de Forma”, narrando os motivos
deste gesto. Em 1889, viajou para o Estado do Amazonas ocupando o cargo de
Diretor do Departamento de Terras e Colonização, sendo, posteriormente,
Secretário Geral do Estado. Nesse cargo, foi o “primeiro a denunciar a invasão
de aventureiros ingleses à Amazônia, no roubo de seringueiras, mais tarde
levadas para a Índia. Tal atitude lhe valeu um encontro com o Presidente
Affonso Pena”.[4]
Em Manaus, escreveu “Inferno Verde”, em 1904, período em que se achava
residindo na Vila Glicínia, tendo como companheiros Firmo Dutra e Euclides da
Cunha – este foi o prefaciador, do livro, com observações em carta, feitas
sobre o livro.
Em missão do governo brasileiro, ao
ingressar na diplomacia, fez pesquisas nos arquivos da França colhendo dados
que aproveitou em seus livros históricos. Observador dos fatos da 1a
Guerra Mundial registrou suas impressões no livro “Quinzenas de Campo e
Guerra”. De suas pesquisas nos arquivos de países estrangeiros, de sua conduta
de amante da pesquisa histórica, de sua argúcia em inquirir as fontes e criar
uma freqüente interlocução com os fatos já narrados pela história regional,
procurando recompor imagens destruídas por equívocos interpretativos, tornou-se
“um dos mais profundos conhecedores do Brasil colonial, imperial e republicano
(...)” deixando “quadros típicos de nossas melhores e mais puras tradições”[5].
No
inventário de suas obras destacam-se:
1. “Inferno Verde” – 1908;
2. “Sombras N’Água” – 1913;
3. Quinzena de campo e Guerra – 1915;
4. “Dom Pedro I e a Marquesa de
Santos”- 1916;
5. “Quando o Brasil Amanhecia”- 1919;
6. “Livro de Figuras” – 1921 -
“pinta”, através de uma narrativa aguda, alguns vultos nacionais;
7. “Lume e Cinza” – 1924;
8. “Textos e Pretextos” – 1927;
9. “Papéis Pintados” – 1928;
10. “Fura Mundo!” – 1930;
11. “Gastão D’Orleans (Conde D’Eu)” – 1934;
12. “Rumos e Perspectivas” – 1934;
13. “No Rolar do Tempo (Opiniões e
testemunhos respingados)” – 1937 – (UFPA);
14. “Educação do Príncipe” (Pedro II) –
1938;
15. “Heliogravuras” – 1939;
Nas referências de Sebastião Campos Braga, responsável pela 3a edição de “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”, um dos exemplares em que centrei minha pesquisa, há registro de quatro obras inéditas de Rangel :
1. “Cenas de Ensaio” (teatro) – 1940;
2. “Os Dois Ingleses” – 1941[6];
3. “Cunhambebe” – 1943 – (incluindo o
panfleto “Fora de Forma”, de 1900);
4. “Águas Revessas” (memórias) – 1944.
Desse rol de obras escritas pelo
patrono e dos resumos sobre o seu conteúdo, pude avaliar, de forma
circunstancial, sua paixão pela História, pela narrativa impressionista, sua
depurada forma de esmiuçar a leitura das fontes e confrontar com o “já dito” na
literatura regional, extraindo daí novas versões sobre a história das gentes, a
geografia das coisas, a textura da vida diante do passado e a informação a ser
presença no futuro. Sua instigante compreensão do período colonial brasileiro
pode ser encontrada em “Quando o Brasil Amanhecia” ou em ‘Fura Mundo” (neste,
ele visita a São Paulo colonial); em “Gastão D’Orleans”, cria um perfil alentado
do último Conde D’Eu, justiçando, de forma magnânima, o herói da guerra do
Paraguai; em “Livro de Figuras” “pinta”, através de uma narrativa aguda, alguns
vultos nacionais; em “Lume e Cinzas” e em “Textos e Pretextos” perscruta o
passado interpretando os documentos esmiuçados nos arquivos e faz uma nova análise
sobre o que já foi escrito em torno dos fatos e coisas brasileiras. A ficção
sobre a Amazônia, “essa mata qual arame retorcido e exalando miasmas” ele
“descobre” em “Inferno Verde”, de cuja profundidade de argumentos
expressionistas leva Euclides da Cunha, em carta de dezembro de
Nas memórias de uma vida dedicada à
pesquisa e à escrita analítica dos fatos, Alberto Rangel inclina-se a mexer em
“Águas Revessas”, seu último livro, escrito em 1944, dando o “toque final” às
suas confidências a respeito da luta de um intelectual brasileiro que ama a sua
terra e sente-se inconformado com as mazelas constatadas. O sentido contrário
que toma a corrente, distanciando-se da corrente normal (revessa) não escapa de
sua simbologia terminológica, nesta obra memorialista de autor.
O encontro marcado com a morte foi
3. Os acessos negados e as permissões do autor
Uma das situações que vivencia o/a pesquisador/a é a identificação de suas fontes e o meio de chegar aos documentos. Nem sempre os acessos são fáceis. Às vezes esses documentos assumem a categoria de “obras raras”. Nessa condição, tornam-se ainda mais inaccessíveis, pois o serviço dos arquivos tem uma responsabilidade a cumprir: resguardar do manuseio a raridade, garantindo a existência do documento para acesso privilegiado.
A condição de “obra rara” da literatura
escrita por Alberto Rangel mantém o público afastado desse acervo histórico.
Conseqüentemente, limita-se o reconhecimento do valor e da importância de suas
análises, numa fase da história brasileira que tem sido extraída de poucos historiadores
clássicos, alguns com certo ranço cultural nos comentários. Deste modo, muitas
informações, que poderiam somar-se às já existentes, deixam de ser incorporadas
à versão clássica dos fatos histórico-políticos, omitindo o papel que tiveram
outras figuras na construção da política brasileira, e que ficam perdidas no
meio de análises pobres e inconsistentes.
O que precisam os responsáveis pelos
arquivos é garantir que os documentos históricos possam ser manuseados pelo
pesquisador que recupera, da raridade, uma obra desconhecida, tornando-se o
mediador entre o público e o autor. Esta nova condição cria um compromisso do
pesquisador com o autor e com o público que é a socialização das informações e
a publicização de suas análises para o reconhecimento de sua obra. O que fazer
para que esses “acessos” deixem de ser negados e permitam a novos autores
transformarem-se em atores do processo histórico, perdendo o anonimato e
revelando o ineditismo de suas análises, é o que os pesquisadores devem começar
a discutir. E este Instituto está promovendo essa possibilidade ao retomar uma
velha prática entre os consócios, conforme pode ser constatado no manuseio das
publicações da entidade.
“Eu
sou imperador, mas não me ensoberbeço com isso, pois sei que sou um homem como
os demais, sujeito a vícios e a virtudes como todos o são.”
(
De Pedro I à Marquesa de Santos. Carta de 4 de maio de 1824)
A
obra “D. Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de
outros documentos públicos e particulares), de Alberto Rangel teve uma primeira
edição publicada em 1916, pela Livraria Francisco Alves e outra em 1928, ambas
impressas em Tours (França). A terceira edição é de 1969, da Editora
Brasiliense (prefaciada em 1967), tendo sido baseada na 1a edição,
hoje pouco encontrada e/ ou encontrada somente em bibliotecas ou museus. Tomei
como base tanto a primeira edição, quanto a terceira[7]. Outra fonte de análise foi “Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”,
edição de 1984, da Ed. Nova Fronteira[8]. O coordenador editorial deste
último livro, Emanuel Araújo, ao definir os critérios da edição (processo de
atualização da grafia e outras alterações nos textos das cartas de D. Pedro I),
faz duas referências importantes: a) um conjunto de cartas de D. Pedro I a
Domitila de Castro foi organizada por autor anônimo e publicada pela Tipografia
Morais em 1896; b) Alberto Rangel, em sua época, fizera a compilação exaustiva
das cartas dos dois amantes imperiais acrescendo a obra de comentários, mas
faleceu sem ter publicado o trabalho, sendo que seus originais foram adquiridos
pelo Arquivo Nacional em 1970, recebendo tratamento especial para não ferir a
autoria originária, embora a este fossem acrescidas mais outras cartas; ao
critério de Rangel “de não reproduzir as inconveniências desses originais,
...poupada a reprodução sobeja das chordas ressumações aduzidas nesse carteio
familiar”, não foram concordes os editores e seguiram a decisão do organizador
de 1896 que publicou as cartas sob “a mais rigorosa fidelidade sem Cortes de
pudica censura e sem folhas de parreira que falseiem ou velem a verdade”. Este
livro contém: 98 cartas datadas, escritas entre os anos de 1822 e 1829; 33 não
datadas; e 23 que foram acrescentadas sem comentários, portanto, de Alberto
Rangel.
A
diferença entre os dois livros está na estrutura narrativa. Em “D.
