domingo, 25 de setembro de 2011

A DANÇA DOS CARGOS








Num regime democrático, os eleitores votam em quem vai comandar os poderes executivo e legislativo. Esses eleitos devem escolher quem administrará as funções básicas em seus governos. Aos eleitores cabe definir esta operação como eleição indireta posto que são os seus escolhidos quem indicarão os outros que se acomodam no chamado “primeiro e segundo escalão”. Naturalmente esses indicados devem corresponder à expectativa de quem os indicou. Se a pluralidade de cargos & funções dilui uma apreciação imediata das indicações feitas por senadores e deputados (sem falar no âmbito estadual e municipal), para o executivo federal (considerando-se aqui as coligações e acordos interpartidários realizados sempre objetivando alguma benesse eleitoral), os nomes dos Ministros de Estado se evidenciam a partir do monitoramento que é feito (por vários canais, principalmente pela mídia), na expectativa de que as diversas pastas administrativas interessem de perto a sociedade.

Presentemente, as notícias espalhadas pelos órgãos de imprensa (de diversas formas) e redes sociais são alimentadas pela sucessiva troca de ministros no governo Dilma Rousseff. Em pouco tempo foram afastados cinco destes funcionários do alto escalão (e seus auxiliares) e isso atiça os analistas de plantão que diariamente se ocupam de denunciar atos de corrupção. Incluem-se, entre estes, com outro objetivo, os opositores sistemáticos que vêem, nas mudanças, um sinal de indecisão de ações por parte do executivo.

É interessante observar a dicotomia que aparece nos comentários vindos de diversas fontes, quase todos moldados na malicia que preside uma pretensa análise do comportamento presidencial. Se a presidente prosseguisse com os seus escolhidos debaixo de severas criticas estampadas em jornais ou ganhadoras de espaço nas conversas de quarteirão, os inquisidores diriam que há um conluio a encobrir atos criminosos. Se ao contrário, faltou uma pesquisa pré-nomeação imbuída no compromisso de contentar partidos políticos como forma de gerar a governabilidade ou satisfazer (como sinônimo de manter alianças) quem colaborou na campanha vitoriosa para chegar ao cargo majoritário, também será alvo de crítica.

Essa discussão em torno da “dança dos cargos” lembra-me o tempo da palmatória em colégio primário de cidades do interior ou subúrbio onde o/a aluno/a que não soubesse ler um texto que ele mesmo escrevera era alvo desse castigo submetido pela mestra estereotipada como uma bruxa de conto de fadas. Essa ilustração, a título de metáfora, ganha hoje a condenação de muitos que se acham “educadores” na posição de intransigentes críticos do comportamento de figuras públicas.

O fato também cabe no que Maquiavel faz ver sobre o Príncipe. E, no caso, a resposta imediata seria a de melhor se manter odiado do que amado. Isto, infelizmente, não é tão simples. A dança se faz com a música de diversos interesses. Não chego a descrer de uma pauta em que os tons evoquem a boa vontade ou o melhor para o país. Mas estamos em um mundo tão duro, apesar de se ver “amolecido” no plano planetário quando nações se unem a ajudar outras ( é fantástico ver França e Inglaterra, antes inimigas em guerras históricas, unidas para tratar da situação da Líbia ou da Grécia) que o ritmo leva ao compasso da dúvida, da inveja, do desejo de que a “orquestra” toque o que lhes é propício para mostrar suas qualidades de bailarina.

É muito difícil a unanimidade no plano em que a discrepância guarda interesses pessoais. A pluralidade de partidos políticos, obviamente, ressalta, pelo menos em tese, a quantidade de idéias & propósitos. Na prática, quem está sendo beneficiado por alguém não vai querer que este alguém deixe de lhe beneficiar por não mais poder fazê-lo. Ou espera que o “afilhado” não o desmereça aos olhos de outrem na promoção conseguida pelo “padrinho”. Não é atoa que hoje temos uma Lei da Ficha Limpa que se não surtiu tanto efeito em 2010, já está sendo um vetor importante para as “boas práticas” às alianças atuais e, com certeza, beneficiará as eleições de 2012.