Pedro I e a Marquesa de Santos (À vista de cartas íntimas e de outros
documentos públicos e particulares) a estrutura dos 15 capítulos mantém um
estilo de crônica histórica e biográfica, com narrador na 3a pessoa,
num tempo linear embora dialogando com os fatos históricos e com as nuances da
vida pessoal de D. Pedro I e da Marquesa de Santos. Paralelamente, cria
interlocução entre as várias histórias, explora a historiografia existente
sobre os fatos narrados e apõe outros documentos para serem analisados e
repensados pelo leitor. Os capítulos intitulam o assunto desenvolvido, desde a
construção do perfil do Imperador e de D. Domitila (As Imagens) aos costumes da
época (A Cultura e os Dotes, Casos e Traços, O Capítulo Ternura, A Matrona, Os
Favores e a Política), explorando o momento do encontro entre os dois, as
origens familiares da Marquesa, a sua condição de “teúda e manteúda”, as
dimensões políticas da presença íntima da amada e sua condição de matrona,
sempre chamando para cada caso os efeitos nacionais e internacionais dessa
história particular. As cartas subjazem na esfera narrativa, sendo o meio de
onde é extraído o subsídio do livro. Partes fragmentadas desses documentos
servem de testemunhos para a impressão analítica.
Em
“Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos”, estão publicadas 154
cartas. Rangel vê esses documentos como “uma literatura de pouca culminância e
toda de ocasião” porque ela só “vale e representa para os que as escreveram ou
receberam”[9]. Mas reconhece a importância histórica
que as acompanha. À vista disso, a narrativa do autor analisa, em forma de
nótulas, cada carta escrita pelo Imperador à sua amada, desenvolvendo, a partir
das referências que este faz a nomes, assuntos, termos específicos e
particulares ou a própria assinatura, uma História paralela, seja da situação
amorosa entre os dois, seja da situação política luso-brasileira passada, ou
daquele momento quando a independência transita como o “novo” no processo de
poder político, mas que ainda é motivo de dúvida entre os brasileiros e a Corte.
Há também, a partir dessas nótulas, a construção de uma genealogia familiar dos
dois personagens centrais e o perfil de um “homem” convivendo num cotidiano da
“vida ordinária” onde se expressa enquanto marido, amante e pai carinhoso. Os termos
usados por D. Pedro, para acarinhar a amada, também são repassados pelo olho
observador de Rangel, que nessa condição assume múltiplos papéis, quer seja
enquanto historiador (o peso maior das observações e comentários, enfim, de toda
narrativa fragmentada), enquanto psicólogo (das relações de gênero e da
situação política nacional, internacional e pessoal criadas por essas relações)
e enquanto um crítico (de uma certa História) que procura esclarecer o tom
escabroso do acontecimento, na versão de outros historiadores e de uma
literatura que omitira os fatos. Apresenta então outros documentos que rompem
com as nebulosidades do “dito” e do “não dito”.
Apresenta
também o perfil de “mulheres”: de Domitila, de D. Leopoldina, e /ou de qualquer
outra figura que seja/esteja integrada ao percurso amoroso e político do fato
histórico e/ ou que sirva para desmontar alguma farsa de historiadores
malversados na sua ciência que ousaram mexericar sobre a concubina.
Agora
me reporto à época e aos fatos que são o cenário desta narrativa, para situar a
engenharia do historiador Alberto Rangel e sua preocupação com as duas
dimensões da História (a da ciência e a particular dos personagens).
Os
trezentos anos de colônia portuguesa fizeram, do Brasil, um espaço disponível para
que as Cortes de Portugal, num quadro das relações internacionais em conflito,
considerassem satisfatório, para amenizar a situação, a instalação do governo
real na Colônia portuguesa. A vinda da família real para o Brasil, desde 1808,
deslocou o eixo da vida administrativa da Colônia para o Rio de Janeiro e
esboçou aí uma vida cultural intensa, mudando a fisionomia da cidade. Mas essa
transferência da Coroa, que não deixou de ser portuguesa e nem de proporcionar
as benesses aos interesses portugueses no Brasil, gerou descontentamentos,
desde o acréscimo dos impostos nos bolsos da população, às desigualdades
regionais. Não estava tão distante da elite brasileira o facho iluminista do
liberalismo político, sendo este também um capítulo surpreendente nos levantes
que se deram no território então luso-brasileiro. Nem a elevação da Colônia à
condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, por D. João, em dezembro de
1815, foi propícia para garantir a mudança de tratamento aos brasileiros, visto
que sua condição de dependente às Cortes continuava a mesma. Sagrado Rei de
Portugal, do Brasil e Algarves, após a morte da rainha, D. João VI retornou à
sua terra em abril de 1821, deixando em seu lugar, como príncipe regente, seu
filho D. Pedro. Mas as medidas tomadas pelas Cortes de transferir as principais
repartições para Lisboa provocaram atrito entre a elite política brasileira que
exigia melhor tratamento. A determinação da volta do príncipe regente para
Portugal, alimentou ainda mais a desídia e obrigou D. Pedro a optar pela
permanência no Brasil, constituindo-se como o Primeiro Imperador, em abril de
1822. Os atos de ruptura entre a Corte e a antiga Colônia desmontaram a
fidelidade a Portugal. A formação de um novo ministério e a criação de um
exército brasileiro operavam como fontes expressivas dessa desmontagem.
Entretanto, despachos de Lisboa revogando ordens do príncipe regente apressaram
os acontecimentos e deram vitalidade a uma ruptura mais formal através da
proclamação da independência.
É
nos anos de sedimentação desse rompimento definitivo e do intento em
estabelecer uma política brasileira sem o facho de submissão real
(Império-Independência) -
Os
amantes de São Cristóvão, como usualmente eram referidos D. Pedro e D. Domitila
de Castro, conheceram-se em agosto de 1822 quando o príncipe regente
inspecionava São Paulo, cujo povo exigia uma mudança de comportamento do Coronel
Martim Francisco Ribeiro de Andrada que estava praticando arbitrariedades.
Chegara ali estacando na colina Na Sa da Penha, em 21 de
agosto, com um secretário, dois criados, mais o cadete Francisco de Castro
Canto e Melo (irmão de Domitila) e Francisco Gomes da Silva, o Chalaça. Diz
Rangel: “Para uns, D. Pedro teria chegado assim ao largo de São Francisco e
circunvizinhanças, encontrando-se nessa ocasião com a última filha do coronel
João de Castro; para outros, essa visita do lamecha e papa-léguas principesco se
dera no ermo da várzea do Carmo, antes da cidade e de suas indiscrições, na
herdade do Ferrão (....).
Outras
versões desse encontro extrai Rangel de dois testemunhos: o do irmão de
Domitila, o cadete Francisco Castro Canto,
e de uma carta de D. Pedro à amada, de 27 de dezembro de 1825, na qual
este diz: “No dia em que fazia três anos que eu comecei a fazer amizade com
mecê assino o tratado do nosso reconhecimento com o Império”.(...). Sobre
essa declaração Rangel analisa nas nótulas: “Foi, portanto, a 29 de agosto
de 1822 que começaram as relações íntimas de dom Pedro com dona Domitila. Em
carta de 31 de agosto de 1828, dom Pedro reassinalara essa data que
naturalmente lhe seria inesquecível. Em carta sem data volta dom Pedro a
lembrá-la.”[10]
Se
todos reconheciam
“Ver assim o Imperador e lembra-lo
sujeito às bronquites, abusando do Leroy e da água Vienense, com os rins
inflamados, o fígado sempre congesto, areias e cálculos raspando os cálculos
dessas vísceras, sobretudo o horror larval da epilepsia, a presidir os
conselhos, a galopar com fúria, a poetar e musicar, a comandar, a chalacear, a
escrever proclamações e declarações de amor, temerário e obstinado, onipresente
e licencioso!”
Ou
então, ao analisar uma carta onde D. Pedro I refere-se à Domitila que houvera
tratado os seus filhos das doenças infantis, diz:
“Notável era a atenção acirrada do imperador
pelos filhos, embora afirme em contrário algum historiador de pouco fôlego nas
suas restritas informações”. Tomando outro testemunho ele diz : “(....) Walsh
desembaraçamente afirma : Era ele um estrito e severo pai, mas um pai afetuoso,
eles (os filhos) por sua vez o amavam e o temiam”[11].
Na
intimidade de D. Pedro, tinha vez os seus desvelos de um pai extremoso e as
cartas comprovam isso. Diz Rangel:
“Estava D. Pedro sempre pronto a acudir aos
filhos e a medicá-los; não desdenhando lancetá-los e purga-los, aplicar-lhes
parches e quiçá o instrumento molieresco das lavagens internas. (...)
Escrevendo a D. Domitila ele noticia: “A Maria Isabel foi ontem vacinada por
mim”; “A Mariquita tomou uma onça de Água , e nada de obrar fui dar-lhe outra
vomitou, e se não obrar daqui a 3 horas tomará mais; (...)”[12].
É
interessante essa recuperação dos costumes da época. No caso das formas de
tratamento através da medicina caseira, estão cheias as cartas de D. Pedro e do
fato dele próprio aplicar essas mezinhas, quer nos filhos, quer
É
acerbamente crítico aos memorialistas que consideram o Imperador ignorante e
sem cultura, o que leva Rangel a observar, pelos documentos, que D. Pedro desde
criança estudara línguas e matemática. Além disso, o historiador enumera as qualidades
do soberano: era sabrista, mecânico, marceneiro e torneiro, literatura e
ciência detinha com certa parcimônia.
Quanto
à Domitila de Castro, era paulista, filha caçula do Coronel João de Castro do
Canto e Mello e de D. Escolástica Bonifácia de Oliveira Toledo Ribas. Casara-se
aos 16 anos com o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça e separara-se em
1821, por sevícias e atentado à morte, aplicadas pelo marido. Tinha 24 anos ao
conhecer o Imperador, em agosto de 1822. Diz Rangel:
“Com respeito aos dons e ao
desenvolvimento das faculdades naturais, que foram o apanágio de D. Domitila,
podem resumir-se no feliz concurso da estética às boas qualidades de seu
coração. Não vale passar a sabatina do ditado ou tabuada. Foi bela, atilada e
bondosa mulher: - títulos do melhor quilate ao gênero. Pouco importa que se
acompanhasse ou não, a algum instrumento, uma voz aceitável e os atrativos de
mundana sobressaíam na languidez coreográfica da tirana ou nos trépidos passos
do corta-jaca, que ela fez introduzir nos seus salões, animando e restaurando
as danças brasileiras desbancadas pelos remeneios da gavota e do solo inglês.
Alguém disse que a Marquesa lhe dera a impressão de quase não saber ler. Ela
porém apenas recebeu educação limitada, que sob o ponto de vista das luzes do
espírito se concedia então às pessoas do seu sexo (...). Ainda hoje, afora as
meninas felizardas dos colégios de Sião ou São Vicente de Paula as normalistas
e alguns exemplares mais da cultura feminina no Brasil, inclusive as poetisas e
doutoras, as romancistas e bacharelas menos desajeitosas e mais espevitadas, o
geral continua atolado nos limbos do analfabetismo colonial. Não seria sensato,
portanto, exigirem de D. Domitila os pechosos cultivos de Aspásia Stäel ou
Curie, num tempo em que se temia ensinar às mulheres ler e escrever, para que
não se carteassem em namoricos...Se as donaires de corporatura da Marquesa de
Santos, as linhas de sua graça espontânea e superlativa e os seus movimentos de
afeto e previdência não puderam alindar e valorizar com os merecimentos de
alguma ilustração, acusem a cegueira e as busões da sociedade de senhores
escravagistas, apatacados e letras-gordas.”[14]
O historiador revela-se crítico também das versões que tomam D. Domitila como prostituta e apõe documentos que as desautorizam. Trata da relação entre ela e o Imperador apontando-a como concubina, a preferida entre três aventuras de consequências mais ou menos sérias que D. Pedro tivera nesse período[15]. Diz :
“D. Domitila, que lhe apareceu nos
entusiasmos da paulicéia, seria a fatalidade, a mancha, a traição à fé
conjugal, o grande deslize do monarca. As atrizes, as fâmulas, as fidalgas,
certas senhoras da classe média e as raparigas de rua tornam-se distrações,
cochilos, não contam para objurgatórias, são pecadilhos de brejeiro ....Assim o
entenderam aqueles que nos ataques pessoais ao Imperador fizeram da Marquesa de
Santos, em partida sem tréguas, o naipe de preferência.”[16]
Rangel
acompanha todo o desenrolar do romance entre os dois amantes e, mais tarde, o processo
de desgaste e tentativa de desvencilhamento dessa relação amorosa, tanto através
das cartas de D. Pedro I e uma ou duas escritas por D. Domitila, quanto em
documentos diversos – oficiais, relatórios, cartas escritas pelos chanceleres
aos seus governos, imprensa, correspondência diplomática, de despachos do
governo, biografias, livros de decretos, leis, alvarás, cartas régias, livros
de registro de casamentos, arquivos de cemitérios, livros de memórias,
nobiliários alfabético das famílias nobres, códices do Arquivo Público Nacional
e de Lisboa, entre outros.
Mas
não somente para o acompanhamento do romance imperial esta documentação tem
serventia. Cada capítulo do livro, cada carta analisada, contém registro da
história do império brasileiro e do nascente movimento de independência que se
estrutura e se consolida, em meio às histórias dos amantes e ao amor que os faz
infringir as leis e determinar uma notícia pública dessa aventura. Percorre
outros casos de amor clássicos e contabiliza o exemplo para demonstrar que há
recorrência histórica em casos dessa monta. Dá ao leitor a impressão de que a
História do Brasil não foi escrita/construída somente de uma formalidade
extemporânea, mas de eventos particulares que determinaram o plano do político.
Transforma
o enfoque central de apresentar essas cartas, numa descrição densa sobre os
costumes da época e o cotidiano imperial, constrói as teias de uma rede onde
estão alinhadas as “pernas” da História do Brasil imperial, elaborando uma
narrativa em que emerge o nível contraditório entre o homem público que
conspira para eliminar as seqüelas de sua flexão ao sentimento (Domitila) e o
amante que não tem coragem de romper e transformar-se em homem público[17]. Para mostrar o respeito a
Domitila, pelo imperador, a mandar-lhe pêlos do bigode dentro das cartas,
Rangel esboça o histórico da importância clássica dos pêlos da barba entre os
antigos [18].
Depois
do enfoque sobre os perfis traçados por Rangel aos dois amantes, despojados da
versão preconceituosa dos historiadores (Mary Grahan e outros) me detenho em
alguns pontos demarcadores dos objetivos a que, a meu ver, se propôs o
historiador ao optar pelo eixo temático das cartas amorosas imperiais e a
partir delas criar vertentes para ferir o fato político e o histórico. Assim
será possível referenciar a questão de gênero analisando-a nestes eixos.
4.1) a situação do concubinato de D. Pedro I: a presença e convivência com a Imperatriz e a relação com a “teúda e manteúda[19]”
O
enfoque de Alberto Rangel sobre o casamento do primogênito de João VI, D. Pedro
I, com a arquiduquesa D. Carolina Josefa Leopoldina
Francisca Fernanda Beatriz de Habsburgo-Lorena [20], filha do Imperador Francisco I e
herdeira da Casa d’Austria, configura-se, ao leitor de “As Cartas....”, um estado
impositivo das relações internacionais, uma praxe das alianças políticas entre
os governantes imperiais para manter ou refazer os projetos de ascenção e
permanência ao/do poder da coroa e ou retomar as bases desse poder muitas vezes
perdido. Nesse caso, tratou-se de manobra estratégica e diplomática de D. João
VI, rei exilado pela devastação napoleônica do período, para restabelecer os
laços enfraquecidos entre os Bragança e Habsburgo.
Se
uma questão política impôs uma aliança dinástica, contudo, há registro de cartas
da Imperatriz a uma tia (dezembro de 1821) em que ela se refere ao marido como
“mon Époux que j’adore; “mon bien-aimé Époux”, “les excellentes qualités de mon
Époux”, resultando numa declaração de Rangel: “Amava a dissipada a D. Pedro com
a materialidade de todos os sentidos, seguindo na efervescência de seu sangue
ao animal e potestade, aturando-lhe o pernear e os urros o gozar nos arquejos e
fartar-se nos bofes e medulas” (Rangel, 1969, p.127). E com parcimônia cria o
perfil de Leopoldina[21]: “A Imperatriz lia, pintava,
executava piano, escrevia e matejava, preocupações pouco favoráveis para atilar
com o começo do fio, na meada das traições de alcova (...)”. “...a Imperatriz
era uma louraça feiarrona. Não usava colete, trazendo sempre roupas frouxas e trajava
quase diariamente as de montaria, saia ou casaco de ganga ou lila, botas,
camisa e gravata de homem... (...) Tinha seus pontos de contato com a Cristina
da Suécia : descaso de toucadores, prazer de montar, amiga de dissipações,
licenças de linguagem e letras abundantes. Estatura meã, grosso pescoço das
vienenses, um quê de corcunda, beiços polposos dos Habsburgos no rosto vultuoso
e, como da irmã Maria Luisa, carregado de pigmentação vermelha, de modo a
parecer sujeito a um exantema, o nariz desgraciosíssimo, cabelos espichados,
olhos azuis com a expressão de assustados, a organização robusta e inelegante”[22].