Faz parte do folclore político o chamado “voto de cabresto” no inicio da república. Dizia-se dos que obedeciam aos “coronéis” do sertão que lhes impunham candidato entregando-lhes a cédula a ser depositada na urna. Isto no tempo em que os subterfúgios pouco se escondiam. Há o caso (verídico) acontecido numa cidade do interior do Maranhão em que um candidato deu a sua cédula eleitoral para que um seu empregado não se esquecesse de votar nele. Ao sair o resultado da urna com nenhum voto a seu favor, o “patrão” foi cobrar do empregado o esquecimento. Este foi franco: “-O papel que o senhor me deu está bem guardado. Eu joguei fora (na urna) o do outro sujeito”.

Hoje há um processo complexo a desafiar analistas políticos. Mas o que interessa aqui e agora é como está repercutindo a “dança” vinda do Planalto. Um fato, porém, me parece inquestionável: mudam-se os pares que dançam para se alcançar sempre um rítmo. Qualquer dissonância pode levar a “pisadas” em pares ou mesmo interrupção da festa. Só com harmonia o “baile” continua.


(Texto originalmente publicado em "O Liberal" de 23/09/2011. Charge extraída do blogdoonyx.wordpress.com )


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A GUERRA DO TERROR










No último dia 11/09, o mundo todo relembrou o 10° aniversário do maior atentado terrorista da história, o do choque dos aviões com as torres gêmeas do World Trade Center, em NY. Houve, contudo, quase nenhuma referência à gênese da tragédia (como meio de contextualização). Ou seja, por que os terroristas ligados ao grupo Al Qaeda – responsáveis pelo fato - odeiam tanto os EUA a ponto de sacrificar tantas pessoas inocentes, sem mesmo uma opinião política sobre conflitos ideológicos ou religiosos?
Desde o final da 2ª Guerra Mundial existe um sentimento antiamericano. E não é restrito a um país ou um hemisfério. Além dos derrotados no conflito, o advento da chamada “guerra fria”, com os soviéticos propagando a diferença ideológica num plano teórico: o sistema capitalista teria os EUA como bandeira, representando o contrário aos preceitos básicos do Manifesto Comunista, realçando-se a exploração do trabalhador, e foi situado, com ênfase, na filosofia norte-americana de governo. O eco nos países ditos subdesenvolvidos foi imenso e a prova disso foram diversos movimentos revolucionários, alguns, curiosamente, ajudados em seu início pelo próprio EUA (por exemplo, os casos do Afeganistão e de Cuba).

Imbuídos de um sectarismo ilustrado em diversos discursos, como o do general Patton, no fim da guerra (“Americanos jogam para vencer o tempo todo”), os norte-americanos passaram a adotar uma postura de mando que logo se rotulou de imperialismo. A expansão industrial e cultural (sendo um dos pilares, principalmente, o cinema) chegou ao mundo como o figurino do que “dá certo”.

Nesse patamar da História cabe a entrada do grupo Al Qaeda. O seu embrião foi a Maktab al-Khadamat (MAK), organização formada por Mujahidin que lutava para instalar um estado islâmico durante a campanha soviética no Afeganistão (1980). Para expulsar os russos invasores este solicitou ajuda aos EUA. E deu certo: o país foi liberto, mas as tropas norte-americanas não deixaram o país. Houve, na época, um pedido de Osama bin Laden, líder do movimento, ao rei saudita, alegando a necessidade de um estado islâmico. Mas o rei recusou a oferta e deixou que os norte-americanos ficassem no território. Laden achou isso uma afronta, acusando a intervenção infiel à “terra das duas mesquitas” (Meca e Medina). Essa atitude provocou o seu exílio tendo a sua cidadania saudita revogada. Daí em diante teve início o movimento que adotaria o nome de Al Qaeda e que visava (como ainda hoje visa) a hegemonia de uma terra islâmica.