Esses
traços ele extraiu de cartas do ministro diplomático da Prússia e, também, de
outras fontes em que estão configuradas as opiniões sobre o perfil que fazem
dela, a partir de quem seja. Diz Rangel: “(...) o de Debret, que naturalmente
melhorou o original, dá-lhe ainda assim a carcaça e o busto de molde a
sustentarem cornijas e arquitraves, os cabelos apresilhavam-se no garavim ou redícula,
onde se espetam plumas enormes; espiritualidade nenhuma nas grossas linhas de
aldeã rubicunda e pesada”(1969, p. 127). (...) Walsh mostra-nos a soberana
sempre esguedelhada, negligente no vestir e afirma ter ouvido muitas censuras a
tal respeito”. (1969, p. 128). (....) O Marquês de Gabriac ajunta aos dotes
pouco graciosos da Imperatriz o de ser um “espírito comum”. “Por sua grande
ilustração, especialmente na ciência de Newton, de Hauy e de Werner, deveria D.
Leopoldina trazer os olhos sempre distraídos por céus e pedranceiras, e não lhe
diminuirem as torturas íntimas quando viesse a sentir o desdém com que D.
Pedro, apurado de traje e asseio, a ofendesse, preferindo aos dotes
intelectuais da naturalista e poetisa os adereços de uma sécia[23] e à toda mineralogia e astronomia
o barro precário de bonita cara” (1969, p. 128).
Seriam
esses os “defeitos” que afastavam a Imperatriz do amor do marido imperial? Na
verdade, o período permitia um tipo de contrato matrimonial que dava aos homens
o direito de circular entre a alcova de várias mulheres, mesmo que estas fossem
casadas, embora a ordem sacramental estabelecesse o vínculo monogâmico e não a
poliginia. A condição do contrato selado com as cores políticas e dinásticas
agravava a solução do vínculo para as donzelas que aceitavam o trato, visto que
a nobreza masculina não se importava com o tipo de mulher que seria depositária
do título nobiliarquico para conviver com uma ordem sacramental cujo interesse
primordial era a procriação e a reprodução de herdeiros homens para a coroa. O
prazer sexual era buscado fora da alcova nupcial em aventuras consentidas
socialmente. A ilegitimidade fica a cargo do registro que referia “pai
incógnito” ou “mãe incognita” aos filhos que nasciam destas aventuras. A sociedade
referendava o protagonismo patriarcal com base nas regras advindas do Código
Filipino ou Ordenações Manuelinas (janeiro de 1603) que gerenciava os
comportamentos , principalmente para as mulheres.
Mas
não se pode afirmar que os contratos mantivesse “ad eternum” a artificialidade
institucional e não pudessem, infringindo a regra, se transformar em paixão
selada entre o casal.
Os
inúmeros casos amorosos de D. Pedro I, desde os 16 anos, constam dos registros
de Rangel, mas se concentram em Domitila de Castro. Em “D. Pedro I e a Marquesa
de Santos”, no capítulo “No Colo de Eros” (1969, p. 60-74) assinala o ambiente
do Rio de Janeiro do periodo imperial entre os “casos” de viajantes e os fatos
referidos em documentos, cartas, oficios e a imprensa sobre as escapadelas do Imperador.
“Que a moralidade ambiente no Rio de Janeiro se apresentava bem precária,
testemunham-no Cook, Martius e quantos observaram o nosso meio”. Outros
testemunhos são captados de Luís de Freycinit, do Conde Aymar de Gestas, de Saint
Hilaire , de Jacques Arago que apontam para os“ruins exemplos dados pela Corte
de Portugal no Brasil, a piora dos maus costumes públicos, da união ilegitima à
venalidade da justiça e à simonia do clero”. (1969, p. 61) Essas injunções
tendem a justificar os registros de Rangel às ligações extraconjugais de D.
Pedro I, quer seja com a bailarina francesa Noémi Thierry, com quem ele teve um
filho (natimorto), antes que a Corte enviasse a moça de volta a Paris, às
suspeitas de um affair com a irmã de Domitila, a Baronesa de Sorocaba, mais
tarde transformado em incidente polícial. Debret afirma que o Imperador “se
ocupou das demonstrações graciosas de algumas francesas”. O consul Delavat
assinala a bandoleirice e o donear de D. Pedro: “habiendo elegido para sus
galanteos entre Nacionales, Italianas, Francesas , y aún Americanas Españolas
um objecto distinto cada semana, ninguna consegio fíjar su inclinacion”(...)
“Na lista, que não é arbitrária e fantasmagórica, dos seus desvios de homem e
bilontragem de rapaz, entra o caso escardado e verídico da Clemência
Saisset”(1969, p. 64).
A
lista é grande e incontável, pois Rangel aproveita o que dizem os documentos
reservados e os registros da imprensa como fontes dessas indiscrições conjugais
que à época eram graves para o marido ou a família da mulher Cortejada, mas
atenuadas pelo tilintar das moedas no alforge de um Chalaça ou outro servidor
menos formal ou a indicação imperial a um cargo público para o marido, o pai ou
irmão ofendido.
Os
laços amorosos que mantiveram Domitila de Castro enredada ao Imperador durante
sete anos (
Para
dar voz ao amante, como o fez o patrono, examino algumas dessas cartas de amor
numa sequência sistemática às fases da paixão imperial e do descenso, deixando
que os participantes/ouvintes estabeleçam a conexão que Rangel quis dar,
criando a interlocução de D. Pedro com a amada piratiningana.
“Cara Titilia”.
Foi inexplicável o prazer que tive com as
suas duas cartas.
Tive arte de fazer saber a seu pai que
estava pejada de mim (mas não lhe fale nisto) e assim persuadi-lo que a fosse
buscar e a sua familia que não há de cá morrer de fome, mui especialmente o meu
amor, por quem estou pronto a fazer sacrificios.
Aceite abraços e beijos e fo... Deste seu
amante que suspira pela ver cá o quanto antes. O Demonão. Santa Cruz, 17 de novembro
de
“Meu amor do meu coração
Seria um impossível que eu me esquecesse de
mecê e de nossa querida Belinha (para quem mando um beijo), ainda que estivese
no fim do mundo.
Fui hoje ver as grandes plantações que
tenho e, topando alguma caça, cacei e logo a destinei para a imperatriz e mecê. Assim, aceite-a, meu benzinho, e
igualmente o coração saudoso deste seu amante fiel e constante e desvelado. O
Demonão.
P.S. Amanhã pretendo mandar-lhe mais e
melhor caça. O Ponçadilha se recomenda.Todos os jantares têm sido honrados com
a sua saúde.Não canse responder ou sequer mande ao Plácido a carta.” Santa
Cruz, 23 de novembro de 1824. (Cartas, 1974, p.73)
Meu bem
Convindo ao meu decoro que mecê sempre
apareça diferente no teatro todos estes tres dias, ai vai o colar de ametistas
para hoje levar e amanhã leve o outro que eu lhe dei antes do que levou ontem.
Eu passei bem, mas apesar de tudo vá sempre no teatro para eu ter o grande
gosto de a ver. Seu mano Carlos, quando lá chegar, que procure o empresário ou
o administrador , que qualquer eles lhe dará a chave do camaorote.
Seu amante
O Fogo Foguinho
(s/d, Cartas, 1974, p. 605)
Titilia,
Demonão, Fogo Foguinho são alguns adjetivos usados pelo Imperador para acariciar
a amada. São também marcos de uma fase que no dizer de Rangel “...cheira a
lençóis usados, num leito em pouca ordem”. (1974, p.45) É o tempo dos afagos e
da fase inicial em que o romance se intensifica. Mas em geral, a assinatura vem
com a menção do título funcional: ‘O Imperador’.
“Meu amor e meu tudo...
No dia em que fazia tres anos que eu
comecei a ter amizade com mecê assino o tratado do nosso reconhecimento com o
Império por Portugal. Hoje, que mecê faz os seus 27, recebo a agradável noticia
que no Tejo tremulara em todas as embarcações nele surtas o pavilhão imperial,
efeito da ratificação do tratado por el-rei, meu augusto pai. Quando há para
notar uma tal combinação de acontecimentos políticos com os nossos domésticos e
tão particulares !!!
Aqui há o que quer que seja de misterioso,
que eu ainda por ora não diviso, mas que indica que a providência vela sobre
nós (e se não há pecado) até como aprova a nossa cordial amizade com tão
celebrs combinações.
Como estou certo que mecê toma parte e bem
aceito nas felicidades ou infelicidades da nossa cara pátria, por isso teve
lembrança de lhe escrever.
Este seu fiel, constante, desvelado,
agradecido e verdadeiro amigo e amante do fundo dalma.
O Imperador
P.S. Não responda para se não incomodar e
perdoe a carta ser tão grande e maior que fosse ainda não dizia o que querem
dizer tais combinações. 27 de dezembro de
Em
1826, o Imperador demonstra a informalidade no trato com a amante sem deixar de
referir-se às atividades do cargo ocupado. Deste período, o volume de cartas é
menor com registros em nótulas que referendam informações históricas extraidas
por Rangel de uma considerável diversidade documental a explorar a intensidade
de evidências para o registro necessário da História do império.
“Meu amor, minha viscondessa e meu
tudo
Neste momento são nove horas e um quarto.
Chego do meu passeio com a minha senhora, vindo da Fábrica de Chitas e Papel,
que ainda o não faz , e de te entrado na chácara do visconde de Barbacena,
aonde não me apeei e lhe falei a cavalo mesmo. Estimei muito em saber que mecê
e nossos queridos filhos passaram bem. Bem desejei que esta lhe fosse escrita
em papel brasileiro da fábrica, mas por ora ainda o não há, o que em pouco
espero assim não seja. Agora, meu encanto, só me resta dizer-lhe que é e será
sempre
Seu fiel, constante, desvelado, agradecido
e verdadeiro amigo e amante do fundo da alma. O Imperador. Boa Vista,
11/1/1826”. (Cartas, 1974, p. 107).
A rotina da
convivência do Imperador entre as duas casas e o papel que representa sua
presença pública com D. Leopoldina deixam de mascarar esta situação entre os
dois amantes. Os filhos aos quais alude são Izabel Maria, mais tarde
reconhecida pelo pai e entregue à Corte para acompanhar os seus filhos legitimos
e a educação imperial; o outro filho é Pedro, nascido em dezembro de 1825 e
falecido em março de 1826.
A
troca de cartas entre Domitila e o Imperador era constante. Em que pese Rangel
sentir-se impotente diante de algumas alusões para as quais não tinha explicações,
a dúvida de interpretação sobre fatos referidos por D. Pedro mantinha-se
intocada. Entre as “Cartas...” surgem, contudo, dois ou tres bilhetes não
datados, (alguns supostamente escritos depois de 4 de julho de 1826), assinados
pela Marquesa, consignados para avaliar o nível dos colóquios entre os dois,
achados no meio da correspondência do Imperador:
Filho
Vossa Majestade manda; farei tudo o que mo
ordena. Mande vir tinta e areia para hoje se assinarem as patentes. Até a
noite.
Sua Filha
Não esperava menos de ti, eu te agradeço.
Teu filho,
Imperador
P.S. Beijos na duquesa, nossa filha, pelas
flores.
Domitila
Neste
caso, Rangel é mordaz, em suas nótulas nas “Cartas...” ao familismo de
Domitila, supondo serem as patentes demandas de seus irmãos oficiais “gulosos
das vantagens de suas promoções” (...).
A
depêndencia às normas de conduta das mulheres aos seus senhores é suma soberana
para Domitila. Isso é expresso em outros bilhetes enviados ao amante.
Filho,
Manda-me dizer se de tarde é preciso que eu
vá de manto, pois não sabe esta sua amiga como há de ir. Até logo.
Tua amiga
Se
é um tempo em que as mulheres estão orientadas pela representação social que
agudiza condutas submissas e evidencia a servidão com a ausência do letramento
e da instrução para elas – forma de conhecimento pendente do interesse de
parlamentares transformarem seus projetos de incentivo à educação feminina em
leis – não se pode incluir, neste esquematismo análitico, a brasileira Domitila
de Castro e muito menos ainda a letrada Imperatriz Leopoldina. Embora não tenha
sido possível avaliar com mais substância a escrita através das cartas que
escreveu ao Imperador, pelo menos duas ou três destas missivas evidenciam o
letramento dela. A instrução feminina da época totalmente descuidada e direcionada
para o saber doméstico não isentou a moça de classe social acima da média e
filha de um visconde da Corte dos principios básicos da arte de escrever e do
estudo das “quatro operações”, como era a praxe do tempo.
Estas
asserções se confirmam na referência de Alberto Rangel à “cultura e os dotes”
das três figuras principais de sua narrativa. Procurando desmontar o que dizem,
maliciosamente, certos historiadores sobre D. Pedro, acentuando mais os dotes
culturais e de mulher letrada de Leopoldina comenta, sobre Domitila, não sem
antes tecer-lhe uma imagem rebordada com o cinzel estético da beleza: “(....)
Não vale passar-lhe a sabatina do ditado ou tabuada. (....) Alguém disse ao
marquês de Gabriac , que a Marquesa lhe dera a impressão de não saber ler. (...)
“...Ela, porém, apenas recebeu educação limitada que sob o ponto de vista das
luzes do espírito se concedia então às pessoas do seu sexo”, assinala o íntegro
polígrafo e professor Macedo. (.....) Não seria sensato, portanto, exigirem de
D. Domitila os pechosos cultivos de Aspásia, Stael ou Curie, num tempo em que
se temia ensinar às mulheres ler e escrever, para que não se carteassem em
namoricos...” (1969, p, 28)
Meu bom senhor
Estimo a boa saúde de V.M. e de Suas Altezas.
Meu senhor, como V.M. tem sido meu pai e de todos os meus filhos, eu peço
licença a Vossa Majestade para acabar de efetuar o casamento da minha Chiquinha
com o mano José, isto sendo do gosto de V.M., senão nada farei. Minha mãe ainda
passa incomodada, minha tia o mesmo, mano José também hoje amanheceu com muitos
tremores de frios e, assim, está de cama. Eu, graças a Deus, vou passando sem
novidade.
Sou de V.M. criada que muito o estima e
obrigada,
Marquesa de Santos
Em
meio aos “casos” e pilhérias sobre a conduta pública de D. Domitila, que
apontam para uma figura destemperada e agressiva, o historiador remete a outra
maneira de ser da Marquesa de Santos:
“O papel felizmente discreto da brasileira
se resume na criação dos filhos e na determinação corriqueira de arranjar a casa.
Trabalhos de agulha, de cozinha, de puerpério, de asseio e de ordem; a agulha,
o berço, a caçarola, a vassoura , o bilro. Ela não costuma afamar-se
E
nesse tom ele acrescenta, à sua avaliação, outros testemunhos. A exemplo, o de
um agente espanhol do tempo da Marquesa na Corte: “Su caracter es bondadoso y
accessible a todos los disgraciados”. Outro depoimento: “Tem genio serviçal, e
é cheia de carícias para os que ela busca distinguir”.
Rangel
também registra os petitórios que Domitila faz ao Imperador, subtraidos das
respostas das cartas deste à Marquesa.
Meu amor, meu tudo,
Neste momento, acabo de perdoar toda a pena
do Martins e o mandei soltar. Mande-me dizer quem está lá, pois de cá vejo duas
seges.
Adeus, meu encanto e meu tudo quanto pode
ser de bom, e aceite o coração deste que é
Seu verdadeiro, fiel, constante, desvelado
e agradecido amigo e amante.
O Imperador
Boa Vista, 12/1/1826
(Cartas, 1974, p. 113)
A
pessoa a quem D. Pedro se refere é um paraense, o soldado João Martins que em
1824 esteve envolvido
O
outro detalhe da carta demonstra o controle do Imperador aos passos de
Domitila. As nótulas de Rangel sumarizam esse domínio: “A Quinta da Boa Vista
bem se situava para ele observar o que se passava no palacete da paulistana sua
vizinha. Em outras missivas, diz Rangel, aparecem várias referencias a essas
espiadelas no seu observatório distante do que que se passasse na casa de sua
amiga. Seges, luz acesa, janelas fechadas lá embaixo e o imperial observador de
óculos de ver de longe, à maneira do capitão na ponte da sua nave, ancorada
entre os arvoredos da Quinta”. (Cartas, 1974, p. 113-114).
No
período de 1826 e 1827 alguns fatos convergiram para um novo desenrolar do
relacionamento entre os amantes de São Cristovão, por suposto, desconhecido,
inicialmente, de D. Leopoldina, a primeira mulher que em dois momentos da
história brasileira assumiu a regência do país[24]. Segundo Rangel “...até outubro de
Outras
fontes, contudo, consideram que desde janeiro de 1823 o romance do Imperador
transtornara a sua mulher, ao levar a amante para a Corte (Schumaher &
Brazil, 2000, p. 324). Entre as fofocas palacianas rivalizando com a boataria
das barbearias, a amante ia sendo introduzida por amigos do soberano nos mesmos
espaços da Imperatriz. Agravos contra ela de damas da Corte, que publicamente
se afastavam ostensivamente à sua aproximação, eram compensados pelo Imperador
com a indicação de D. Domitila para cargos nobiliárquicos e funções importantes
na Corte o que, segundo Rangel (apud Mansfeld), “causou imenso desgosto a D.
Leopoldina” (1969, p. 123), embora esta se visse “obrigada a reconhecer a
mencionada condessa de Santos como sua primeira camareira (...)”.