Os principais inimigos da Al Qaeda seriam os EUA e Israel, este evidente na luta pelo domínio do território palestino. E o atentado ao World Trade Center representou um ataque ao “coração do sistema”, um ícone do mundo capitalista.

O ataque de 11 de setembro de 2001 marcou a história americana. Mas a sua imagem de catástrofe não ficou no dia e hora da explosão dos prédios com a morte de milhares de pessoas. Ainda viriam os problemas econômicos. O abalo repercutiu na Bolsa de Nova York que fechou pela primeira vez desde a 2ª Guerra. Nos dias posteriores ao infausto, o governo injetou US$ 300 bilhões no mercado financeiro para evitar uma crise. Em seguida, liberou recursos para a reconstrução e gastos militares (começara a guerra no Afeganistão). Ainda sem boa resposta de investidores, o governo estimulou a política de ajuda na compra da casa própria baixando os juros. “Era um mercado estrangulado” diz o economista inglês Richard Youngs, da Universidade de Warwick. “Os bancos emprestavam mais dinheiro para as imobiliárias evitando que chegasse uma recessão”. Mas quem recebia crédito acabou não pagando. E as empresas bancárias, ao revender a financiamentos (uns a outros) levaram “à uma reação em cadeia que fez vários bancos quebrarem provocando uma crise financeira que abalou o mundo em 2008/2009”.

O economista Simão Davi Silber, da Universidade de S. Paulo, disse a propósito: “A crise imobiliária só surgiu porque havia crédito em excesso e um espírito de reconstrução dos EUA. Fazia todo sentido responder à barbárie terrorista com uma era de crescimento”. Mas os acontecimentos levaram a medidas de proteção exacerbadas que ainda hoje persistem (como, por exemplo, a revista aos passageiros nos aeroportos). E a um fato que alguns observadores constataram: o aumento da criminalidade nas metrópoles por conta do “abandono de programas de combate ao crime”, disse William Bratton, consultor de segurança e ex-policial. E acrescentou: “Muitas delegacias sofreram cortes bruscos no orçamento e o número de policiais na rua caiu”. Subiram as estatísticas de crime nas ruas.

Desde a queda da Bolsa norte-americana em 1929, ou seja, 10 anos antes do inicio da 2ª Guerra e 12 da entrada dos EUA no conflito, a economia ocidental passa a sentir abalos quando algo de grave acontece num país considerado economicamente forte. O que hoje se conhece por globalização é cada vez mais evidente em escala planetária. Por isso, o drama da America do Norte atinge a nós, da America do Sul. E sente-se que o Brasil está conseguindo escapar do “tsunami” que ecoou desde Wall Street e ganhou “colegas” no Japão e em quase toda a Europa. Esse nosso preparo para evitar crises está criando um cenário que antes era inacreditável como o de sermos convidados a auxiliar a economia européia.

O eco do 11/09/2001 talvez ainda esteja sendo ouvido. E, emocionalmente, não vai deixar de ecoar tão cedo. Mesmo com bin Laden morto, as ameaças do Al Qaeda são constantemente veiculadas. Diminuir essas ameaças implica em intervenções como na política do Oriente Médio, especificamente, na convivência dos palestinos com israelitas, e na questão do petróleo, ou de quanto pesa o “ouro negro”, especialmente em terras onde ele não aflora com suficiência.

(Texto originalmente publicado em "O Liberal" em 16/09/2011)


domingo, 11 de setembro de 2011

CONTORNOS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA






O século XX foi considerado o “século da democracia”. Cientistas políticos e órgãos internacionais apontaram a proliferação de governos eleitos democraticamente, ao redor do mundo, neste período. Os resultados indicaram um alargamento da polis a partir dos níveis de soberania de cada país, numa perspectiva temporal comparada, em 62.5%de um total de 192 países classificados como democráticos. Segundo a FreedonHouse (http://www.freedomhouse.org), o Brasil, de uma prática democrática restritiva (1900 - RDP), deslocou-se para um regime autoritário (1950-AR), ascendendo para a democracia (2000 – DEM).