Em
uma viagem à Bahia, “com vistas a fortificar a instituição do Império às
províncias do Norte” (1969, p. 129), em fevereiro de 1826, e a bordo da nau
“Pedro I”, o Imperador fez transportar a família real, além de um séquito de
quase trezentas pessoas, com a Imperatriz, levando entre suas damas de honor, a
primeira camareira, D. Domitila. Sendo raras as cartas catalogadas desse ano,
me atenho na narrativa de Rangel aproveitada de depoimentos de diplomatas
presentes na viagem e de sua própria verve: ‘Nas horas cálidas, esticada a lona
dos toldos, D. Leopoldina movia as pedras do gamão ou deglutia bocados de um
prato apreciado, sozinha, com o apetite voraz de gulosa que o era. [....] Os
sentimentos do Imperador por D. Domitila, nas horas longas de bordo, vazias e
calmosas, exacerbar-se-iam naturalmente. Ouviam-no tratá-la pelo diminutivo
meloso e comprobatório : - “Titília” , perder-se indefinidamente em enleios com
a paulista, cercá-la de atenções despropositadas”. [....]. No desembarque em
Salvador, a “entourage” decomposta, a comitiva real ficaria no primeiro andar do
Palácio do Governo, enquanto D. Domitila no segundo. “Pela manhã cedo D. Pedro
saía a cavalo com a esposa, que montava também de escachapernas;
transportando-se na caleche, à tarde com toda a família e mais a “Titília”
(1969, p. 129-130).
Embora
as cautelas de D. Pedro fossem confirmadas em cartas à Marquesa (“O melhor é
que eu quando sair de dia nunca lhe vá falar para que ela não desconfie do
nosso – santo amor – e mesmo quando for para essa banda, ir pelo outro caminho,
e em casa nunca falar em Mecê, e sim em outra qualquer Madama para que ela
desconfie de outra e nós vivamos tranquilos à sombra do nosso saboroso
amor.”(1969, p. 134), diz Rangel que D. Leopoldina limitava-se aos murmúrios
queixosos quando tinha que beijar a duquesa de Goiás, a Izabel Maria, filha
legitimada dos dois amantes, desabafando em carta de outubro de 1826, ao amigo
Schaffer: “Aqui anda tudo transtornado infelizmente, pois sinceramente falando,
mulheres infames como se fossem Pompadour e Maintenon (!!!) e ainda pior, visto
que não têm educação alguma, e ministros da Europa toda e da Santa Ignorância
governam tudo torpemente. E os outros devem ficar calados e procurar apenas o
maior isolamento, ficando cada vez mais almejando a independência e a tranquilidade”.
(1969, p. 142).
Em
12 de outubro, D. Pedro I dá mais um título a D. Domitila, elevando-a de Marquesa
a Viscondessa de Santos. “A 23 do mesmo mês a Imperatriz faz saber ao Ministro
da Áustria quanto era infeliz e encarregou-o de comunicá-lo ao pai”. (...) O
desenrolar do romance entre D. Pedro e a Marquesa de Santos espedaça-lhe o
coração. A dedicação do Imperador, demonstrada ao abandonar o lar para ficar
junto à amada que no inicio de novembro desse ano perdera o pai, cria uma nova
tensão. “A paciência de D. Leopoldina cansara”, diz Rangel. “Seus nervos por
fim adquiriram vibratilidade. Vendo-se só durante dois dias e duas noites, a
imperatriz sentiu assanharem-se os sentimentos de que se julgava
providencialmente despida. (...) Não satisfeita de recorrer às oiças do ministro
austríaco, debateu-se numa cena de todos os diabos, declarando ir recolher-se à
companhia das monjas da Ajuda, à espera que o pai ordenasse o regresso à
Austria, quando D. Pedro, avisado da trovoada em casa acorreu bufando de furor
incontinenti”. (1969, p. 145)
A
cena foi dramática. Diz Rangel que: “Com a permuta dessas grosserias,
coincidiram os pródromos da doença de D. Leopoldina, que aliás, desde o parto
dificultoso do príncipe Pedro perdera a saúde. Apregoava-se que a origem do mal
provinha dos maus tratamentos de D. Pedro e até de contusões, afirmava Gabriac”
(1969, p. 146). É o inicio do fim. “Sentia a Imperatriz ao demais uma depressão
enorme, vontade e medo de morrer, preguiça de pensar e as lágrimas a
aguarem-lhe as faces desbotadas, sem haver lembrança que as sustivessem ou
carícias que a secassem”. (1969, p. 146).
A instabilidade da saúde de D.
Leopoldina vem encontrar o Imperador já em preparativos para uma viagem ao sul,
para conter a sedição no Prata, mas a essa altura, já se reconciliara com a esposa.
“Esta definhava na hipocondria, aliás natural na marcha ao puerpério; chorava
na tristeza sem consolo, repetia a D. Pedro que não o veria mais, falava na
morte, tinha certeza do fim próximo, o coração lh’o afirmava....” (1969, p.
146). Ele parte. As forças corsárias no Rio Grande necessitam ser apaziguadas.
Ela fica. Com a melhora pelo tratamento, em 29 de novembro a Imperatriz sente
forças para presidir o conselho de ministros. Mas logo em seguida começaram os
sintomas convulsivos. Diz Rangel:“A febre alta não remitiu. Os ministros de
estado acompanhavam a enferma (...) Os médicos reuniam-se consecutivamente.
(...) A Marquesa visitava diariamente a enferma, por vezes acompanhando-se da
duquesa de Goiás”.(...) (1969, p. 147)
À
vista do estado de saúde de D. Leopoldina, os ministros insistiram no
afastamento da Marquesa de Santos da capital do Império. O ministro Lages e o
Caravelas se opuseram ao considerarem uma medida injusta. Decidiu-se então
“dizer à D. Domitila, alguns dias antes do falecimento da Imperatriz, que
deixasse de comparecer à Boa Vista em busca de notícias, pois que isso
perturbaria a doente (...)”. Esta situação foi relatada à paulista pelo
ministro da justiça que furiosa, encaminhou uma carta ao Imperador relatando o
acontecido. Este preparou seu retorno imediato ao Rio” (1969, p. 161)
Em
2 de dezembro às duas da manhã a Imperatriz “malparia um feto masculino” (1969,
p. 147). Entre as crises de delírios começou a suspeitar que estava sendo
envenenada. Com isso, relata Rangel, “A Marquesa e a Goiás encheram subitamente
de horror a moribunda. Não as queria ver mais. (...) E porque seus gritos
exprimiam o apogeu dessa aversão, a Marquesa de Aguiar resolveu que D. Domitila
não reaparecesse na sala em que a infeccionada havia de expirar” (...). O Bispo
do Rio de Janeiro , o marquês de Palma, frei Arrabida, a Marquesa de Aguiar e o
primeiro marquês de Paranaguá se mantiveram à porta do quarto da Imperatriz e
impediram a entrada de D. Domitila: “Tenha paciência a senhora Marquesa! Vossa Excelência
não pode entrar” (...) (1969, p. 148).
Na
versão de Rangel, “O populacho, sempre sensível aos escândalos e amigo de os
agravar, ao saber do embargo palaciano aplaudiu na rua do ministro, principal
ator penoso entremês” (1969, p. 148-149). Não houve comunicação oficial desse
fato ao Imperador, salvo a correspondência sobre o falecimento da Imperatriz,
em 11 desse mês.
O
registro de Rangel ao comentário do ministro austríaco Maréschal, segundo ele,
secundado por uma carta de D. Domitila ao Imperador, mostra as insídias desses
dias contra a Marquesa:
“Serviram-se do pretexto da doença da
imperatriz para insultá-la, proibindo-lhe a entrada no palácio, o povo fora
incitado contra ela e se não fosse o ministro da Guerra e o intendente de
polícia ela e os seus teriam sido apunhalados. A imperatriz e o povo eram só
uma desculpa criada pelos ministros para os separar, e a intenção era colocar o
imperador em tutela e governá-lo. Ela implorava seu regresso breve e sua
vingança, dizendo que seus dias estavam ainda ameaçados”. (Cartas, 1974, p.
153)
E acrescenta:
“O imperador, ao receber essas notícias
demonstrou aos seus confidentes um pesar sincero pela morte da esposa, dizendo
que ela era uma mulher excelente e que não o havia nunca contrariado; que ele era
sinceramente dedicado e sentiria sempre saudade dela. Exprimiu temores que se
aproveitassem desse triste acontecimento e de sua ausência para espalhar
calúnias atrozes e suspeitas odiosas, mas toda a sua cólera se voltava para o
insulto feito à sua bem-amada e o perigo que ela corria, e não pensava em outra
coisa”. (Cartas, 1974, p. 153)
Em
“D. Pedro I e a Marquesa de Santos”(1969) o senso investigativo do historiador
Alberto Rangel explora todas as evidências documentais e circunstanciais em
cartas e depoimentos de Ministros e outros tão grados que tendem a desmontar
certo denuncismo de uma história privada que supera a significância das
questões políticas reveladoras de estarem, os dissidentes, naquele momento,
intentando afastar o soberano de seu real governo devido às insidias entre dois
grupos de ódio étnico, o dos “cabras” e o dos “marotos” ou “pés de chumbo”: “Em
1826 ía funda a rivalidade no conflito do antagonismo colonial subjacente,
separando aspirações e divergindo programas”(1969, p. 158). Diz Rangel: “D.
Pedro estava na tradição lusa, que então via profundamente no Prata a nossa
grave e irrevogável questão continental, o flanco doente, o ponto sensível....A
oposição que reclamava a paz nas fronteiras do sul e tratava D. Pedro de
intrêmulo e desmiolado, pródigo do sangue e dinheiro alheios, não era somente
um partido de campanário, mas a população anti-metropolitana reagindo por
nativismo estreito à herança dolorosa da luta cuja vitória Portugal bem sentiu
indispensável à tranquilidade dos destinos nacionais” (1969, p. 158).
Enquanto
os planos traçados para manter a guerra, com vistas a dificultar a formação de
grandes países com a anexação da Cisplatina e o controle de toda a bacia do rio
da Prata dificultavam contatos nas áreas localizadas
O
desembarque do Imperador no porto do Rio de Janeiro dá-se somente em 15 de
janeiro de 1827 e, segundo os comentários do austríaco Maréschal pelo olhar de
Rangel, D. Pedro chegou tomando as medidas cabíveis aos acontecimentos, tanto
políticos quanto de foro íntimo. Neste último caso, fez logo o despejo do Paço
de Frei Arrabida, do mordomo e da camareira mor instalados ali desde a doença
de D. Leopoldina. Quanto aos ministros, primeiramente demitiu Vilela Barbosa, o
marquês de Paranaguá, exonerou alguns tantos, nomeando outros para o
Ministério. Queixando-se ao Ministro da França, Paranaguá confidenciou que
embora se carteasse com D. Pedro I tranquilizando-o sobre a situação no Rio,
“sabia ter a Marquesa enviado contra ele e outros colegas uma carta acusatória,
repleta de prognósticos em relação à integridade da sua pele de galante à
segurança da cidade e do Império, caso Sua Majestade não regressasse logo”(1969,
p. 163). Mas na opinião de Rangel: “Se por ventura D. Domitila compôs a
gravidade da situação, não mentiu. Era de fato excepcional e de negras
perspectivas o momento histórico do Brasil. Criara-o a morte obstrusa de D.
Leopoldina e a situação do soberano, por assim dizer de mochila às costas, ao
acaso dos acampamentos de guerra. E no fim de 1826 não morrera a paixão e o
espírito de anarquia de 1823 e de mais longuínguas origens” (1969, p. 164).
No
mesmo dia da chegada de D. Pedro I ele escreve uma carta à D. Domitila, ainda a
bordo da nau “Pedro I”, vinda do porto de Desterro, Santa Catarina.
“Bordo da nau Pedro Primeiro
entrando no Rio de Janeiro
15/01/1827
Minha querida filha do meu coração
e minha amiga
Teu Tio Manuel Alves, meu íntimo
amigo e inseparável companheiro de dia e de noite , é portador deste. Ele, minha
filha, te contará os incômodos, sofrimentos, aflições, pesares e, mais que
tudo, o desgosto pela morte da minha adorada esposa. Saudades e cuidados em ti
e em todos os meus, digo, nossos filhos me têm feito quase enlouquecer,
chegando a ponto de não comer três dias quase nada e não dormir. Ele te contará
do célebre sonho que tive em 11 do mes passado, que desde então data a minha
aflição e disposições para vir unir-me contigo junto de teu peito e sobre ele
depositar minhas lágrimas. Eu tomo nojo por oito dias e esta a única razão que
faz com que eu não vá logo, como desejava, abraçar-te e mais nossa Bela, que
tanto cuidado me deu, e sim vá à noite, como teu tio combinou contigo. Pedro
Primeiro que é teu verdadeiro amigo, saberá vingar-te de todas as afrontas que
te fizeram, ainda que sua vida lhe custe. É ao mesmo tempo com todo o gosto e
verdade que tenho o prazer de poder dizer com toda a franqueza e contentamento
que
Sou o teu mesmo amante, filho e
amigo fiel, constante, desvelado, agradecido, verdadeiro, digo outra vez amante
fiel.
O Imperador
Esta
carta documenta as juras de amor de D. Pedro a D. Domitila em uma fase de
tensão pelas acusações de ter abandonado a esposa doente e a morte desta
exacerbando a crise politica que esse episódio ocasionou. Revela também a
convivência que se estreitará entre os dois amantes, testemunhada pelo cartear
quase diário , cuja leitura registra desde o juramento de amor eterno e fiel do
missivista à amada até “leves e passageiros motivos de zangas, nugas[26] de momento mas quão
pressagioso...” (1969, p. 170). Outros temas de ocasião são repassados como os
indicios de ciúme entre eles, a normativa de conduta a ser observada, a
oferta/envio de regalos – da caça às joias –, o cuidado com a saúde dos filhos e
da amada, a maneira de aplicar remédios caseiros, justificativa de petitórios
imperiais, simbólicos versos eróticos e uma ou outra frase lasciva, permeando
uma sintonia com a rotina vivenciada de sensualidade não tão secreta, mas ainda
camuflada pelos dois parceiros. Nessas missivas, o registro do tempo, da hora,
do lugar do encontro e os meios para serem seguidos pela Marquesa a uma ordem
do amado são recorrentes e sistemáticos.
As
juras românticas dos apaixonados de São Cristovão seriam postas à prova ao
longo de pelo menos dois anos (1927-1929), diz Rangel. Inicialmente houve
murmúrios quanto à probabilidade do Imperador fazer de D. Domitila a Imperatriz
do Brasil, suposição suscitada pelos Ministros austríacos Maréschal e
Metternich, decorrente dos últimos acontecimentos do final de 1926, mas
descartada pelo próprio Imperador, em meados de 1827, convencido da
impossibilidade de tomar uma atitude de foro particular pela sua posição de
estadista. Devido a isso, aproxima-se desses nobres para acertarem, junto ao sogro
D. Francisco I, um novo contrato nupcial com alguma princesa estrangeira
interessada, embora isso não representasse uma perspectiva de ruptura imediata
com a Marquesa, visto que a fleugma do sentimento entre os dois não arrefecera
confirmado pelas cartas e pelo que destas é possivel extrair em referência aos
encontros diários entre os amantes.
Mas
em dado momento, D. Pedro externou à Marquesa de Santos a causa do casamento de
Estado. Embora este fato não seja um assunto em registro nas cartas pesquisadas,
os relatórios de Maréschal, desse período, apontados por Rangel, dão notícias
das conversas entre eles e a busca pela nova protagonista do Paço Imperial. Da
imposição de uma nova conduta para conseguir ser acreditado entre os chefes de
Estado cujas filhas se interessassem pelo viúvo imperial, reservou-se o
Imperador às confabulações com o ministro austríaco. Uma das nótulas de Rangel
a uma carta de D. Pedro I demonstra as tramas para a separação de D. Domitila e
a garantia devida às filhas que tinha com ela: “(...) É impossível expulsar a Marquesa,
não posso fazer-lhe esta proposta no estado em que se encontra. Depois do
primeiro golpe que lhe dei anunciando minha determinação de casar novamente e a
promessa de não vê-la mais, o que cumprirei religiosamente, mandá-la embora
seria causar uma revolução e provocar a morte da mãe e da criança. Não posso
cometer um ato tão bárbaro que ninguém aprovaria nem teria o direito de exigir
de mim”. (...) (Cartas, 1974, p. 218)
4.1.1) O Casamento de Estado e a Conspiração
para o Rompimento do Romance
Inicia-se
a terceira fase do que me foi possível avaliar nos textos de Alberto Rangel,
sobre os dois amantes como protocolo de uma história particular embebida nas
exigências da história oficial: afastar do convívio imperial a Marquesa e a
filha, a Duquesa de Goiás, mandar um Enviado Extraordinário da Corte com
instruções secretas para tratar do contrato nupcial, acertar as vantagens
pecuniárias com D. Domitila.
Se
o leitor de Rangel seguir avaliando o conteúdo das cartas do Imperador nesses
dois anos em que se deflagrou a ruptura do envolvimento imperial com a cortesã,
vai se surpreender com o tratamento do amante, sempre apaixonado, sempre
ditando as normas do comparecimento público dela e a sua presença à socapa quase
todas as noites na casa da amada. Ferir o assunto da dissolução da amizade há
poucas entradas nessa correspondência, até ao final de 1827. É sugestivo que em
uma longa carta de 14 de outubro à “Minha querida filha e amiga do coração”, D.