O modelo democrático fundamento dessa tipologia refere-se à equidade na distribuição do poder cujo princípio se acha caracterizado pela representação política. A democracia representativa se legitima pelo consenso que se verifica através de eleições livres e do sufrágio universal, sendo os atores principais nesse sistema os partidos políticos e os cidadãos que participam, quer com direito a eleger-se, quer com direito a eleger outrem para um determinado cargo político, em um período específico.

A experiência brasileira de democracia representativa está classificada entre os países democráticos da “terceira onda”, ou que se acham “em desenvolvimento”, pela forma da evolução do seu sistema político centrado no sistema partidário e no eleitoral, em decorrência do processo institucional progressivamente estabelecido ao longo da história. Tem tido peso também o lugar em que se acha no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em relação às demais nações.

Eleições fizeram a história do Brasil diferenciar-se de muitas outras experiências democráticas, desde o período colonial. A “trajetória do voto” no Brasil construiu a história do processo de participação política (ativa e passiva) do individuo, que antes emergia de um estado imperial e criava o arcabouço da legitimidade aos governantes. Naquele momento, eram os conselheiros que administravam as cidades e hoje, no Estado republicano, se acham nas representações dos cargos principais do poder executivo, legislativo e judiciário.

O inicio da organização política e administrativa do Brasil se dá com base no Código Filipino, cujos livros registravam tanto os cargos ocupados na Colônia quanto as demais ações administrativas do reino sobre os territórios conquistados. Ele trouxe modificações à organização das câmaras municipais acentuando o caráter administrativo destas e reduzindo as funções judiciárias.

Numa fase em que há eleições locais, não há referências às mulheres, como parte dessa estrutura de poder. As Ordenações Filipinas, no Livro 5, reduzem a menção a esse gênero aos costumes e proibições de comportamento e punições às transgressoras. Embora o imaginário social reforçasse a submissão aos costumes e normas emitidas por essas Ordenações, as mulheres eram parte ativa, tanto no trabalho de chefia das propriedades, mesmo sem serem viúvas, quanto entre os grupos políticos insurretos ao regime que marca o período. Algumas, por suposto, sabiam ler; outras eram analfabetas, como muitos proprietários de terras e comerciantes que eram eleitores.

As versões sobre o processo de institucionalização dos organismos de poder na democracia representativa brasileira ambientaram-se em dois espectros: o comparativo e o ideológico. No primeiro, o esforço de comparação expõe modelos democráticos europeus e anglo-americanos em duas vias, tanto para demonstrar como o processo democrático se elabora em diferentes contextos, e se dá bem, quanto para evidenciar esse diferencial, com riscos de se dar mal. O aspecto ideológico também pode ser observado através de três eixos: o de classe, o de gênero e o teórico.

O fato disseminado da entrada do “povo-massa” nos “negócios políticos da nação” esclarece a presença discriminatória de “pessoas sem qualidade”, ou melhor, “sem educação política” para conviver com os princípios de liberdade e igualdade de extração do sistema. Sem negar os conflitos sociais que alimentaram as classes proprietárias a usarem os recursos políticos através do“cacete”, para manterem seus interesses de poder no governo ao elegerem seus“compadres”, na versão de Oliveira Vianna, este aspecto engloba todas as instituições brasileiras e força uma interpretação de fragilidade do sistema que tem convivido até hoje e que se dilata para o eixo teórico explicativo da não institucionalização do sistema político brasileiro.
A ausência de cláusulas que contemplem as mulheres na vertebração da legislação que faz avançar o regime democrático desse período configura o tratamento desigual dado a este gênero, fortalecendo as estruturas patriarcais do comportamento político do demos.O não-voto para as mulheres justificava-se por estas regras que determinavam uma “condição feminina” diferenciada da masculina, na educação, nos costumes, onde sobressaía um estereótipo comum à família patriarcal brasileira: o mando dos homens em relação à sujeição das mulheres. Sendo “cabeça do casal” pelos dispositivos das Ordenações Filipinas, o homem é quem detinha a responsabilidade legal e as mulheres eram consideradas “perpetuamente menores (...)”. Estas achavam-se presas “naturalmente” ao domínio do privado e às atividades de reprodução da espécie e, por isso, ou seja, pela condição cultural, estavam ausentes da cidadania. Embora poucos homens votassem, no Brasil, nenhuma mulher exercia esse direito, apesar da ausência de dispositivos constitucionais que as excluíssem.

Nas versões antivoto feminino, na imprensa tradicional, é evidente o temor de as mulheres abraçarem uma carreira política, apesar de sua presença episódica em eventos de protesto ou em associações sociais e políticas.

No Pará, no período da Cabanagem (1833-1835), havia duas faccões políticas: o Partido Filantrópico e o Caramuru. No contraponto, estavam as mulheres paraenses organizadas na Sociedade das Novas Amazonas ou Iluminadas, uma sociedade secreta, exclusivamente formada por mulheres, somando-se às variadas estratégias do partido Filantrópico como meio de sobrevivência e resistência políticas ao partido Caramuru. A agremiação feminina cabana era regida por estatutos, sendo um dos itens principais a exigência de que as sócias tivessem"virtudes políticas e provas de decidido amor à pátria e adesão à liberdade". Outro movimento histórico paraense, a campanha abolicionista, registra a presença das mulheres da elite, organizando clubes, quermesses, em conjunto com as articulações políticas dos seus maridos, irmãos, filhos.

São os efeitos do voto feminino que ameaçam a sociedade, pois o comportamento esperado das “mulheres eleitoras” comprometia os papéis que elas desempenhavam no casamento e na maternidade.

Nessas representações ao feminino, constrói-se o imaginário social sobre a condição de as mulheres participarem da política.

Neste texto, a intenção é, justamente, uma avaliação da situação originária (ou genética) da sub-representação política feminina que ainda carece de certas aprovações sociais para alçar vôos maiores no campo da política eleitoral.

(Texto originalmente publicado no jornal "O Liberal" de 08/09/2011)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