Pedro refira ao final que (....) “Nem por sombras desconfies de mim, porque por
minha desgraça bem me basta ter-te perdido para sempre com o casamento e ter-me
atormentado por tudo que tem havido para te perderem”. (...) (Cartas, 1974, p.
291). Essa entonação vai até meados de 1828, quando a decisão de romper em
definitivo é uma medida sine qua non
para que o protocolo oficial circulando pela Europa seja levado a sério pelas
princesas casadouras. Houve duas desistências, muitas conversas entre os diplomatas
austríacos e D. Pedro, mas, de concreto somente quando a decisão da Marquesa de
sair do Rio foi sistematicamente postergada nas datas-limites impostas que lhe
foram impostas oficiosamente. O processo de expulsão fortaleceu-se gradual mas
cruelmente, como pode ser notado em uma carta sem cabeçalho amoroso, de 22 de
maio de 1828:
“Marquesa. Não repare que eu, a bem do meu
negócio do casamento, lhe torne a escrever. Minha filha infalivelmente sai até
dois de julho, e por isso eu muito desejo que a Marquesa saia pelo menos seis dias
antes, o que vem a ser 26, porque muito convém que os que vão possam dizer “a Marquesa
ja saiu” e não “está para sair”. Todos acreditarão o que aconteceu e não o que
está para ser, que pode não ser, e o negócio é grave e muito grave” (...).de 22
de maio de 1828: (Cartas, 1974, p. 458).
“Dona
Domitila intimada para retirar-se da Corte em outubro de
A
rejeitada Marquesa, contudo, insistia em retornar ao Rio a qualquer tempo,
desde que fora despejada para São Paulo. Em dezembro de 1828, D. Pedro escreve
uma carta em tom rispido à Viscondessa Bonifácia, mãe dela, exigindo o respeito
devido à nação:
“Neste instante recebo uma carta de sua
filha Marquesa, dizendo sem mais cumprimento que saía para cá no dia 23 deste.
Eu protesto altamente contra e em nome de toda a nação, a quem a sua presença faz
mal nesta Corte e província, por causa do meu casamento. E protesto mais, que
provas não equívocas e nascidas verdadeiramente de um homem de honra e de um
soberano provarão e farão ver ao mundo inteiro minha imperial desaprovação”.
(...) (Cartas, 1974, p. 475)
D.
Domitila retorna ao Rio em abril de 1829. Nas cartas percebe-se regozijo e bom
tratamento a quem não era mais benquista na Corte por condições adversas, mas
ainda permanecia a grande favorita do amor do Imperador. O casamento com d.
Amélia Augusta Eugênia Napoleona de Leuchtenberg-Beauharnais, Princesa da
Baviera , deu-se por procuração em 2 de agosto de 1829, na Capela do Palácio de
Leuchtenberg , com o noivo sendo representado pelo marquês de Barbacena,
chegando ao Brasil em 16 de outubro de 1829.
No
capítulo IV “Casos e Traços” de “Dom Pedro Primeiro e a Marquesa de Santos”,
Alberto Rangel dá a sua declaração sobre os dois personagens:
“O Imperador foi súdito e a Marquesa
soberana da ternura. Nos mistérios do instinto cego que os abraçou e dominou,
nas desordens conclamantes das relações ilícitas, a extrema afetuosidade
ajudou-lhes a queda e o envolvimento pecaminosos. Foi assim que os dois
náufragos flutuaram, derivados no fio da mesma onda de emoção que lhes chofrou
nos peitos, fazendo-lhes esquecer a pragmática, o estado social e os principios
éticos e não consultaram as horas e os dias tão ardorosos ambos quanto
imprudentes e culpados”... (1969, p. 59)
Findou-se
um tempo de amor?
Mexer
com o tempo da História é conviver com a incerteza.
Alberto
Rangel como historiador arguto e prespicaz à vista de tantas fontes, de tantos
testemunhos de tempos de historia e fatos que remetem às paixões entre os que
construíram a sociedade política do Brasil, deixa aos seus leitores esta pergunta
sem resposta.
5.
Uma
Conclusão Possível : as cláusulas de “Rosebud”
No filme “Cidadão Kane”, de Orson
Welles, o milionário americano Charles Foster Kane pronuncia ao morrer, com
dificuldade, uma palavra enigmática: rosebud. É a partir dela que será
desencadeada toda uma revisão da vida do magnata para identificar o significado
daquela palavra que, ao final, se descobre estar escrita num trenó com o qual
ele brincava
Afora a lição estética que ficou da
realização, restaram duas lições a serem percebidas pelo público: a primeira
está na condição paradoxal de se tratar de um fato sem testemunhas e, portanto,
desconhecido de todos. A segunda é sugerida pelos planos que abrem e fecham o
filme: a visão noturna de um palácio – Xanadu, onde mora o milionário, cercado
por muros, grades, cercas de arame, enfronhado em rochedos e focalizado de
forma que sejam percebidas sua magnificência e solidão – onde uma chaminé exala
uma fumaça escura, a câmera, encerrando a sua passagem num travelling para trás
, vai mostrando uma placa onde se lê a advertência: “no trespassing”.
Neste
fecho do meu elogio a Alberto Rangel, faço analogia com o filme de Welles, ao
ler seus escritos historiográficos que traduzem a obra de toda uma vida. Para
mim, as cláusulas de Rosebud se cravaram ao que eu ainda não sei dele, apesar
de ter descoberto sua obra. Quem é Alberto Rangel?
Se o
patrono não conseguiu decifrar o enigma de D. Pedro e D. Domitila em tantas
fontes mauseadas, escavacando uma parte da Historia do Brasil para atingir outras
histórias, eu avaliei que sua contribuição para a história desses dois amantes respeitou
o “no trespassing”.
E
assim, tal como Orson Welles, Alberto Rangel evidenciou uma condição humana
indevassável: o mistério de sua “rosebud”, o que o individuo faz de si mesmo.
§ Texto originalmente elaborado como discurso de posse de consócia
efetiva do IHGP.
§§ Professora Associada
1/FCS/IFCH/UFPA. Doutora
[1] Revista do IHGP, vol. XV, 1968, pág. 61.
[2] Cf. idem, ibid., p. 63.
[3] De uma “Notícia Bio-Bibliográfica do Escritor”, escrita por Sebastião
Campos Braga, que refundiu e revisou a 3a edição da obra “Dom Pedro
I e a Marquesa de Santos”, em 1969, para
a Editora Brasiliense; e extraída de ROQUE, Carlos. Enciclopédia da Amazônia,
Belém (PA): Amazônia Editora Ltda., 1968, 5o Volume.
[4] Cf. Braga, 1969, p. 327
[5] Idem, ibid., p. 327.
[6] A coleção da Biblioteca da UFPA, registra que este livro foi publicado
em 1972.
[7] Facilitada pelo empréstimo da obra da Profa.
Maria de Nazaré Sarges, a quem agradeço penhorada.
[8] Esta obra herdada da
biblioteca de Pedro de Castro Álvares por seu filho Pedro Veriano.
[9] Cf. Rangel, 1974, p. 28.
[10] Cf. Cartas de Pedro I ....., 1974, p. 103.
[11] Cf. Cartas, 1974, p. 243.
[12] Cf. Rangel, 1974, p.
[13] Cf., Rangel, 1974, p.
124.
[14] Cf. Rangel, 1916, p. 29.
[15] Sobre isso, cf. a nótula no 1, de “Cartas ..., 1974, p.
323.
[16] Cf. Rangel, 1916, p. 72.
[17] Cf. Rangel, 1974, p. 286.
[18] Idem, ibidem.
[19]
Segundo o Direito, indicam a concubina tida e mantida as expensas do parceiro (Cf.
www.marioprataonline.com.br/).
Para a História: “Teúda e Manteúda
eram duas irmãs gêmeas, loiras e lindas, naturais de Nápoles, no século XVIII,
e ficaram conhecidas porque uma não conseguia ir para a cama com um homem sem a
outra”.
[20] Leopoldina foi Arquiduquesa D'Áustria;
Princesa Real Consorte de Portugal Brasil e Algraves (1817-1822); Imperatriz
Consorte do Brasil (1822-1826); Rainha Consorte de Portugal (1826).
[21] Aqui extraido das duas fontes bibliográficas principais
[22] Cf. Rangel, 1969, p. 126-127.
[23] Mulher elegante, mas afetada, presumida. Cf. Dicionário Aurélio-
Século XXI.
[24] Em agosto de 1822, presidiu o Conselho de Estado durante o período em
que d. Pedro esteve
[25] Filipe Leopoldo Wenzel, Barão de Maréschal,
era ministro da Legação Austríaca no Brasil, estando mo país desde 1818 até 1830.
Era muito dedicado e confidente (segundo
algumas das fontes de Rangel) da Imperatriz D. Leopoldina. Era delegado da
Santa Aliança.
[26] Quer dizer ninharias.