VADIAS: AS CONQUISTAS, NA LUTA




No último domingo, um significativo número de mulheres – de todas as idades, credos, gerações, classe social – saiu às ruas de Belém para protestar, fortalecendo o evento que se denominou Marcha das Vadias. Essa idéia originou-se na cidade de Toronto, sendo realizada pelas alunas de uma universidade canadense, indignadas com as palavras do policial Michael Sanguinetti que ao proferir uma palestra sobre segurança no campus onde diversos casos de abuso sexual estavam ocorrendo desde janeiro deste ano, disse às garotas que “evitassem se vestir como vagabundas (sluts), para não serem vítimas”. A tradução desse termo, nos dicionários e na representação social quer dizer: vadias, cadelas, mulheres relaxadas, piranha, mulher vulgar, prostituta etc. Reconhecendo o sentido derivado da estereotipia que tem circulado no imaginário social sobre as mulheres, as canadenses organizaram uma manifestação pública reunindo cerca de três mil pessoas que saíram às ruas na célebre Slut Walk. O protesto ampliou-se mundialmente, com as paraenses se incluindo nesse grito.
Sobre o termo, a antropóloga paulista Julia Zamboni disse: “Ser chamada de vadia é uma condição machista (...). A gente é vadia porque a gente é livre”.
Na verdade, a infeliz declaração do policial sobre as ocorrências de violência sexual contra as garotas canadenses traduziu o que a sociedade de um modo geral aponta como causa desse infausto, considerando as próprias mulheres culpadas desses atos criminosos.
Mas as referências a este protesto e a qualificação que tomou “correndo o mundo” como “marcha das vadias” neste texto, ao tempo que registram minha aprovação a esse manifesto público, objetivam mostrar que não é de hoje que esse meio de luta política se inscreve como um dos tipos de demonstração feminina nas exigências ao respeito aos direitos de sermos tratadas como humanas.
Se não vejamos o caso das operárias russas, que no início do século XX deflagraram protestos por melhores condições de trabalho, quando as jornadas eram de 14 horas e os salários três vezes menores que os dos seus parceiros homens. As fábricas dos países desenvolvidos que surgiam na pós-revolução industrial eram abarrotadas de homens, mulheres e crianças explorados no tempo e trabalho em condições subumanas. Havia o protesto do movimento operário, com as reivindicações exigindo o fim do emprego infantil e a adequação da remuneração. As trabalhadoras sentiam a desigualdade dos salários e argumentavam sobre isso, mas seu ganho era visto como complementar ao dos homens de sua família, pai ou marido e por isso não equivalente.
Nos Estados Unidos, a luta desde meados do século XIX, vem através das greves operárias para pressionar os proprietários das indústrias, principalmente as têxteis. Em 3 de maio de 1908 o jornal The Socialist Woman informou que: “1.500 mulheres aderiram às reivindicações por igualdade econômica e política no dia consagrado à causa das trabalhadoras”, sendo registrado como o primeiro evento conhecido como o Dia da Mulher.
Uma ação política das operárias russas contra a fome, contra o czar Nicolau II e contra a participação do país na Primeira Guerra Mundial deu-se em 23 de fevereiro de 1917, antecipando os eventos que vieram a constituir a revolução, com Leon Trotsky registrando isso: “Em 23 de fevereiro (8 de março no calendário gregoriano) estavam planejadas ações revolucionárias. Pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixaram o trabalho de várias fábricas e enviaram delegadas para solicitarem sustentação da greve. Todas saíram às ruas e a greve foi de massas. Mas não imaginávamos que este 'dia das mulheres' viria a inaugurar a revolução”. Estes eventos apontam para a histórica oficialização do “Dia Internacional da Mulher” cujo acontecimento mais marcante é o da morte das 125 operárias (das 600 que trabalhavam) na Triangle Shirtwaist Company, de Nova York, queimadas vivas ou se jogaram das janelas do edifício de três andares. (fonte: Maíra Kubík Mano, “Conquistas na luta e no luto”).
E a eclosão mundial das reivindicações pelo direito de voto feminino, mais conhecido como luta sufragista? Não deixava de ser um movimento social, político e econômico por reformas. Em todos os países houve manifestações públicas, passeatas sobressaindo mulheres com indumentárias chamativas, greves de fome para mostrar que elas estavam nas ruas e solicitavam a cidadania que lhes era negada. Foram presas, submetidas a torturas (cf. o filme “Anjos Rebeldes”, EUA, 2004, com Hilary Swank), vexames morais, enfim, demonstraram que esse dispositivo democrático (sufrágio) que não as atingia, tirava-lhes de outras áreas como a educação, o emprego, a qualificação profissional relegando-as a suposta dedicação ao lar como seu único destino. Sempre as representações sociais a apontarem para a desqualificação a que eram submetidas nas leis consuetudinárias (onde os costumes se transformam em leis), nos códigos, nas normas dispostas em desfavor desse gênero.
Estes são apenas recortes de algumas eclosões de movimentos de mulheres marcando um tempo de reivindicações objetivando deixarem de ser vistas como culpadas das situações negativas da sociedade onde o status quo ainda domina as atitudes discriminatórias.
Hoje, mais uma vez as mulheres (e os simpatizantes da causa) estão nas ruas, na Slut Walk, para dizer que são livres de vestir-se como bem quiserem e que não é isso que deve ser criminalizado e/ou responsabilizado por detonar as práticas de violência doméstica e sexual, mas a subsunção das idéias patriarcais que ainda repercute em corações e mentes de muitas pessoas declarando-as “vadias”.

(Texto publicado originalmente em "O Liberal" em 02/09/2011)